Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“D. Manuel II – A Biografia do Último Rei de Portugal” da autoria de João Miguel Almeida (Manuscrito, 2022) constitui um percurso ilustrativo de uma personalidade multifacetada e por vezes surpreendente, a que a cultura portuguesa muito deve.
UM EXÍLIO AMARGO “A maior parte da vida de D, Manuel II decorreu no exílio, sob a égide da saudade, por vezes com um toque amargo e depressivo, mas motivando-o a trabalhar em projetos que mantinha e alimentavam a sua ligação a Portugal: o seu trabalho de bibliófilo e de bibliologo, de diplomata informal, agindo nos bastidores políticos a favor da independência de Portugal, para ele indissociável da secular aliança britânica”. Um genuíno patriotismo não impediu que tenha tido razões para desilusão e pesar, perante as atitudes quer de supostos amigos, quer de adversários. Poderia ter sido um rei constitucional fiel aos seus ascendentes e à memória de um rei liberal como D. Pedro IV, contudo as vicissitudes políticas impediram esse destino. Manteve, porém, uma assinalável coerência humanitária, designadamente no apoio aos soldados do Corpo Expedicionário Português na primeira grande guerra, em especial no tratamento e reabilitação dos militares mutilados. Esta biografia acompanha os anos da infância e juventude de um filho segundo não preparado para suceder a seu pai, o rei D. Carlos, e todo um percurso desde a “ditadura” de João Franco e da grave crise política do regime; da ocorrência trágica do regicídio; do breve reinado sob influências contraditórias, num republicanismo “de facto” que não tardou em produzir efeitos; um jovem rei reformista e adepto da “acalmação” até às mil intrigas e à herança dramática de um regime fortemente enfraquecido. O próprio regicídio ficou sempre envolto em mistério, considerando cumplicidades, traições e um ambiente de desalento e de decadência. No momento em que subiu ao trono, inesperadamente, todos reconheciam a sua imaturidade. Por outro lado, mantinha-se a sombra de João Franco, que demitido suscitava a dúvida sobre se teria sido acertado, da parte do rei afastá-lo. Mas D. Manuel não teve dúvidas em demarcar-se da imagem desgastada do antigo chefe do governo.
PESADA HERANÇA Os adiantamentos à Casa Real, o escândalo político Hinton sobre a produção de Açúcar na Madeira, as irregularidades no Crédito Predial, os amores do rei com uma artista do music-hall, Gaby Deslys, a suspeita de clericalismo que impendia sobre o jovem rei e sua mãe, a Rainha D. Amélia, a tentativa gorada do rei reforçar a política social, acompanhando o Congresso Operário de 1909, apesar de o republicanismo urbano prevalecer, tudo isso contribuiu para acelerar o movimento para a implantação da República, sem qualquer reação consistente do lado monáquico. Com a implantação da República, o rei partiu para Inglaterra, onde fixaria residência, iniciando-se um período muito agitado, com inúmeros movimentos nas hostes monárquicas, nos quais se incluíram as tentativas de reconciliação dos dois ramos dos Bragança, descendentes de D. Pedro e D. Miguel. Em setembro de 1913, D. Manuel casar-se-ia com D. Augusta Vitória Sigmaringen, vivendo o casal em Fulwell Park, no qual se passavam os dias entre as questões relacionadas com a Causa Monárquica e os temas da diplomacia, com o apoio do secretário Francisco Quintela de Sampaio. Com o defragar da Guerra, cria-se uma tensão no seio do próprio casal, já que D. Manuel defendia a “Entente Cordiale”, que tinha a simpatia de sua mãe, D. Amélia, de nacionalidade francesa, enquanto D. Augusta Vitória, não esquecia a nacionalidade alemã da família Hohenzollern, que assumira uma posição anti- “Entente Cordiale”. Apesar de tudo, a atitude de D. Manuel era de apoio à posição francesa, graças a sua mãe. Há, no entanto, um debate, como aliás no País, entre os partidários e não partidários na intervenção de Portugal na guerra no teatro europeu. O ex-rei organiza e financia, por exemplo, uma casa de saúde em Brighton para soldados convalescentes, com doze camas, todas ocupadas, sendo hasteada a bandeira monárquica, apesar de o rei falar do hospital como português. Não há, porém, dúvidas sobre a atitude patriótica de D. Manuel e sobre o apoio aos soldados portugueses. No campo monárquico há um debate sobre o tema da sucessão dinástica e sobre um possível acordo entre os dois ramos familiares dos Bragança. Há encontros e desencontros com os Integralistas Lusitanos e discordância em relação à posição do Centro Católico de António Lino Neto sobre a neutralidade quanto à restauração monárquica. D. Manuel mantém uma relação especial com o Cardeal-Patriarca de Lisboa D. António Mendes Belo; Pio XI afirma, porém. que os monárquicos católicos eram livres de defenderem a restauração da monarquia desde que essa causa não fosse defendida em nome da Igreja Católica. Todavia para D, Manuel a monarquia não deveria surgir como contraponto à república mas como coroação de um movimento que congregasse os católicos, convencendo-os de que monarquia era a instituiçãso mais adequada à defesa da Igreja Católica, e os nacionalistas convencendo-os de que uma monarquia católica era o regime maos favorável à nação.
