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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (14)

  
Theodor Adorno


14. A morte e o intolerável


Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo, perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com espanto, que, Deus rezava ao homem: "Homem, se existes, mostra-te, aparece!" Mas Deus, o criador, devia saber que o homem existe -- como é que perguntava por ele?! De qualquer modo, daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a rezar ao homem, a perguntar por ele...

Nesta história — ingénua? —, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus, que Eduardo Lourenço traduziu assim: "Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus."

Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não tivéssemos já encontrado?

Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los, procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela justiça, festejar, fazer investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas, se, no fim, pela morte, tudo desembocasse no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada. Precisamente esse nada é intolerável.

O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre, adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto — é uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo — o pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e é um vazio sem fim...

A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos. Como escreveu Santo Agostinho, "admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de eu viver, estando ele morto." E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável a pergunta essencial: "factus eram ipse mihi magna quaestio — tinha-me tornado para mim próprio uma questão enorme."

Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico, “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de Frankfurt, "é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus" e, por isso, a religião está em conexão com "o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta", de que o sofrimento e a morte "não sejam o último."


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de novembro de 2024

SÁBADO SANTO, PÁSCOA

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Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.

Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a  crueldade exercida sobre as criança inocentes. "A ciência toda não vale as lágrimas das crianças", proclama. O que faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o bilhete de entrada na harmonia final da história do mundo.

Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu: "O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum". E acrescentava de modo dramático: "Um Miserere  cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia."

O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão. Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é, salvar.

Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, "depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram  o que descreveram como a 'ressurreição'”: aquele que tinha morrido apareceu como "pessoa viva, mas transformada". "Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso". Deste modo, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo

No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta Feira Santa, o mesmo acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.

Na medida em que é possível reconstituir o que se passou historicamente com Jesus, foi assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré, acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do Reino de Deus. "Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho." Agora, quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo.  Deus vai transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão satisfeitas todas as esperanças.

Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas também de tipo religioso que, em vez de trazerem libertação, oprimiam homens e mulheres.

Esta actividade pública de Jesus foi curta: um ano, talvez dois, três no máximo. Pelo ano 30, por motivo da Páscoa, foi a Jerusalém com os discípulos. Houve quem o aclamasse Messias libertador. Enfrentou concretamente o sacerdócio judaico — parece que havia uns 20.000 sacerdotes e levitas —, declarando que Deus estava farto de sacrifícios. Flávio Josefo refere que numa páscoa degolaram 255.600 cordeiros. Mas, segundo Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e misericórdia.

Vendo privilégios abalados por causa do seu anúncio de um Deus solidário com os pobres, oprimidos , explorados, e com medo de uma sublevação popular que levasse à intervenção das tropas romanas, as autoridades judaicas, nomeadamente o sumo sacerdote, detiveram Jesus e interrogaram-no. E enviaram-no a Pilatos, governador-representante da Roma imperial, que, após julgamento expedito, o mandou executar na cruz, suplício próprio de escravos. O que se passou com Jesus no seu íntimo na cruz não sabemos. Mas há aquela palavra-oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"

Os discípulos desiludidos fugiram, voltaram às suas tarefas normais, pois aparentemente tudo tinha acabado.

O enigma do cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é este: pouco depois começaram a anunciar que o tinham visto, que Ele está vivo.  E por isso deram a vida, mártires. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento.  Os discípulos foram-se reunindo outra vez e formaram comunidades congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria para instaurar o Reino de Deus.

É em Sábado Santo que nos encontramos: entre a Sexta Feira Santa e o calvário da História, por um lado, e, por outro, o Domingo de Páscoa, isto é, a profecia, a promessa, a expectativa, a esperança, que não morre, do Reino de Deus, do amor, da fraternidade, da justiça plena, da alegria toda, da ressurreição dos mortos, da filadélfia, do banquete universal com Deus e todos os homens.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de março de 2024

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


122. (IN)TERMINÁVEL MOVIMENTO ENTRE VIDA, MORTE E NATUREZA


Schopenhauer defendia que os pensamentos humanos pouco podem contra a força da natureza. O ser humano crê ser o seu centro, do mundo e do universo, o que faz com que a ideia de morte, que é certa e não muito distante, não o perturbe, vivendo como se o pudesse fazer eternamente, como se fosse imortal.     

Acrescenta, porém, que à natureza não interessa o indivíduo em si, mas a(s) espécie(s), pelo que investe primordialmente na sua conservação através de uma pujante produção de sementes ou por uma generosa fecundidade. 

Assim, no momento em que pensamos na morte, deixamos de ser as pessoas individualizadas e autónomas que éramos e identificamo-nos, a partir daí, como um dos elementos de uma espécie, tornando-nos imortais, dado que uma espécie nunca morre e vive para sempre.   

Filtrando este pensar, é como dizer que o ser humano labuta, labuta sem parar, e a matéria, o tempo e a vida movem-se em perene movimento e nada perdura, muito embora o que chega e vem depois não seja diferente do que já findou.   

Morremos, os nossos descendentes continuam e são os sucessores das consequências e resultados do nosso trabalho, dos nossos ganhos e erros. Há um infindável movimento de ciclo, em que humanos, animais e coisas nascem e morrem, dia após dia, ano após ano, século após século e assim sucessivamente, sem se chegar a um resultado permanente, numa ininterrupção que transita de geração em geração, morrendo uns e vivendo outros, sobrevivendo a espécie.         

Só que há os fabricantes do terror absoluto, em que o poder nuclear pode destruir todas as espécies, incluindo a nossa e a própria natureza, em que o tido como adquirido e interminável movimento entre vida, morte e natureza pode ser transitório e terminável, sem vencedores nem vencidos.  

