Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

EVOCAÇÃO DE UM AUTO HÁ 620 ANOS

 

Seja-nos permitida esta breve evocação de um auto realizado no Mosteiro da Batalha há exatos 620 anos, para assinalar a sagração do Mosteiro. Tal como referi na “História do Teatro Português” está-se a um século do “Auto da Visitação” de Gil Vicente, considerado iniciático na História do nosso Teatro.


Mas interessa então evocar o que Alexandre Herculano escreveu nas “Lendas e Narrativas” acerca desse espetáculo realizado no Mosteiro em 1401:


«Pela porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.


Estas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a esperança e a Caridade; após elas vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba, todas com as suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enleava os olhos da grande multidão dos espetadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que se arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.


Feitas as vénias a El-Rei, a Idolatria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que ao início estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.


Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, carateava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria e rebentava o mais devotamente que era possível».


 Assim mesmo!...


Ora bem: apraz-nos agora citar a projeção que Teófilo Braga faz do que denomina “Escola de Gil Vicente” e que agrupa em continuidades ligadas a uma expressão geográfica-cultural. Agrupa os dramaturgos também de acordo com afinidades geográfico-culturais. E nesse aspeto, tal como já referimos, as afinidades geográficas dos dramaturgos da época refletem a origem cultural subjacente.


Assim, a partir do que tradicionalmente se qualifica como a “Escola de Gil Vicente”, expressão usada por Teófilo Braga, teríamos uma ligação clara às origens geográficas: Escola de Gil Vicente em Évora com Afonso Álvares e António Ribeiro Chiado, em Lisboa com Baltasar Dias, Camões, Gil Vicente de Almeida, Jorge Pinto, Henrique Soares e Jerónimo Ribeiro, Santarém Coimbra com António Prestes, Simão Machado e Baltasar Estaço: e esta tradição cultural estende-se pelo menos até ao Brasil…


A verdade é que a chamada Escola Vicentina em rigor chega aos nossos dias!...Podemos acrescentar, a esse respeito, a tradição de um “estilo vicentino” que, repita-se, em rigor chega aos nossos dias!...

 

DUARTE IVO CRUZ 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

 

  Mosteiro da Batalha (1388-1434)


D. João I (r. 1383-1433) mandou erigir o Mosteiro da Batalha em agradecimento a Nossa Senhora pela vitória na batalha que reafirmou a independência do reino português em 1385, em Aljubarrota, sobre as tropas castelhanas. Da ideia inicial do rei, que era a de erguer nos campos de Aljubarrota uma simples casa de oração, resultou a construção de um complexo monástico de grandes dimensões que foi atribuído aos frades de São Domingos. A doação do mosteiro aos monges dominicanos, em 1388, foi decidida por influência de João das Regras, conselheiro do monarca, em forma de gratidão pela ajuda que o rei deles recebera durante as Cortes de 1385. As obras prolongaram-se por mais de 150 anos, estendendo-se por várias fases de construção pelos reinados de D. João I (r. 1385-1437), D. Duarte (r. 1433 - 1438), D. Afonso V (r. 1438-1481), D. João II (r. 1481 - 1495), D. Manuel I (r. 1495-1521) e D. João III (1521-1557). D. João I e D. Duarte aí ergueram as suas capelas funerárias, transformando assim o mosteiro num panteão que enaltecia a dinastia de Avis. A construção do mosteiro condicionou a formação da vila da Batalha, cuja origem foi determinada pela desaparecida igreja de Santa Maria-a-Velha (que foi demolida nos anos 60 do séc. XX). Esta foi a primeira igreja conventual, situada a nordeste do núcleo monástico, pois a construção da igreja do mosteiro demorou 50 anos até ficar completa. 


O Mosteiro de Santa Maria da Vitória, desde o final do séc. XIV, tornou-se um dos maiores estaleiros góticos portugueses e foi, ao longo de mais de um século, centro de receção e difusão de correntes artísticas, funcionando como escola para diversos profissionais de arquitetura e construção.


Foram vários os mestres que trabalharam no Mosteiro da Batalha mas os dois primeiros foram os mais determinantes: Afonso Domingues, que assumiu a direção, entre 1388 até 1402, e o mestre estrangeiro David Huguet (de nacionalidade desconhecida) que dirigiu a empreitada entre 1402 e 1438. A Afonso Domingues deve-se o traçado geral do complexo monástico, na tradição gótica radiante, constituído pela igreja, a sacristia, o claustro real, a casa do capítulo, o dormitório, a cozinha e o refeitório. Huguet finalizou o trabalho iniciado pelo seu antecessor, introduzindo inovações correspondentes às características do gótico flamejante ou internacional. Seguiu-se Fernão de Évora a quem coube a direção das obras do claustro de D. Afonso V. E a Mateus Fernandes, ativo entre 1490 e 1555, deve-se-lhe o segundo momento construtivo das Capelas Imperfeitas, introduzindo no portal da entrada, uma das primeiras e originais manifestações de arte manuelina em Portugal.


Ao projeto inicial do mosteiro corresponde a igreja, o claustro real e a disposição das dependências monásticas.


O portal principal do Mosteiro é da autoria do mestre Huguet e ostenta um complexo programa iconográfico, único na história da arte portuguesa. De cada lado da entrada perfilam-se os apóstolos, nas arquivoltas define-se um conjunto de personagens do mundo celeste. E a atenção vai para o tímpano que é dominado pela figura de Deus que ao centro está sentado sobre um trono coberto por um baldaquino, ladeado pelos quatro evangelistas. É rematado com a Coroação da Virgem.