UNIR ESFORÇOS O ex-rei insiste na ideia de união de esforços: “Quem dera ver todos os bons portugueses unidos a trabalharem para a salvação do país” – como dirá ao marquês de Lavradio. Quando procuramos um balanço, encontramos alguém que se considerava o primeiro dos portugueses, “não para afirmar uma superioridade em relação aos seus compatriotas, mas para subdlinhar a sua genealogia e a pertença a uma instituição – a monarquia . imbricadas na formação da nacionalidade portuguesa. Na sua perspetiva, a monarquia não estava presa ao passado; era uma tradição viva, portadora de um sentido para o futuro”. Como estudioso da cultura portuguesa, através da bibliografia e da bibliofilia, como admirador de Camões, como generoso apoiante de Portugal na Guerra, como apoiante dos portugueses vítimas do conflito – D. Manuel foi um patriota português, tantas vezes incompreendido, mas com uma herança digna de recordação positiva…
Queira-se ou não, é uma época que termina. É o retrato de um tempo que passa para os arquivos da memória. E invocamos uma fotografia de 1953, de Winston Churchill junto da jovem Rainha Isabel, num cumprimento respeitoso, mas familiar. Apercebemo-nos da dignidade de um sentido paternal, símbolo de uma tradição que encontra a atualidade. Com a morte da Rainha Isabel II ficam-nos muitas lembranças, muitos acontecimentos, numa zona de penumbra e de perigoso risco de esquecimento. A memória que tenho mais forte e mais antiga da Rainha é a da Avenida da Liberdade e do imponente cortejo na visita oficial de fevereiro de 1957.
É a imagem de um conto verdadeiro que jamais esquecerei. Depois, tenho de recordar o entusiasmo da minha família, em especial da parte anglófona, com um século, pelo menos, de crença liberal, no sentido democrático. Recebi, assim, com estupefação e angústia a notícia do Brexit, pelo qual a Europa Atlântica foi fortemente afetada. Não falo agora da antiga aliança luso-britânica e dos seus claros e escuros, mas tenho bem presente a vitória da causa do nosso rei D. Pedro IV, incentivada pela chegada ao governo britânico do partido Whig de Lord Charles Gray e pela Monarquia de Julho de 1830 do Rei Luís Filipe de Orleães, em França. Há mil lembranças históricas – e se digo que corremos o risco de um esquecimento perigoso, é porque a incerteza do momento que coincide com a morte de Isabel II pode fazer-nos esquecer o longo período de paz que coincidiu com o reinado da soberana desaparecida.