 

21.10.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

O ESSENCIAL, SEM ILUSÕES

 

Há aquele conto persa sobre o jardineiro e a morte: "O jardineiro de um príncipe persa correu para o seu senhor, dizendo: ‘Senhor, acabo de ver a morte no pátio, e ameaçou-me. Empresta-me um cavalo, para poder fugir depressa para Ispaão; deste modo, a morte não me alcançará'. O senhor satisfez o desejo do seu jardineiro, que imediatamente cavalgou para Ispaão. Pouco depois, também o príncipe encontrou a morte, e perguntou-lhe: ‘Porque é que ameaçaste o meu jardineiro?’ A morte respondeu: ‘Eu não o ameacei. Apenas olhei para ele atónita, pois hoje à noite tenho de ir buscá-lo a Ispaão’.”


Aí está um conto cru, que tem muitas versões, mas essencial. Passamos a vida a fugir da morte, ela, porém, está sempre lá. À nossa espera. Em qualquer parte. Não sabemos onde. Nem quando. Nem como. Mas é inútil tentar esquecê-la, pois ela não vai esquecer-se de nós.


E. Cioran, o filósofo da desesperança, escreveu: "Há meses, encontrei uma senhora e falámos de um conhecido comum, alguém que eu já não via há muito tempo. Ela disse que era melhor não voltar a vê-lo, pois ele estava muito infeliz. Não pensava noutra coisa senão na morte. Respondi-lhe: ‘Em que é que quer que pense?’. Em última análise, não há outro assunto.”


O pensamento da morte tem o condão de ao mesmo tempo nos libertar e nos paralisar. Perante a morte, ficamos neutralizados: tudo é vão e inútil. Ou fugimos para a frente: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos. Ou então despertamos finalmente para a liberdade: a consciência da morte faz-nos radicalmente livres, e tornamo-nos nós.


A morte é implacável. Com ela, não há negociação possível. Mais tarde ou mais cedo, ela sai vencedora. Mas precisamente aqui reside o seu nó todo de enigma: ela é a evidência bruta que anula, e, por outro lado, ergue-se, irredutível, a pergunta: como é que uma consciência pode morrer? A minha consciência morta é a contradição. Por isso, através deste enigma, as culturas não são senão tentativas de abertura de caminhos de sentido, na busca de um Sentido último, final.


Talvez não seja mau reflectir sobre a crise das nossas sociedades científico-técnicas que tem o seu vértice no tabu da morte. Vivemos numa sociedade que nos arrasa com conhecimentos, mas que não nos ensina o essencial: a sabedoria de viver na consciência da mortalidade. Essa consciência talvez possa despertar-nos para o que é nuclear e fundamental: somos mortais; logo, somos irmãos. E é a morte que obriga a distinguir entre o que verdadeiramente vale e tudo o resto.


É um lugar-comum: o reconhecimento de que nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo a morte se tornou tabu. Disso, pura e simplesmente não se fala. Fazê-lo é quase obsceno, embora se admita que o mundo dos mortos invada o mundo dos vivos um ou dois dias por ano - um e dois de Novembro, os dias dos Finados, amanhã e depois. As nossas sociedades são as primeiras na História a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte.


De facto, como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz, onde os valores são ter, poder, prazer, êxito, parecer e aparecer, eficácia, lucro, acumulação de bens materiais, progresso, riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos, os moribundos, e suportar o supremo fracasso da morte? Uma sociedade sem Eternidade tem de ignorar a morte. Neste tipo de mundo, a morte é o não integrável, e o nosso dever é não pensar nela.


Mas não se julgue que se deixou de pensar na morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se considera omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado. Por isso, se a experiência de solidão acompanha sempre a morte, nas nossas sociedades essa solidão pode atingir o paroxismo do intolerável.


É certo que talvez nunca como hoje a morte foi objecto de estudos científicos, desde a medicina à sociologia, à psicologia e à história, que nos permitem compreender, por exemplo, que as atitudes face à morte variam segundo os tempos e as sociedades. Proliferam os colóquios e as conferências e os especialistas da morte. Mas não se aninha aí precisamente o perigo de uma estratégia para evitar o pensamento da minha morte? Quer dizer, essa é ainda uma forma paradoxal de confirmar o tabu: falar da morte em abstracto e academicamente pode ser um meio de iludir a minha própria morte.


Ora, é evidente que é necessário excluir todas as atitudes mórbidas face à morte. Até porque o medo da morte foi utilizado até pela Igreja como verdadeiro exercício de terrorismo sobre as consciências, para uso do poder. Mas é igualmente verdade que, quando uma sociedade nada tem a dizer sobre a morte, é porque, em última análise, nada tem a dizer sobre a existência autenticamente humana. Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio de uma existência sem sentido.


O pensamento da morte não pode servir para envenenar a vida. Pelo contrário. O saber da morte própria confronta-nos com os limites e o que se deve fazer no tempo que há. Sem ilusões.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de outubro de 2021

O SENTIDO DA VIDA. (4) A MORTE E A ESPERANÇA


1. A morte é o choque mortal com o sentido. Ela é a barreira inultrapassável, definitiva. Significativamente, os antropólogos são unânimes em reconhecer na sepultura, portanto, na consciência da morte e na procura de transcendê-la, o sinal decisivo, indesmentível, de que, na história gigantesca da evolução, estamos em presença do ser humano, de alguém, da pessoa. Essa consciência é sempre acompanhada da religião e, de um modo ou outro, da filosofia, como reconhece a história, de Platão — a filosofia é “o exercício de morrer e estar morto” — a Schopenhauer, que via na morte a “musa da filosofia”, ou Martin Heidegger.


Perante a morte, quando tudo desaba e se afunda, erguem-se, mais dramáticas, esmagadoras, as perguntas essenciais: Donde vimos?, Para onde vamos? Qual o sentido de tudo? O que vale a existência? Perguntas inevitáveis para todos, pois, como dizia Ernst Bloch, no regresso a casa após o funeral de um amigo, nem mesmo o maior capitalista pensa apenas na sua conta no Banco. Aí está a razão por que, para conhecer uma sociedade, talvez mais importante do que saber como é que nela se vive, é saber como é que nela se morre e se trata os mortos. A maior prova do profundo mal-estar da nossa sociedade é que teve de fazer da morte um tabu. As nossas sociedades tecnocientíficas, da competição, do hedonismo, da ausência da religião, para serem o que são, foram as primeiras na História a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte. E não se pense que isso acontece porque ela já não é problema. É o contrário: de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade que se julgava omnipotente não tem solução que a solução que resta é: Disso não se fala. Mas de uma sociedade que é incapaz de integrar a morte não se pode dizer que está sã.  Evidentemente, não se trata de lidar com a morte de forma paralisante — não se pode esquecer que a morte foi muitas vezes utilizada de modo terrífico até pela Igreja, para dominar as consciências —, mas de modo sadio. Para se viver melhor, intensamente, com dignidade, livres, apreciar o milagre estonteante do ser e de ser, um rosto, o mistério do seu olhar... Sem a morte, não haveria ética, pois nunca seríamos obrigados à urgência da decisão: é a tomada de consciência da morte que nos revela o milagre da existência e o valor de cada instante da vida e a sua densidade íntima e definitiva, é ela que nos coloca perante a exigência da “existência autêntica” por oposição à “existência inautêntica”, como reflectiu Martin Heidegger. Em presença da morte, conquistamos a liberdade sem mentira... E é  numa existência autêntica, que é uma vida amada e amante, que pode nascer a esperança fundada da Vida que não morre. Nas situações-limite, o Homem é posto em confronto com o apelo e a fé possível no Sentido último, que os crentes invocam como Deus.


2. Andamos frequentemente, talvez a maior parte do tempo, distraídos em relação ao essencial. Mas um dia chega a morte e é o confronto com o abismo sem fundo. “Ai que me roubam o meu eu!”, gritava Unamuno perante a morte. Frente àquele “nunca mais para sempre” neste mundo (Vladimir Jankélévitch), ninguém fica indiferente, tudo estremece. E agora?, e depois?


Se na morte formos engolidos pelo nada, onde está o Sentido último da existência?, que valor tem a distinção entre bem e mal, justo e injusto, digno e indigno?, onde assenta a dignidade do Homem, que é pessoa e não coisa?  Se tudo se afunda no nada, já tudo é nada. Que valeram todos os combates, todas as lutas, toda a generosidade, toda a abnegação, todo o amor? O grande filósofo J. G. Fichte perguntava, voltando atrás no tempo: ... os meus tetravós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus trisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus bisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus avós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram... A vida é isto?


O Homem é por natureza o ser do transcendimento: nunca se contenta com o dado e está sempre para lá de si e de toda a meta alcançada. Vive um desnível insuperável entre o que realiza e a aspiração inesgotável a realizar-se sempre mais. Por isso, vai caminhando de sentido em sentido, mas só encontrará satisfação total no Bem Sumo enquanto Sentido de todos os sentidos, isto é, o Sentido definitivo e plenificante. Mas ele não pode realizar por si esse Sentido, que só por graça lhe pode ser dado. A História lê-se do fim para o princípio, de tal modo que só no fim, na morte, poderíamos saber quem somos, mas já lá não estamos. Assim, só Deus, no final, pela graça da plenitude da Vida, nos dirá quem somos e o que somos para Ele e Ele para nós. Esta é a promessa da Vida eterna. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, disse Jesus. “Santa esperança!”, dizia Péguy.


Ludwig Wittgenstein escreveu que “acreditar em Deus significa ver que a vida tem um sentido”. Lá no mais íntimo, os crentes sabem que é assim. E se na hora da morte nos fosse revelado que não há Deus? Não me arrependeria por ter acreditado. Porque, como disse o filósofo A. Valensin, o mal não estaria em nós por termos acreditado, mas em Deus, que, devendo existir, não existe. É uma espécie de argumento ontológico moral, à maneira de  Simone Weil, a filósofa mística: não se arrependeria, pois “Deus é o Bem”, que não nos será tirado. E há uma dívida da História para com as vítimas inocentes; sem Deus, quem pagaria essa dívida?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 FEV 2021

A PENA DE MORTE E O INFERNO (2)

 

1. Desgraçadamente, como disse o cardeal Carlo Montini, antigo arcebispo de Milão, também jesuíta e que o Papa Francisco quer seguir, a Igreja anda atrasada pelo menos 200 anos.

 

Este atraso é infeliz concretamente no que à pena de morte diz respeito. É uma vergonha, mas até 1969 no Estado do Vaticano existia a pena de morte. Podia não aplicá-la, mas estava vigente e só foi derrogada formalmente na Lei Fundamental em 2001 pelo Papa João Paulo II. E ainda constava até 2 de agosto de 2018 no Catecismo da Igreja Católica a legitimação da pena de morte. Felizmente, como aqui escrevi na crónica da semana passada, o Papa Francisco reescreveu esse artigo do Catecismo e quer que a Igreja faça campanha a favor do fim da pena de morte em todos os países e pronuncia-se contra a pena de prisão perpétua. "Nunca se pode castigar sem esperança; é por isso que sou contra a pena de morte e também contra a prisão perpétua interpretada como sendo "para sempre". Porque a todos deve ser dada a possibilidade de regeneração, a todos deve ser restituída a esperança.

 

2. Evidentemente, aqui chegados, coloca-se, concretamente ao crente, a questão da doutrina do inferno, que seria a condenação definitiva, eterna. Pergunta-se: alguém merece a condenação definitiva, eterna? Qual a relação entre uma liberdade finita no tempo e uma eternidade falhada, definitivamente, eternamente falhada? Uma pergunta imensa e dramática. A pergunta tem sentido, ao pensar na inscrição que, segundo A Divina Comédia, de Dante, na linha do "dogma" católico, se encontra à porta do inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch"entrate" (abandonai toda a esperança, vós que entrais).

