Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Saudade ou sôdade como lembrança e desejo e Morabeza como predomínio do afeto caracterizam a humanidade das culturas da língua portuguesa. Quando lemos D. Duarte, Bernardim Ribeiro, D. Francisco Manuel de Melo, Duarte Nunes do Leão, Garrett, Rosalia de Castro ou Cesária Évora sentimos que há algo que nos diz respeito, com que temos de lidar para não cairmos num sentimentalismo que reduz a vontade e a determinação. Eduardo Lourenço fala-nos, por isso, de um autêntico Labirinto que não pode ser visto como um destino retrospetivo. O “Desterrado” de Soares dos Reis simboliza espera e ausência. No Leal Conselheiro encontramos uma definição (de saudade) “acompanhada e esclarecida por uma análise caracteristicamente filosófica”. A novidade do conceito reside no seguinte: a saudade é um sentimento; não está vinculada necessariamente ao desejo; resulta da ausência de seres que se ama ou de estados que se estimam; “a melhor saudade é a que nos atualiza, pondo-nos de acordo com o tempo e dando-nos portanto prazer». Esta definição de Afonso Botelho corresponde ao que se pode designar como “humanismo esperançoso”, que parte de uma solitária saudade medieval para chegar à “reminiscência forçosa” de D. Francisco Manuel. Sem entrarmos na indagação sobre um eventual platonismo, o certo é que a saudade é um movimento – que no domínio intelectual é um diálogo. Deste modo, a saudade é um sentimento ou a consciência refletida desse sentimento – demarcados do saudosismo, como movimento de raiz poético-filosófica. Assim, a saudade vai situar-se entre a ânsia da Pátria Celestial e a lembrança da Pátria Terrena. Mas Leonardo e Pascoaes estão separados porque têm intuições religiosas diversas. Lembremos que o universo para Leonardo Coimbra é criado pelo homem num processo dialógico que o faz chegar a Deus pelo fraterno amor de tudo, e não como algo criado de uma vez por todas pela vontade divina. Deus é, assim, a luz que ilumina a ação criadora do homem - é o Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move, atraído pela «grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e o entendimento é Amar. Pascoaes, ao contrário, obedece aos dois movimentos, «um ascensional (o mítico em Maranus) outro descensional (que é precisamente o religioso do Regresso ao Paraíso)». No fundo, a Pátria de Pascoaes assume-se no homem, “mesmo quando a presença de Deus nele se faz sentir, até porque a divina presença desde que o foi dessa Pátria, já nela não pode ser esquecida”. Na fecundidade deste diálogo, Afonso Botelho centra-se na perfectibilidade do sentimento saudoso, ou seja um movimento permanente de reconhecimento da imperfeição e de impulso necessário ´para a sua superação – isto é, “a garantia de que o sentir só se completa no existir, por mais elevada e infinita que seja a saudade ou a sua órbita”. Como movimento, a Saudade apenas “se completa restituindo ao homem o sentimento da própria Graça que o elevou ao centro da redenção”. “Se o que domina a ontologia existencial é a definição do ser do tempo, creio que esta só poderá reencontrar-se na ontologia da saudade, que é a do tempo sem ser – ontologia negativa ou transcendida que determina a eliminação do tempo, precisamente porque em verdade o completa» (A. Botelho). Para Pascoaes: “O existir cria a ilusão do tempo. O que passou e o que há de vir eis a matéria, o corpo da saudade. O eterno compõe-se de coisas transitórias”. Vulgarmente ou mesmo culturalmente, pensa-se que “o Saudosismo é o mais acabado dos passadismos, mas assim não é. De facto, na saudade-saudade, segundo Afonso Botelho, o passado vale tanto como o futuro – “pois um e outro nela se acordam ou se eliminam, o que é o mesmo”. As saudades do futuro do Padre António Vieira são isso mesmo. Pascoaes diria, poetando, “A folha que tombava / Era a alma que subia” e Fernando Pessoa interpretaria: “A queda da folha é materialmente a subida da alma”. Leonardo põe a tónica na alma que sobe, enquanto Pascoaes interroga a folha que tomba… E a Renascença Portuguesa representa a procura destes dois movimentos paradoxais, equivalentes ao “poder convergente da Saudade, que se opõe a qualquer interferência do tempo exterior ou heterogéneo”…