A Igreja de Santa Maria da Vitória é uma das maiores de Portugal e possui 80 metros de comprimento, 22 metros de largura e um vão máximo na flecha de 32,5 metros. Em planta, a igreja não revela grandes diferenças em relação ao gótico mendicante, de arquitetura clara e formas básicas. Apresenta três naves – as duas laterais são mais estreitas e mais baixas do que a central – transepto pronunciado e cinco capelas na cabeceira. As cinco capelas são poligonais e são antecedidas por tramos retos – a central é mais alta e mais profunda do que as quatro laterais. A igreja difere dos seus congéneres mais antigos pelo facto de ser completamente abobadada. As abóbadas, tanto da nave central quanto das colaterais, são nervuradas com ogivas e cadeias, tendo ao centro largas chaves ornamentais com temas vegetalistas. O uso das abóbadas na nave central obrigou à utilização de arcobotantes que descarregam o seu peso nos estribos do flanco exterior do templo.


A construção do claustro real foi conduzida por Afonso Domingues, até 1402 (ano da sua morte). A sua finalização esteve a cargo do Mestre Huguet, que respeitou o traçado de origem. O claustro é o maior e o mais importante do mosteiro. Só em 1515 é que o claustro ficará completo com a introdução de detalhes manuelinos da autoria de Mateus Fernandes, sobretudo nas bandeiras rendilhadas.


A meio da galeria nascente do claustro real, rasga-se a porta de entrada para a Casa do Capítulo. Esta sala é de planta quadrada e está coberta por uma abóbada de estrela de um só voo. A seguir à Grande Guerra este espaço foi escolhido para homenagear os militares mortos em combate, através da colocação do Túmulo do Soldado Desconhecido.


A Capela do Fundador, construída entre 1426 e 1434 pelo mestre Huguet, foi acrescentada ao projeto inicial pelo rei D. João I, no lado nascente à igreja. Representa o poder real associado ao poder religioso. É de planta quadrada, na qual se inscreve ao centro um octógono que funciona como lanterna e é coroado por um grande coruchéu em agulha. Ao centro ergue-se o túmulo conjugal de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, que inaugura uma nova tipologia de sepulcros. Os túmulos são de ornamentação discreta, com motivos vegetalistas gravados sobre a tampa e elementos heráldicos nos frontais.


A construção das Capelas Imperfeitas, iniciadas em 1434, foi da iniciativa de D. Duarte, de modo a servir-lhe de panteão pessoal. Está edificada atrás da cabeceira da igreja e foi também concebida por Huguet. As obras desta Capela nunca foram terminadas, daí a designação de Capelas Imperfeitas. O traçado está delineado mas o lançamento da grande abóbada central nunca foi concretizado. A capela apresenta entrada a eixo e é constituída por um corpo central octogonal, à volta do qual se dispõem sete capelas radiantes. As sete capelas existentes abrem-se para o centro através de grandes arcos quebrados ornamentados com lóbulos de pequenas dimensões e uma delas contém o túmulo duplo de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão. No reinado de D. Manuel I, foi executado o portal manuelino, concebido por Mateus Fernandes, assim como foram concluídas as sete capelas funerárias. No reinado de D. João III foi ainda construída, sobre o portal, uma varanda renascença, datada de 1533, da autoria de Miguel de Arruda.


Durante o reinado de D. Afonso V, no terceiro quartel do séc. XV, ocorreu a primeira ampliação do convento com a construção de um claustro de dois andares, não previsto no plano original. O piso térreo albergava as dependências destinadas ao armazenamento de provisões e o piso de sobrado destinava-se às celas dos frades e certamente também a livraria, o cartório, a botica e a enfermaria. A ausência de decoração e a utilização das formas mais puras e mais austeras são as características mais marcantes deste claustro.


Do conjunto monástico fazia ainda parte um terceiro claustro construído no reinado de D. João III, ligado, no lado este, ao claustro de D. Afonso V. Foi incendiado pelas tropas francesas em 1810 e acabou por ser demolido, tendo a sua pedra sido utilizada na construção da Ponte da Boutaca.


No Mosteiro da Batalha encontra-se ainda o mais importante núcleo de vitrais medievais portugueses, existentes na igreja, na Capela-Mor e na Sala do Capítulo. O programa de vitrais começou a materializar-se por volta de 1530 – entre o que desses vitrais resta, encontram-se fragmentos de composições figurativas, de ornato vegetalista e de composições geométricas e também painéis heráldicos.


O mosteiro da Batalha assume-se assim como um depoimento do poder real e da autonomia do reino, constituindo uma das marcas mais evidentes da segunda dinastia. A obra tornou-se um verdadeiro laboratório de formas e de opções estéticas que deixou marcas em todo o território português durante o séc. XV (verificam-se soluções predominantemente góticas mas também manuelinas e renascentistas).


É monumento nacional e integra a Lista do Património da Humanidade definida pela UNESCO, desde 1983.

 

 

Ana Ruepp

 

 

PEREIRA, Paulo, ’Arte Portuguesa. História Essencial‘, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011
CAMBOTAS, Manuela Cernadas, MEIRELES, Fernanda, PINTO, Ana Lídia, ‘Arte Portuguesa’, Porto Editora, Porto, 2006
www.mosteirobatalha.pt