O cenário de guerra, a crise económica e o risco pandémico, que hoje vivemos, deixa-nos num caminho de dúvida, de temor e de incerteza, que afeta a Europa e o mundo. Perante a situação atual, a Europa precisa do Reino Unido e Portugal e a Península Ibérica terão tudo a ganhar se preservarmos a vertente atlântica. E precisamos da coragem serena de quem, no decurso do último conflito mundial, se alistou no exército como condutora de pesados e mecânica de automóveis. Numa vida difícil e plena de contratempos, mas também com momentos exaltantes, o que encontrámos sempre na Rainha foi a coerência e o estrito respeito do Estado de direito, da justiça e dos direitos fundamentais. Memória e vontade afirmaram-se de um modo natural. Longe de qualquer melancolia, a recordação que fica da Rainha Isabel II é da coragem, da simplicidade, do serviço público, do cuidado, da serenidade, do exemplo. Precisamos de memória que preserve a paz, e o exemplo da Rainha que agora nos deixa, depois do mais longo reinado, de que temos memória, merece atenção. O século XX foi um tempo de tragédia e destruição, que nada fazia prever, como afirmou Stefan Zweig, a que sucedeu um tempo de trinta gloriosos anos de paz, de cooperação e de desenvolvimento. Montesquieu ensinou-nos que só o poder limita o poder – e, através do exemplo da Rainha Isabel II, sabemos que tudo começa na consciência das fronteiras da ação. Nada sabemos sobre o que nos reserva o futuro. O rei Carlos III terá uma palavra a dizer, nos estritos limites dos seus poderes constitucionais – e será o caminho adotado por sua mãe a referência fundamental. Como diria Shakespeare: “É melhor ser rei do teu silêncio do que escravo das tuas palavras”.
«Thomaz de Mello Breyner – Relatos de uma Época, do final da Monarquia ao Estado Novo» de Margarida de Magalhães Ramalho (Imprensa Nacional, 2018) é uma biografia elaborada com grande rigor cronológico e histórico, que permite compreender não só a vida do biografado e mas também a sua época.
UMA BIOGRAFIA EXEMPLAR A obra que agora nos chega só foi possível porque o biografado teve o cuidado de registar em cadernos e em agendas aquilo a que foi assistindo, bem como as pessoas com que se cruzava e se relacionava. Os primeiros cadernos respeitam ao período de 1880 a 1895, desde a frequência académica aos passeios, passando pelo namoro com Sophia Burnay, pela morte do pai ou pelo casamento do Príncipe Real. Teria sido o seu amigo conde de Sabugosa, um dos Vencidos da Vida, que o incentivou à prática memorialista – e quando este morreu (em 1924) teria feito uma promessa a si mesmo de que publicaria as suas “Memórias”, deixando o primeiro volume pronto (1930) e um segundo praticamente terminado. Infelizmente, porém, não chegaria a cumprir o seu desiderato, para além da infância e juventude, deixando, contudo materiais que foram preciosos para a elaboração desta obra. E quem aqui encontramos? Para Reinaldo dos Santos, “um príncipe do espírito” e para José Tomás Sousa Martins, insigne mestre de Medicina, “o melhor dos rapazes. Possui a nobre faculdade de admirar sinceramente (…) no sentir tem a mais absoluta indiferença pelo pedantismo triunfante, a mais rija indignação só lhe vem diante do egoísmo burguês”. Os onze capítulos do livro acompanham a personagem. Nascido em 2 de setembro de 1866, Thomaz de Mello Breyner vai acompanhar a transição do século e dos regimes. Os primeiros capítulos são mais curtos, mas com o andamento do tempo a informação coligida foi aumentando. Filho do comandante do regimento de Caçadores 5, então aquartelado no Castelo de S. Jorge, aí nasce, num lugar privilegiado. E dirá que foi um “menino estragado”, pelos mimos que recebeu de seus pais – aproveitando bem a possibilidade de ver tudo o que se passava à sua volta… Apenas com quatro anos, testemunha as movimentações da Saldanhada (1870) e a partir dos seis anos, sendo seu pai ajudante de campo do rei D. Luís. Passa a ser convidado para as festas dos príncipes, nas quais sofre troças e dissabores por ser uma criança apenas remediada de uma família sem meios de fortuna. Tem, no entanto, o apoio da rainha D. Maria Pia, que lhe permite superar situações difíceis. Os acontecimentos e as vicissitudes são múltiplos, mas o certo é que esse contacto revelar-se-á muito importante na formação do futuro médico, que inicialmente pretendeu seguir a carreira na Marinha… Conhece Herculano e Bulhão Pato e sabe tirar lições de um tempo que está longe das facilidades, mas que lhe dá um riquíssimo convívio humano… Conhece escritores, artistas, publicistas – até Ramalho e Eça. Começando com dificuldades no aproveitamento escolar, consegue superá-las com sucesso. Deixando o desígnio da carreira militar, aponta para a Medicina, dando-nos conta pormenorizada dos sucessos e infortúnios, merecendo especial referência a relação académica com os Professores José Tomás Sousa Martins e Miguel Bombarda. E lembro na memória familiar a boa lembrança que meu bisavô tinha do Conde Mafra. Meu bisavô era professor da Escola Médica e vizinho em S. João dos Bem-casados de Mello Breyner – admirando o jovem clínico.