 

Dizia-me uma vez o filósofo Ernst Bloch, numa conversa em Tubinga: pensando no inferno, seria melhor não existirmos, e "todos os condenados no inferno estariam de acordo comigo". Aliás, o inferno seria o sofrimento eterno sem qualquer finalidade... De modo paradigmático, David Hume argumentou (socorro-me da citação feita pelo teólogo Andrés Torres Queiruga): "É inaceitável um castigo eterno para ofensas limitadas de uma criatura frágil, e, ainda por cima, esse castigo não serve para nada, uma vez que se dá quando toda a peça está acabada, concluída."

 

Na presença do Deus que é amor incondicional, como diz a Primeira Carta de São João, julgo que também é legítimo pensar e esperar que, seja qual for o mal feito, haverá sempre algum ato de amor de todos, de cada uma e de cada um, que permite a Deus recriar para a vida eterna feliz todos os homens e mulheres..., mesmo se as possibilidades não realizadas neste mundo - a vida aqui, na liberdade, tem de ser tomada a sério e com consequências - Deus não as possa eternizar, elevando-as à plenitude. Seja como for, a Igreja nunca declarou que alguém esteja condenado no inferno. A doutrina sobre o inferno diz apenas sobre a grandeza da liberdade e de como é necessário tomá-la eminentemente a sério.

 

Dada a importância do tema, permito-me explicitar. Seja como for, todas as pessoas, crentes ou não, perguntam pelo sentido último da sua existência, vivem a angústia da liberdade e a exigência radical da justiça - bem e mal não são equivalentes -, e foram atormentadas pelos horrores do inferno e sabem como isso serviu o poder da Igreja...

 

Houve um tempo em que o inferno era um tema central dos sermões. Teólogos e pregadores, aterrorizados por uma sexualidade reprimida, por dúvidas atrozes de fé, por uma agressividade latente, compensaram a sua própria angústia projetando-a sobre os outros. Tudo com a melhor das intenções. Afinal, se o que esperava os hereges, os judeus, as bruxas, etc., era sem dúvida o inferno (lembre-se a doutrina do Concílio de Florença, em 1442, segundo a qual quem está fora da Igreja Católica "cai no fogo eterno, preparado para o demónio e os seus anjos"), então deveriam arder desde já, até porque, mesmo que não fosse possível salvar as suas almas, pelo menos a sua morte, pela espada, pela tortura e sobretudo pelo fogo, serviria de advertência para outros e a sua salvação. Assim, escreve Hans Küng, "conversões forçadas, condenação dos hereges à fogueira, perseguições dos judeus, cruzadas, a paranoia das bruxas, guerras de religião em nome de uma "religião do amor", tudo isso custou milhões de vidas humanas". O terrorismo exercido sobre as consciências pelas torturas do inferno e a que se estava condenado por um único pecado mortal, um pecado que andava principalmente ligado ao sexo, serviu realmente para a manutenção do poder da Igreja, mas é bem possível que, como escreveu o historiador católico Jean Delumeau, "porque as Igrejas do Ocidente não prestaram atenção suficiente aos argumentos dos "hereges" que recusavam acreditar na eternidade do inferno, se produziu desde o século XVI um movimento de recusa do cristianismo, identificado pelos libertinos como uma teologia do Deus que castiga".

 

Mas bem e mal não se identificam. Se a história tem um sentido, ele só pode ser o da liberdade. Então, o que se chama o dogma do inferno, na sua dramaticidade, diz: és livre, não tens a salvação assegurada automaticamente, podes falhar radical e definitivamente o sentido da tua vida. Quando olhamos para a história da humanidade, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade gratuita, de suor, de lágrimas, de sangue, de desespero, de traições, de desprezo, de indiferenças, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas, causados por homens e mulheres a outros homens e mulheres e, concretamente, inocentes, de tal modo que a existência se tornou para eles absurda, um verdadeiro "inferno", compreendemos e exigimos, desde a raiz do nosso ser, que o algoz e a vítima não podem ter a mesma sorte.

 

Por paradoxal que pareça, o dogma do inferno é a proclamação mais radical da liberdade. O inferno como possibilidade real para mim é advertência para a seriedade radical da existência livre, que de modo nenhum pode ser reduzida a bagatela ou vulgaridade. Neste sentido, o inferno não significa o castigo da tortura infligido "de fora" por um Deus implacável e sedento de vingança, mas o falhanço total da existência a que o homem pode autocondenar-se. Então, como interpretar teologicamente o inferno?

 

Deus não condena ninguém, porque Deus é só Amor. Pode a pessoa autocondenar-se ao inferno? Significativamente, a Igreja nunca declarou que alguém em concreto esteja no inferno, nem mesmo Judas ou Hitler. No caso-limite de haver realmente alguém que se feche radical e obstinadamente ao amor, excluindo definitivamente Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque o não aceita, anula-se definitivamente. Este é o "inferno" enquanto "segunda morte", de que fala a Bíblia: o homem ou a mulher radical e obstinadamente maus não participam na plenitude da vida eterna de Deus, mas também não são eternamente torturados, pois, pela morte, simplesmente já não existem. Na morte, os maus são entregues à sua própria lógica: para eles, não pode haver vida eterna: a sua morte, escreveu o grande teólogo E. Schillebeeck, "é realmente o fim de tudo", o nada puro e simples, a morte definitiva, eterna.