No romance de Baltazar Lopes da Silva “Chiquinho”, o autor explica que a palavra “morabeza” significa amorabilidade. Segundo Brito-Semedo: “Este sentimento, que é mais visível e praticado nos meios rurais, manifesta-se, contudo, de forma particular em cada uma das ilhas. Por exemplo, em Santo Antão havia (…) o hábito de convidar os viajantes que faziam as suas jornadas a pé a entrar nas casas ao longo do caminho e secar o calor, que é, como quem diz, beber um cálice de aguardente (o grogue) e descansar um pouco. Nas outras ilhas agrícolas, nomeadamente em Santiago, nunca se vai fazer uma visita sem levar um agasalho, ou seja, uma prenda para os donos da casa, que pode ser um lenço de amarrar (lenço de cabeça), uma garrafa de grogue, algum rapé, ou um palmo de tabaco enrolado. O visitante, para além de ser bem recebido, normalmente regressa com um cabrito, um frango, ovos, leite coalhado ou queijo fresco, ou um saco contendo banana, papaia, mandioca, batata-doce, enfim, os produtos hortícolas que estiverem disponíveis no momento. Ser morabi (a expressão é da ilha Brava), afável e gentil, é a expressão do sentimento da morabeza, que é, afinal, a forma de o Cabo-verdiano estar no mundo”.
Acaba de ser publicada Claridosidade, Edição Crítica(Rosa de Porcelana Editora, 2017), com organização de Filinto Elísio e Márcia Souto, uma preciosa reedição fac-similada dos nove números de “Claridade – Revista de Arte e Letras” (1936-1960), com a qual passamos a dispor de nova e importante investigação sobre um dos movimentos mais interessantes do mundo cultural da língua portuguesa – a partir de Cabo Verde.
DA MORABEZA À «CLARIDADE» Morabeza é uma palavra, vinda de Cabo Verde, que significa manifestação de afeto. Em Chiquinho, Baltasar Lopes da Silva usa o significado amorabilidade – e sentimos nela a força da amabilidade e da afabilidade… Ao falar de palavras suscetíveis de unir em português, saudade e morabeza encontram-se naturalmente. Mas, por razões literárias e culturais, claridade merece também atenção. Desde que visitei pela primeira vez Cabo Verde, “claridade” tornou-se uma palavra familiar, como morabeza, mas por referência ao grupo extraordinário que criou uma revista e um movimento que, a um tempo, foram sinais de identidade e marca de abertura e de modernidade. «Claridosidade» é uma obra que fazia muita falta. Com estudos que atualizam, completam e consolidam muitos dos conhecimentos já disponíveis sobre os “claridosos”, passamos a contar com um conjunto de ensaios que não só permitem um melhor conhecimento da evolução cultural moderna cabo-verdiana, mas também garantem uma visão serena e distanciada sobre a afirmação de uma rica identidade no seio das culturas da língua portuguesa. Fica claro que a revista representou a grande eclosão da modernidade em Cabo Verde, “reconfigurando a crioulidade, definida por José Luís Hopffer C. Almada como o mais eficaz construto sociológico e identitário surgido no arquipélago, e marcando um novo universo de ‘reverberações literárias cabo-verdianas’, algo pioneiro no contexto das literaturas africanas de expressão portuguesa”. Como salienta João Lopes Filho, num texto fundamental, a génese da revista não corresponde a um só momento, ou a uma iniciativa pontual, uma vez que há uma evolução, abrangendo três fases: o período de arranque e reflexão, à volta do “Círculo Cultural” em Fonte Cónego, com João Lopes (1922); a fase da “Tertúlia”, na cidade da Praia (1928) e finalmente o aparecimento da revista no Mindelo (1936). Como Manuel Brito-Semedo confirma: Baltasar Lopes, Manuel Lopes, João Lopes, Jaime Figueiredo, Félix Monteiro, Manuel Velosa e Jonas Whanon encontram-se em S. Vicente nos anos vinte e trinta. É a geração que “fincou os pés na terra cabo-verdiana e ousou pensar o problema dos homens destas ilhas, constituindo-se num marco. Dessa altura a esta parte Cabo Verde evoluiu muito, começando por ter tomado o seu destino nas suas mãos e a sua literatura abriu-se ao mundo, universalizou-se”. Citando Manuel Lopes: “um grupo de amigos pensou que se deveria criar uma revista que permitisse romper com a tradição clássico-românica de motivos alheios à nossa realidade”. E Baltazar Lopes recorda que a palavra Claridade teve uma dupla influência – a de um grupo progressista da Argentina e a do círculo a que pertencia Henri Barbusse (Clarté). Saliente-se, aliás, a ousadia do grupo, ao publicar, contra todas as orientações do regime, na primeira página do primeiro número, em crioulo, os poemas “Lantuna & 2 Motivos de Finaçom (batuques da Ilha de Santiago)”. E vários são os sinais no sentido de se reconhecer que a “Claridade” antecipa e assume uma consciência cultural e social própria, apesar da conhecida posição crítica de Onésimo Silveira, cujo texto “Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana” (1963) se encontra reproduzido na presente obra. Aí se diz que “os jovens que viriam a fundar a revista “Claridade” tiveram uma formação exclusivamente europeizante”, o que corresponderia a uma literatura inautêntica que não poderia conduzir à consciencialização.
LÍNGUA DE VÁRIAS CULTURAS… A obra agora publicada reconhece no movimento “claridoso” um contributo muito relevante, complementar de outras manifestações culturais subsequentes, que culminariam na independência do país-irmão. E não esqueço o muito que tenho usufruído da reflexão sobre a rica cultura cabo-verdiana mercê do diálogo com bons amigos – desde o saudoso Corsino Fortes, passando por Germano Almeida, Vera Duarte ou Manuel Brito-Semedo… É significativo que, entre os textos ora dados à estampa, Maria de Fátima Fernandes defina a elite claridosa como um grupo de intelectuais predispostos a refletir e a ler a sociedade quer na dimensão local e identitária, quer na relação com a modernidade – o que aponta num sentido aberto e universalizante. Alberto Carvalho cuida dos antecedentes, enquanto Simone Caputo Gomes enfatiza a grande importância da revista na história da literatura cabo-verdiana e na nação crioula, como um conjunto, cujas existência e resistência são significativas. Aliás, hoje, ao lermos a correspondência do jovem Amílcar Cabral, percebemos porventura melhor a importância do projeto “claridoso” na sua projeção no médio e longo prazos – como realidade complexa, que não pode ser confundida nem com os percursos individuais ou a obra própria de alguns dos seus promotores iniciais nem com as limitações naturais de intervenção em diversos momentos históricos. “Tínhamos de intervir! Mas na óbvia impossibilidade de emprego de meios de ação direta que opção nos restava” – diz Baltasar Lopes. Além do carácter precursor do romance Chiquinho inicialmente aparecido em excertos na revista, onde o português e o crioulo de encontram a cada passo, como na realidade quotidiana, os ensaios “Uma experiência românica nos trópicos” teorizam sobre a mestiçagem e a hibridação linguística e aproximam Cabo Verde e o Brasil, num tema que Jorge Barbosa trata, em termos muito práticos e quase quotidianos em “Carta para Manuel Bandeira”. “Aqui onde estou, no outro lado do mesmo mar, / tu me preocupas, Manuel Bandeira, / meu irmão atlântico…”. E como afirma Nhô Baltas nos textos referenciados: “O núcleo inicial dos crioulos obedeceu a necessidades urgentes de simplificação de uma língua rica; mas condições especiais determinaram a seguir um enriquecimento ‘cultural’ progressivo do arquipélago. Chegou-se a esta situação: um flagrante desajustamento (no aspeto social muitas vezes doloroso) entre uma linguagem extraordinariamente simplificada na estrutura gramatical e uma cultura progressivamente enriquecida no sentido europeu”. E deparamo-nos com o natural encontro entre uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas, que Baltasar Lopes ilustra de forma exemplar – em condições que hoje, porventura, somos capazes de compreender melhor. E, como Urbano Bettencourt afirma, há uma irradiação açoriana da “Claridade”, uma solidariedade na Macaronésia e uma “circulação atlântica das culturas”… “Claridosidade” representa, assim, muito mais do que uma referência histórica de Cabo Verde – é um ponto de encontro e uma marca clara de identidade e de sentido universalista…