NA CIDADE DE PARIS E NÃO SÓ… Partindo para Paris, para aprofundar os estudos da Medicina, afirma: “Tenho visto com satisfação que a Escola de Lisboa não é nada tão má e que os portugueses aqui podem fazer boa figura, quer pela fala, quer pelos conhecimentos que têm, de resto não admira porque os nossos programas são os mesmos e os livros também, o meio é que é mais acanhado”. O ambiente de Paris é cheio de surpresas, desde a tentativa de uns quantos penduras à espera que Thomaz lhes emprestasse dinheiro até a uma chamada para acorrer a um ataque histérico de uma senhora em casa de um conde russo… Apesar de tudo, com alívio, Thomaz regressa a Lisboa, é nomeado Médico da Real Câmara e prepara cuidadosamente o casamento com Sophia Burnay, filha do célebre banqueiro. Passo a passo, encontramos o período difícil em que a monarquia constitucional está profundamente fragilizada, e em que o rei D. Carlos se deixa envolver nos erros dos partidos dinásticos, divididos entre a pura intriga (“discussões e bulhas dos monárquicos”) e a incapacidade de mobilizar o país. A humilhação do Mapa-Cor-de-Rosa deixou marcas profundas, o suicídio de Mouzinho de Albuquerque, quaisquer que fossem as suas razões torna-se um sinal de desalento nacional. Este é, contudo, um tempo de muito trabalho profissional para Thomaz de Mello Breyner, aliando a consulta médica, a prevenção, a preocupação com as injustiças sociais, bem patentes na vida das meretrizes e no alargamento das doenças venéreas. As relações entre os Reis tornam-se cada vez mais distantes e inconciliáveis. E o médico descobre, com preocupação, sinais perigosos de doença em D. Carlos, um nível de diabetes elevadíssimo não augura nada de bom… O monarca vai trata-se nas Termas de Pedras Salgadas, e há um movimento regional que parece de grande apoio popular o Rei… T. Mello Breyner confessará que se deixou enganar por essa onda, que não podia iludir o facto de Lisboa ser cada vez mais republicana.
CONTINUAM AS DIFICULDADES… “Continuam as trapalhadas políticas. Não sei como isto vai acabar. Em geral, sou otimista, mas desta vez vejo tudo um bocado negro”. Estava-se em finais de 1907. O conde de Mafra apoia a política de João Franco, mas verifica que tudo se encaminha para um beco sem saída para o Rei e para o regime. Um colaborador no hospital diz-lhe, na véspera do Regicídio de fevereiro de 1908, “que uma grande desgraça se prepara”. E o terrível dia chega em que o Rei e o Príncipe herdeiro são mortos. Eduardo VII exclama: “A revolução triunfou, não é verdade?”. E Raul Brandão diz que quem passaria a governar seria “sua majestade o medo”… Mello Breyner não se conforma, acusa os cúmplices palacianos e conclui destroçado: “Dorme em paz doce príncipe ao lado de teu querido pai que te amava tanto e que tu adoravas. Mais doloroso seria para ti veres-te obrigado por uma política idiota a pisar constantemente a memória de teu santo pai. Dorme em paz querido anjo”. Sente-se no memorialista uma grande amargura e descrença absoluta na solução política encontrada depois do Regicídio. Em 20 de abril encontra António José de Almeida no comboio de Coimbra que se desfaz em argumentos contra o envolvimento republicano na morte do Rei, mas o Conde de Mafra não acredita.... Os pormenores da vida quotidiana somam-se à intensa atividade profissional, a I República, depois de implantada, é vista com desconfiança, a vida familiar conhece amenidades e sobressaltos, alegrias e desgostos… O inesperado contacto com os modernistas, como Almada Negreiros, dá um tom de futuro. E numa passagem muito breve, lemos: a minha neta Xixa ficou «distinta no seu exame elementar. Aquela pequena é extraordinária. Quando há dias estive no Porto vi-a decorar um soneto de Antero de Quental depois de o ouvir apenas 3 vezes. Que encanto de pequena»… E de quem nos fala? De Sophia de Mello Breyner Andresen, a mais célebre das suas netas…