 

O teólogo Andrés Torres Queiruga pensa, com razão, que se pode esperar mais e ir mais longe. Ninguém é absolutamente mau, e poderá a liberdade finita ter "uma opção tão absoluta que a leve a escolher o nada?". Assim, "conjugando os dois polos - um Deus que quer fazer tudo para salvar e uma liberdade que é limitada -, chegar-se-ia a uma autêntica mediação: Deus salva quanto e na medida em que "pode", isto é, quanto a liberdade finita lhe permite. Dado que esta não é total, Deus salva aquele resto de bondade que parece não poder ficar anulado por nenhuma ação má. Haveria, portanto, condenação real e definitiva, pois perde-se tudo aquilo que não se permite a Deus salvar, mas desapareceria a desproporção que parece intolerável entre o finito da culpa e o infinito das consequências". Há salvação, mas com "perda eterna de possibilidades, plenitude e felicidade": a pessoa empequeneceu-se por sua culpa e estará eternamente "menos realizada do que poderia".

 

Este é o sentido de eu dizer: não há inferno. Para maior explicitação, permito-me remeter para o meu recente livro: Conversas com Anselmo Borges.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 NOV 2019

A PENA DE MORTE E O INFERNO (1)

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Em 2017, celebrou-se os 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal. Tive então na Universidade de Coimbra, a convite de José de Faria Costa, ex-Provedor de Justiça, uma intervenção sobre o tema, com o título “Teologia e Pena de Morte”. O que aí fica é uma síntese dessa intervenção, com alguns acrescentos posteriores, e gostaria, à maneira de intróito, de lembrar que os cristãos são discípulos de um condenado à morte, executado na cruz…

 

1.   O que diz a Bíblia sobre a pena de morte? Há o mandamento: “não matarás”, com o sentido de “não assassinarás”. Mas, no Antigo Testamento, estavam sujeitos à pena de morte não apenas o assassinato, mas muitos outros delitos, como a idolatria, a blasfémia, a violação do Sábado, o homicídio, vários actos do domínio sexual, como o adultério, o incesto e a homossexualidade… “Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte”. “Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um acto abominável; serão os dois punidos com a morte”. Etc. Mas, note-se, no Antigo Testamento, também se pode ler que a justiça de Deus é diferente da dos homens e, por exemplo, Caim, que matou o irmão, Abel, vai para o exílio e é marcado para que ninguém o mate.

Pelo contrário, no Novo Testamento, não há afirmações que refiram de modo claro, unívoco e contundente a pena de morte. De facto, por exemplo, a tentativa de justificá-la, recorrendo à citação de São Paulo na Carta aos Romanos, na qual se refere a obediência devida à autoridade do Estado que tem o poder da espada, é indevida, pois trata-se apenas de uma constatação e não de um estar de acordo com a pena de morte.

O que realmente verificamos no Novo Testamento é um salto qualitativo em relação ao Antigo Testamento. Pense-se na adúltera: “Quem entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”, e Jesus enviou-a em paz. Toda a pregação do Sermão da Montanha, com as Bem-aventuranças, é um apelo ao perdão e à renúncia à violência. Contra a lei de talião: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente”, Jesus diz: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra face. Ouvistes o que foi dito: deves amar o teu próximo e odiar o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem… Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o juízo com que julgardes sereis julgados e a medida com que medirdes será a que servirá para vós.” Pedro perguntou: “Devo perdoar sete vezes? E Jesus: setenta vezes sete”, o que significa: perdoar sempre. Jesus na Cruz rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, lição aprendida pelos discípulos, pois Santo Estêvão, por exemplo, nos Actos dos Apóstolos, enquanto o apedrejavam, também fez a mesma oração.

 

2.   Neste enquadramento, é, portanto, necessário dizer que, para este debate sobre a pena de morte e o seu fim, o cristianismo foi fermento decisivo… No entanto, é preciso ao mesmo tempo dar conta da constatação de que, com excepção da Igreja primitiva, ao longo dos tempos, depois da viragem constantiniana da Igreja, a maioria dos teólogos não só não se opôs como foi favorável à pena de morte, e essa atitude ainda hoje é defendida por alguns.

Assim, no Catecismo da Igreja Católica, lê-se no nº 2266: “Preservar o bem comum da sociedade pode exigir que se coloque o agressor em estado de não fazer mal. A este título, reconheceu-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem. Por motivos análogos, foi confiado às autoridades legítimas o direito de repelir pelas armas os agressores da cidade. As penas têm como primeiro efeito compensar a desordem introduzida pela falta. Quando a pena é voluntariamente aceite pelo culpado, tem valor de expiação. A pena tem como efeito, além disso, preservar a ordem pública e a segurança das pessoas. Finalmente, tem também valor medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.”

Já no nº 2267 lê-se: “A doutrina tradicional da Igreja sempre se exprimiu e exprime tendo em conta as condições reais do bem comum e dos meios efectivos de salvaguardar a ordem pública e a segurança das pessoas. Na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana”.

Recentemente, a posição da Igreja começou a mudar. Assim, na Encíclica “Evangelium Vitae”, de 1995, João Paulo II escreveu: “Há também a questão da pena de morte, em relação à qual tanto na Igreja como na sociedade civil se observa uma tendência crescente a reclamar (exigir) um uso muito limitado e sobretudo a total abolição da pena de morte.” E a razão é uma consciência maior do respeito pela dignidade humana, que corresponde ao plano de Deus. Só em casos extremíssimos, quando a defesa não fosse possível de outro modo, se aplicaria a pena de morte ao culpado, mas acrescenta: “Esses casos são hoje, por causa da organização jurídica mais adequada, muito raros e praticamente inexistentes”.

O Papa Bento XVI, na mensagem enviada ao terceiro congresso mundial sobre o tema, que teve lugar em Paris, em Fevereiro de 2007, pronunciou-se contra a pena de morte nestes termos: “A pena de morte não só representa um ataque à vida, mas também um ataque à dignidade humana”. Mesmo se a Igreja continua a manter a posição de que o Estado tem o dever de defender a sociedade, a mensagem declara que a pena de morte é hoje dificilmente justificável. Os Estados dispõem hoje de métodos mais eficazes para combater a criminalidade, sublinha Bento XVI, que aponta que medidas preventivas e métodos de castigos que não levam à morte correspondem mais ao bem comum e à dignidade da pessoa humana. A decisão a favor da pena de morte tem o risco de castigar inocentes bem como a tentação de, em vez de promover a justiça social, atiçar a violência. “A pena de morte é um ataque claro contra a inviolabilidade da vida humana e, para os cristãos, uma violação da doutrina bíblica do perdão”. O Papa apelou aos Governos para abolirem a pena de morte e, respectivamente, entenderem-se no sentido de uma moratória universal contra a pena de morte.

Na obra de Dominique Wolton, Société et Politique, o Papa Francisco, no contexto de explicar, contra uma concepção fixista da tradição, uma visão da tradição viva, em movimento, deu o exemplo da pena de morte: “A propósito da pena de morte. Os nossos bispos decretaram a pena de morte na Idade Média. Hoje, a Igreja diz mais ou menos — e trabalha-se para mudar o Catecismo neste ponto — que a pena de morte é imoral. A tradição mudou? Não, a consciência evolui, a consciência moral evolui. O mesmo acontece com a escravatura, Há escravos, mas é imoral.”

Concretizando esta exigência, Francisco veio, em 2018, reafirmar o que já declarara no Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de Outubro de 2017: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.” Assim, o nº 2267 do Catecismo, revisto, agora diz: “Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente a possibilidade de se redimir. Por isso, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”

É de sublinhar a afirmação: a dignidade é inerente à pessoa humana e não se perde nunca, nem sequer depois de ter cometido os mais graves crimes. Fica, pois, eliminada qualquer possibilidade de aprovação da pena de morte. Numa Carta enviada aos bispos de todo o mundo pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria, Francisco vai citando Papas anteriores, concretamente, João Paulo II e Bento XVI, que, como vimos, já tinham dado orientações neste sentido, constatando que, independentemente das modalidades de execução, ela “implica um tratamento cruel, desumano e degradante” e sublinhando ainda “a possibilidade de erro judicial”.

 “A nova formulação do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica”, diz ainda a Carta, concluindo, “quer ser um impulso para um compromisso firme, inclusive através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, para que se favoreça uma mentalidade que reconheça a dignidade de cada pessoa humana e se criem as condições que permitam eliminar hoje a instituição jurídica da pena de morte onde ainda está em vigor.”

Há no mundo 57 países que ainda aplicam a pena de morte. O Catecismo agora modificado quer ser uma autoridade moral a favor da tese abolicionista.

O Papa Francisco também se opõe, como aqui escrevi então (“O não de Francisco à pena de morte e à prisão perpétua”) à prisão perpétua: “privar um ser humano da possibilidade, ainda que mínima, de ter esperança, significa matá-lo duas, três, quatro, cinco vezes.”

 

3.   Aqui chegados, é preciso referir e sublinhar a neotenia (nascemos prematuros, por fazer…), que é uma característica essencial, constitutiva, do ser humano, condição biológica de possibilidade da liberdade. O ser humano aparece no mundo, não feito, mas como conjunto de possibilidades. Por isso, os seres humanos têm como tarefa, fazendo o que fazem, fazerem-se a si mesmos e, dada a liberdade, como se mostra na experiência de autoposse — cada um é senhor de si e das suas acções —, fazerem-se bem, para que resultem como obra de arte. A identidade humana não é fixa, estável, mas processual, narrativa, aberta a um futuro aberto: temos raízes, estamos enraizados, vivemos no presente, mas abertos a um futuro. Assim, por maior que seja o crime, ainda há possibilidades…, incluindo o arrependimento e a mudança. Este é o constitutivo do ser humano. Ora, a pena de morte fecha as possibilidades, quando o processo de cada homem, de cada mulher, mesmo feito o mal, ainda não transitou em julgado definitivo… É preciso, portanto, deixar o processo aberto…

Para Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis. Mas, para lá do verificável, há “o místico” (das Mystische), que “se mostra” (es zeigt sich), o metafísico, o absoluto. Não que o mundo é, mas que o mundo seja, isso é o místico. Deus também não é deste mundo nem a ética, que é da ordem do dever-ser. O morrer é deste mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do absoluto (a outra é Deus), e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte é a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à continuidade do processo de possibilidades inclusive de arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade, incluindo, repito, a do arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. Aliás, um juiz, por exemplo, julga actos das pessoas, não julga as próprias pessoas.

Aí está a razão por que não se pode ser a favor da pena de morte. Cito, neste contexto, a afirmação de Vergílio Ferreira, por ocasião do I Centenário da abolição da pena de morte em Portugal: “E acaso o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque (…) a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do Universo.” (continua).

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 NOV 2019

 

TRÊS GRANDES FERIDAS DO NOSSO TEMPO

 

1. Todas as épocas têm as suas características, as suas vantagens e os seus perigos e ameaças. O nosso tempo sofre de três grandes feridas que nos levam à inquietação e à incerteza, contribuindo para a solidão, não a solidão habitada, necessária para estar consigo e com os outros na profundidade, mas a solidão do abandono.

 

2. Essas feridas são, como explica José María Rodríguez Olaizola num belo livro, Bailar con la soledad, a que já aqui me referi e no qual me inspiro: a do amor, a da morte, a da fé.

 

2.1. A ferida do amor.

Hoje, vivemos num mundo no qual o amor na sua permanência se tornou efémero e inseguro. Quem diz hoje, de modo seguro: amor “para sempre”? Quando se olha para as estatísticas, não é antes o “enquanto durar” que está em vigor? Aconselhava-me há dias alguém, por ocasião da celebração dos 50 anos de casamento de uns amigos meus, a que presidi: por este andar, comece a celebrar os 10 anos, os 20 anos de casados das pessoas, porque isto das bodas de prata e de ouro, aos 25 e 50 anos, é cada vez mais raro e a acabar... Como é sabido, Portugal está na frente quanto à percentagem de divórcios (há um divórcio por hora em Portugal) e em Espanha os casamentos duram em média 16 anos...

