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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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3. MOSCOVO

Sendo Moscovo o centro do centripetismo russo, reforçado pela imigração de gentes oriundas de províncias e periferias da Grande Rússia, de emigrantes de países emergentes da anterior União Soviética, não me surpreendeu um notório crescimento económico, aliado aos vastos recursos naturais e investimentos do país, gerando dinheiro que transitava entre uma elite abastada e concentrada na capital administrativa, económica e política da Rússia, como plataforma giratória de novos ricos, os “Novos Russos”. Como centro polarizador de emprego e riqueza, não destoou saber da afluência de pessoas de meios rurais e periféricos, de emigrantes de países vizinhos. Tais emigrantes, fazedores de trabalhos menores que os moscovitas rejeitam, não eram bem vistos, em geral. Os de cultura muçulmana, no essencial, eram tidos como atrasados, conservadores, fundamentalistas e radicais, cultores de costumes que chocam com os da maioria dos russos. Os de países que compunham a União Soviética, eram vistos com ressentimento, traduzido num rancor subsequente a uma mágoa que se guarda de alguém que nos fez mal e que, após a ofensa, tem o desplante de nos procurar para uma vida melhor. Pessoas de etnia africana, não as vi, nem como turistas, homens de negócios ou emigrantes, o que o clima e a distância, por si só, não explicam, sabido que no auge da US, aí se formaram elites africanas.
Tive informação, por uma guia local, da ausência, à data, de desemprego em Moscovo,   não extensivo a toda a Rússia. Facto a que não seria alheio o custo de vida. Tendo como referência o nível médio russo, nada faria esperar preços tão inflacionados, numa urbe de ostensivos sinais exteriores de riqueza, desde toda a gama de marcas de topo internacional, a um súbito parque automóvel em quantidade e qualidade sobressaindo, aos meus olhos, jipes de alta cilindrada e opulentas limusines. Muita oferta podia ser adquirida a preços mais acessíveis ou iguais noutras urbes europeias, americanas ou similares. Mas existindo oferta, existe procura. De repente vieram-me à memória os afamados megamilionários e multimilionários russos, de enriquecimento súbito, dez por cento da população russa, aproximadamente quinze milhões, de um total de cento e cinquenta milhões, largamente concentrados em Moscovo. Coincidência, ou não, não vi, nem fui assediado por pedintes. Abordados (eu e família) por vendedores ao acaso, isso sim, propondo quinquilharias, pechisbeques, lembranças da era comunista, balbuciando palavras pontuais em português, ao reconhecerem-nos, com guias turísticos no nosso idioma, baixando e apelando ao regateio do preço quando a insistência não vingava. Quando afastados, não estendiam a mão. Orgulho ou resquício de condutas impositivas da US? Talvez mero acaso, dado que São Petersburgo não o confirmou.
Que o dinheiro circulava, provavam-no ainda o modo exuberante do vestuário usado no feminino, em locais centrais e de negócios, por vezes apelativamente sensual. Havia em demografia, em toda a Rússia, mais dez milhões de mulheres, o que aliado a uma progressiva liberalidade de costumes e autonomia económica, permitia uma gradual ascensão de mães solteiras, em especial em cidades como Moscovo. Falaram-me num número significativo de raparigas que escolhiam o pai e o marginalizavam sem nada saber da paternidade, cujos bebés eram criados ou ajudados por avós maternas acomodadas, além de alguma ajuda estatal, sempre insuficiente, alterando-se o conceito de família, não sendo o matrimónio um fim em si, nem a filiação seu fundamento.
Mesmo que se indicie não ser Moscovo uma urbe representativa de toda a Rússia, pelos contrastes do país, em paralelo com a sua territorialidade, a maior mundialmente, é uma cidade marcante para os moscovitas, russos e o mundo, centro impulsionador de messianismos e utopias, centro de poder de uma potência militar e nuclear, para aqui transferido após a revolução bolchevique, em substituição da imperial e cultural São Petersburgo. A revolução russa fez de Moscovo uma capital nacional, internacional e imperial, tentando construir uma nova sociedade internacionalista e revolucionária, em rutura com o passado e promessas de novos amanhãs, como o revela o contraste entre a arquitetura mais antiga e os edifícios construtivistas, igualitaristas e marcos comunistas do século XX. Entre estes a imponente Universidade Pública de Moscovo, em estilo gótico-estalinista, um mega exemplar da arquitetura pós-revolucionária, também conhecida por “bolo de noiva” ou “bolo de casamento”, cujas torres, na sua gótica verticalidade, a suavizam, não a libertando de um ar pesado. O mesmo quanto ao arranha-céus do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Dois dos exemplos maiores da ex-União Soviética ao tentar rivalizar em monumentalidade, força e poder com o ocidente. Apreciei, não me encantaram, nem deslumbraram. Muito menos edifícios e blocos de apartamentos massificados e todos iguais, austeros e não diferenciados da época comunista-estalinista, habitações dos últimos líderes soviéticos, zona residencial de Estaline (após o suicídio da mulher) e local onde finou. Anote-se um imponente obelisco evocativo da vitória na segunda guerra mundial, no Parque Vitória. Atração turística e símbolo do socialismo é o metropolitano, de estações monumentais, artísticas, funcionais, luxuosas, com candelabros, estátuas, esculturas, nichos, painéis, colunas, frisos, num chamariz faustoso e permanente.