 

Razões? Certamente, o aumento da esperança de vida é uma delas: o que antes eram 20 ou 30 anos de casamento agora poderão ser 50. Assim, porque não desfrutar de dois ou três casamentos mais? Por outro lado, numa cultura do descartável, da fuga ao sacrifico e à renúncia e do culto da superficialidade, o que fica é também a incapacidade do compromisso definitivo. Como escrevia uma jovem: “Queremos comprometer-nos um pouco, mas não cem por cento.” E o sociólogo Zygmunt Bauman, referindo-se ao “amor líquido”: Se estamos continuamente a deitar fora automóveis, computadores, telemóveis ainda em perfeito estado, para os trocarmos por novas versões melhoradas, “haverá porventura uma razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?” Está aí o paradoxo, ouvi eu pessoalmente Bauman a dizer: Por um lado, na presente instabilidade, deseja-se profundamente um amor estável para toda a vida, mas isso é incompatível com a disponibilidade para a abertura a novas oportunidades que apareçam...

 

A pergunta é se as pessoas são mais felizes. O Papa Francisco, em A Alegria do Amor, fala de várias feridas do amor: o amor egoísta; a falta de tempo para o encontro, para o diálogo, para a escuta; a paternidade/maternidade egoísta ou negada; as expectativas demasiado altas, irrealistas e, consequentemente, defraudadas... O que daí se segue, citando o Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da acultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações.” Vale a pena bater-se por uma família estável, pois é esteio para uma vida feliz e é o melhor lugar para ter filhos e educá-los. A desestruturação da família é um dos perigos maiores para o nosso mundo.

 

2.2. A ferida da morte.

Muitas vezes tenho aqui sublinhado que uma característica essencial da nossa sociedade é a morte enquanto tabu. Disso não se fala. Não é de bom tom. Como aceitar falar da morte numa sociedade na qual o que se valoriza é o ter, o sucesso? Este é o paradoxo: por um lado, nada mais certo do que a morte; por outro, a sua ocultação. E aqui reside a pobreza da nossa sociedade: na obturação das perguntas essenciais e da verdade da vida, na tentação do auto-engano, perde-se a perspectiva da existência autêntica. Para ser o que é, vivendo na superficialidade, na corrupção, na vaidade oca e vazia, no esquecimento do essencial e do que verdadeiramente vale, esta sociedade tem de ignorar o pensamento da morte. De facto, confrontados com a morte, repentinamente tudo muda, as decisões são outras, porque aquilo que parecia decisivo aparece então a outra luz: banal e prescindível.

 

M. Rodríguez Olaizola refere uma experiência muito significativa. Pelo Natal de 2015, um conjunto de organizações quis fazer um estudo sobre percepções, prioridades e valores dos jovens madrilenos. Para isso, juntaram um grupo e foram perguntando, um a um, que prendas pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito significativa (na maioria dos casos, tinham indicado os pais). As respostas eram alegres, vulgares, mais ou menos originais. Mas, depois, seguia-se uma nova pergunta: E se soubesses que estas são as últimas prendas que vais oferecer, pois essa pessoa vai morrer, este é o último Natal que vais passar com ela? Aí, de repente, os rostos contraíam-se, o silêncio era todo, as palavras arrastavam-se, e as respostas surgiam cheias de profundidade, cuidado, emoção, intensidade. E a perspectiva do fim dava outra orientação às prendas, havia outra profundidade. Nesse cenário, as prendas estavam “carregadas de sentido, significado e ternura”. A consciência da morte dá outra sabedoria ao viver.

 

2.3. A ferida da fé.

Durante séculos, viveu-se no Ocidente numa sociedade crente. A fé era o que poderíamos dizer uma evidência social, de tal modo que o difícil era ser não crente, pois os não crentes eram estigmatizados e até perseguidos. Claro que havia o perigo de uma fé imposta, mas a cosmovisão comum era religiosa e, portanto, era mais fácil ser crente, aceitar a fé e praticá-la: as pessoas acreditavam, rezavam, celebravam naturalmente em conjunto.

 

Hoje, as coisas são diferentes, muito diferentes. A liberdade religiosa é — e ainda bem — um valor inquestionado. A fé e a religião estão submetidas à crítica, por vezes ácida, por parte da filosofia, da ciência e da opinião pública, também no contexto de um laicismo agressivo. As estatísticas mostram que a religião está em queda acentuada. Os valores são cada vez mais os da autonomia, do individualismo, do hedonismo, e talvez nunca como hoje se tenha afirmado tanto o valor desta vida terrena em contraposição com a vida eterna, desvalorizada. 

 

Como escrevia recentemente José Antonio Pagola, “depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.” E o mais difícil é que, neste contexto, a própria fé pessoal dos crentes está submetida à ameaça de erosão. Porque é mais confrontada com dúvidas que podem ou querem apresentar-se com carácter científico: como acreditar na vida eterna, se a ciência não precisa do espírito para explicar o Homem?; onde está Deus, se o mundo se auto-explica?

 

Mais dramáticos serão os dilemas, as encruzilhadas e as perguntas que concretamente o mistério de um Deus silencioso coloca. Porque é que existe o mal? Perante o sofrimento cruel, a eterna pergunta: Porque é que Deus não intervém? Que amor é o seu, se é infinitamente bom e poderoso e nem sequer parece sensível ao sofrimento dos inocentes? A fé é hoje um combate mais duro, e, escreve J. M. Rodríguez Olaizola, “o crente tem que aprender a manter a sua fé um pouco contra a corrente. A eterna dúvida ou o abismo perante o silêncio de Deus é hoje um desafio enorme para os crentes, que vêem que outros parecem viver de modo estupendo sem necessidade de referir-se a nenhuma religião nem a nenhuma divindade.” Porque é que Deus não se manifesta de modo claro, parecendo, pelo contrário, por vezes, que nos abandona?

 

A situação não é cómoda, é muito mais exigente. Mas será preciso ver e aproveitar as suas vantagens, para despertar uma fé tantas vezes infantilizada e acomodada, inerte, numa Igreja que, aprisionada por um sistema clerical, corre o risco se tornar cada vez mais um museu de antiguidades. Caminharemos cada vez mais para uma Igreja de voluntários, na qual a fé convive com um combate  pessoal, numa entrega única e confiada ao mistério do Deus silencioso e salvador. Com razões e todas as consequências na vida, seguindo o exemplo de Jesus e rezando aquelas palavras do Evangelho: “Senhor, eu creio, aumenta a minha fé”. Neste processo, o crente autêntico concluirá e até talvez possa mostrar a outros que a fé é mais razoável do que não acreditar. E poderá ainda  aperceber-se de que Deus não é uma necessidade, mas “um luxo”, como me disse uma vez o grande teólogo Edward Schillebeeckx. Como uma rosa que se dá, sem porquê. Gratuitamente.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 OUT 2019

DIOGO FREITAS DO AMARAL (1941-2019)

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“I've lived a life that's full
I've traveled each and every highway
But more, much more than this
I did it my way”
Vivi uma vida cheia
Viajei por todas as auto-estradas
Mas mais, mais do que isso
Fi-lo à minha maneira

 

     e omitiu de propósito

And now, the end is near
And so i face the final curtain
Agora, que o fim está perto
E que enfrento a cortina final

 

Não o fez por esquecimento - escreveu-se -  mas, certamente, para evitar a exposição pública de constrangimentos da plateia de amigos que assistia ao lançamento do seu último livro no Centro Cultural de Belém.

As feiras de outras vaidades deixou pelo caminho na hora certa. A poesia, soube-o a tempo, foi a virtude reencontrada.

É necessário, digo, o respeito pela cedência da força face à doçura. Por aí o reencontro com a delicadeza em que se faz saber a nós mesmos que o domínio do nosso sentir só se faz no sentido íntimo do outro. É o único progresso que nos humaniza porquanto por aí se partilham as solidões e as poeiras da vida.

O amor como todos os sentires, abre fendas, e a ideia de um recomeço implica sempre a sua transformação numa associação, enfim, será quando um género de fraternidade das armas da política, da economia, da justiça, dos estatutos, dos compromissos, da pobreza, fica desamparado pois dele em nós, não se exigiu o suficiente e chegou a nossa partida!

Já não é possível recomeçar-se mesmo que se recusem falhas, fazê-lo teria sido o segredo maior da coragem, a adesão da inteligência à verdade. Diria mesmo que para a abordagem da razão, talvez nem uma alma de criança baste; tudo é embrionário no fim. Sentiremos então que encontraremos tudo pelo deslumbramento das fronteiras que afinal se não traçam?

Se assim for, o amor venceu a morte e esta é doravante oferecida numa participação eterna na vida.

Se assim for, não há justiças compensadoras noutros locais que não aqui. A paz no mundo tem este preço, bem-haja quem teve no coração uma moral que soube o quanto a equidade respeita a dignidade humana e se funda numa sociedade livre.

 

   Teresa Bracinha Vieira

 

UM EXTENSO DIA GRÁTIS OU UMA MORTE NA RAMAGEM DO CÉU

 

Querida Inês,

 

Aqui estou de novo a responder às tuas cartas tentando repor alguma regularidade. Parece que passam mil séculos atropelando-se ou presumindo-se de se entenderem sempre que não tenho noticias tuas, ou, tu de mim não recebes a prosa das longas viagens em que nos ficamos sempre que as palavras das cartas que deviam ter seguido se interrompem.

 

Mas dizes-me, na tua penúltima carta, e a propósito do teu cansaço, que querias um extenso dia grátis e que a morte quando viesse fosse isenta de sofrimento. Meu Deus doce Inês, como é tanto o que pedes quando até a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. Parece-me mesmo que o que pedes está no fundo de uma lenda recolhida. Mas ainda bem que o que pedes é por escrito, pois só a palavra escrita é que conta, sobretudo, quando as ideias visitantes nos deixam sem se despedirem ou permanecem como lembranças que se evaporam.

 

E digo-te que me é tão poderoso e justo o que pedes que muito me afoitei já nas viagens que fiz procurando os locais onde dormem as certezas, e tanto, ou, apenas e tudo, para me certificar que uma certeza virá até mim e abrir-me-á as portas ao páteo dos jardins, daqueles que lá mesmo no centro, todos, os dias são grátis e medusados de tão leves, e eu mesmo sem ter lido a tua carta, logo corro para ti, para te trazer até lá. Lá, onde também a inquietude da morte não é sentida ou visível, é mera presa atada pelos nossos amores a que ela obedece.

 

Querida Inês, como é funda a tua fala, e tão vital e tão irónica. Julgo conhecer-te o suficiente para assim neste conversar contigo, dizer que te entendo tanto que chamo a este teu/meu desejo o de “Última Importância” depois dos essenciais.

 

Pudera eu Inês dar-te um dia grátis e uma morte que assegurasse em paz a função que mais desejas. Todavia, minha framboesa Amiga, só temos poder sobre quem nos teme e bem receio que a vida conhece bem seus donos e por entre eles não estamos nós.

 

Um dia, devo dizer-te, encontrei em casa de um amigo, um alferes vindo da guerra de Angola que me disse libertar-se de cada dia como de um peso absurdo, já que os dias dizia, obrigam a deitar fora tempo de vida e então riscava os dias numa espécie de calendário que arranhava na memória e aguardava desta forma o seu/teu/meu dia grátis.

 

À morte não se referia. Disciplinou-se. Não a podia matar.

 

Querida Inês cuida que até os sonhos são vingativos. Na volta do correio te respondo logo.

 

Tua Amiga

 

Isa

Teresa Bracinha Vieira