Mas o mais profundo da alma e encanto de Moscovo é anterior a Outubro de 1917, onde sobressai a Catedral de São Basílio, ex-libris e imagem emblemática da cidade e toda a Rússia, onde o equilíbrio, harmonia exterior, a elegância e dignidade vertical das suas torres e cúpulas, numa explosão cromática dispersamente equilibrada, por entre cruzes  ortodoxas douradas nos cumes, me fez lembrar palácios reais encantados, embora aquém das expetativas o seu interior. No Kremlin, durante séculos símbolo do poder, desde cidadela dos czares, a quartel-general da ex-URSS e atual residência do presidente russo, chegados à praça principal, deparo-me com a Catedral da Anunciação, da Assunção, do Arcanjo, a Igreja dos Doze Apóstolos, da Deposição do Manto, a Torre Sineira de Ivan, o Grande, e o Sino do Czar. As dezenas de cúpulas douradas, coroadas por cruzes em ouro, erguidas para o céu, em prece e na vertical, cativam-me. Esteticamente belas, elegantes e cromaticamente apelativas, são como que substitutos das torres góticas das catedrais e igrejas cristãs do ocidente. Mesmo se singelas e simples na forma, fazem o culto do belo, elegância e diferenciação dos templos ortodoxos. Sobressai, no essencial, como na da Assunção, uma elegante imponência na verticalidade (em altura) e a sobriedade na horizontal (com omissão de espaço para os crentes). A exiguidade de espaço na horizontal tenta ser compensada pela ausência de cadeiras, bancos e instrumentos musicais, pelo que só as elites (czares, patriarcas) tinham direito a estar sentados, e não crentes e povo em geral. Frescos, ícones, pilares, cúpulas, locais de coroações, tronos, túmulos de czares, príncipes, de metropolitas e patriarcas da Igreja Ortodoxa, são sua parte integrante. Em que se ouvem cânticos ortodoxos por solistas profissionais do Conservatório Russo, alguns particularmente belos, raiando o sublime, se a acústica ajudar, às vezes para turistas e obtenção de receitas. Sem esquecer a Armaria do Estado, o museu do Kremlin por excelência, acumulando a principal riqueza de czares e príncipes, numa soberba coleção de peças em ouro, prata, coroas, diamantes, joias, insígnias reais, tronos, vestuário de coroações, ovos de Fabergé, carruagens, armas, armaduras, ofertas de embaixadores, com destaque para o diamante (do amante) Orlov, dado a Catarina, a Grande, que o usava no topo do seu cetro, o diamante do Xá Mirza e um trono incrustado de centenas de diamantes e turquesas. Além da Praça Vermelha, comprida, larga, espaçosa, versátil e de apetências multifuncionais, desde desfiles, manifestações e noivos tradicionalmente vestidos comportando, no seu todo, vários edifícios: o belo exemplar de tijolo vermelho do Museu de História, a muralha do Kremlin, a porta do Salvador, o mausoléu de Lenine, o Gum e a distinta Catedral de São Basílio. A que acresce a renovada Catedral de Cristo O Redentor, de veste alva e majestosa, com as suas cúpulas bolbosas douradas, num interior espaçoso, luminoso e equilibrado, sem excessos, restaurada após a sua destruição por ordem de Estaline. Bem como o valioso Museu Pushkin, um passeio pela rua Arbat, o Arco do Triunfo alusivo à derrota de Napoleão, a Catedral Kazan, a estátua de Pedro o Grande (no rio, comandando um navio), o lago inspirador do “Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, o Teatro Bolshoy, o miradouro dos Montes Pardal, a que muito mais haveria a somar, nume urbe merecedora de revisitar.
Foi surpresa, pela negativa, ser só falado russo pela maioria da população. Foi surpresa, muito positiva, ouvir a guia local num português fluente, de um profissionalismo acima da média, sendo reconfortante ouvir uma lusófila compensada em empregabilidade pela sua garra e gosto em falar o nosso idioma. Amália, Mariza, Cristiano Ronaldo e Mourinho foram nomes lusos que ouvi, no geral, como identificação de Portugal. As douradas e solares praias algarvias viam-se em cartazes turísticos.
Em jeito de síntese, resumiu a guia a vida em Moscovo e na Rússia, nestes termos:
“Aparência alegre, só na forma. A vida é alegria e dor. Foi-o assim no comunismo, é-o agora, como sempre foi e assim será.
- Que fazer?- A vida é assim!” 
Num misto de saudosismo e nostalgia, fez-me lembrar a “Alma Russa”, de Dostoievsky a Tolstoi, o materialismo dialético, de Lenine, a Estaline e Gorky, num lamento conformado de desencanto e de não confiar que o futuro seja redentor.
Que a vida tem sempre alegrias e dores, é uma verdade, em todas as latitudes e longitudes. Que fundamente uma atitude de demissão, dado existir sempre dor, entendo que não. Nada melhor que um exemplo da mesma guia, num passeio noturno, ao referir, junto da Escola Superior de Ballet, que por detrás da aparência angelical e excelência profissional do/a/s bailarino/a/s se ocultam dramas , tragédias pessoais e profissionais, exemplificando-o com condutas de concorrência perversa entre colegas, de total ausência de solidariedade e superego doentio e destrutivo, ao colocarem cobardemente vidros e outros objetos agressivos e cortantes no calçado de potenciais concorrentes, desmotivando-os ou anulando-os. Há casos em que tais métodos são mortíferos, atingindo os seus fins. Noutros, os destinatários não se resignam, indo em frente, prevenindo-os, evitando-os ou superando-os, não alimentando a resignação. Se a vida é sempre alegria e dor, esta pode ser convertida em júbilo, não nos resignando, muito menos por princípio, não dando azo à fatalidade, pois também há esperança, mesmo sonhando com utopias adiadas. Afinal, como diz o poeta: “Eles não sabem que o sonho, é uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer”.     

Impressões pessoais de Moscovo, em Julho e Agosto de 2009 
Texto revisto em 19 de Agosto de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício