Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"Se a verdade é mulher, não teremos razões para suspeitar que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, pouco entenderam de mulheres?" É com estas palavras que Nietzsche inicia a sua obra Para Além do Bem e do Mal, escrita em Sils-Maria, 1885.
Esta afirmação aplica-se não só aos filósofos, mas também aos teólogos, e, em geral, infelizmente, aos dirigentes, por princípio homens, da Igreja Católica.
Embora se não excluam traços maternos em Deus, a Bíblia chama a Deus Pai e não Mãe. Em primeiro lugar, porque se vivia numa sociedade patriarcal, e, depois, porque era necessário evitar toda uma linguagem que lembrasse as deusas pagãs da fertilidade...
É claro que Deus não é sexuado; portanto, chamar-lhe Pai é uma metáfora. Assim, tanto poderíamos dirigir-nos a ele como a ela, isto é, tanto poderemos chamar-lhe Pai como Mãe. E acrescento mesmo: o Deus que Jesus anunciou é o Deus bom e os cristãos deveriam dirigir-se-lhe sempre como Pai e Mãe (Pai/Mãe) — veja-se o famoso quadro de Rembrandt “O Regresso do Filho Pródigo” e repare-se nas mãos do Pai...
No Credo cristão, referimo-nos a Deus como Pai omnipotente criador do céu e da terra. Não dizemos: Mãe omnipotente. Isso está também vinculado à concepção da biologia grega, concretamente aristotélica, que, no acto da geração, atribuía toda a actividade ao sémen masculino. Portanto, a mulher era considerada essencialmente passiva. Não se esqueça que o óvulo feminino só em 1827 foi descoberto. Por isso, Santo Tomás de Aquino, na sequência de Aristóteles dirá expressamente que "a mulher é algo de falhado": de facto, de si, a força activa do sémen está orientada para gerar uma realidade plenamente semelhante, portanto, do sexo masculino; a geração do feminino acontece devido a uma fraqueza. Daqui concluirá que por natureza a mulher é subordinada ao homem, que os filhos devem amar mais o pai do que a mãe, que o sacerdócio está vedado às mulheres, que as mulheres não podem pregar, pois a pregação é um exercício de sabedoria e autoridade, etc...
Estas e outras razões, como, por exemplo, influências gnósticas e o celibato obrigatório dos padres, contribuíram para que a Igreja Católica se tornasse altamente hierarquizada e masculinizada, patriarcal. Note-se como a própria língua, que é sedimentação e forma de um mundo, está, no referente à autoridade, estruturada de modo machista: basta pensar que, se já não nos causa hoje dificuldade ouvir falar em ministra, por exemplo, ainda constitui autêntica agressão dizer, por exemplo, uma bispa... E que nome dar a uma católica feita cardeal?!...
As mulheres têm toda a razão quando criticam a Igreja oficial, pois ela discrimina-as de modo indigno. Mas têm obrigação de ser amigas de Jesus, pois ele não só não as discriminou como as defendeu sempre. Pense-se — só exemplos — na samaritana, na adúltera...; pense-se sobretudo em Maria Madalena, a primeira a fazer a experiência avassaladora de fé de que Jesus, o crucificado, ressuscitou, está vivo em Deus para sempre; ela reuniu de novo os discípulos, que tinham fugido, de tal modo que até Santo Tomás a chamou a “Apóstola dos Apóstolos”...
Constitui, pois, uma amarga desilusão que o Sínodo que terminou em Outubro com a aprovação do Papa mantenha as portas fechadas à possibilidade da ordenação das mulheres. Contra o Evangelho e os direitos humanos, continua o “clericalismo” que Francisco tanto diz ser “a peste” da Igreja. (Continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de dezembro de 2024
Olhe, minha senhora, e depois ele costuma bater-me, aquela coisa de casamentos, não é? Mas só quando está com a pinguita, eu até lhe desculpo, porque é o vinho que fala por ele, no bater.
O meu homem até é homem respeitador, às vezes, vai buscar-me à missa de domingo e tudo, mas, já lá vão três dias e ele parecia-me sem pinga e disse-lhe para vir jantar. Nós comemos sempre junto ao lume no chão da cozinha, casa de pobres, sabe como é? Ele até olhou de lado para a minha barriga, claro, orgulhoso, pois a cria está quase a nascer e de repente agarrou no tacho de ferro da sopa e atirou-ma à barriga. Eu gritei, gritei muito e a minha vizinha ajudou-me com um táxi para o hospital e olhe como tenho a pele toda amarfanhada e solta porque a roupa se lhe pegou. Mas sabe, minha senhora, ele julgava que por cima da roupa não queimava, era mais ou menos uma brincadeira tola e mais nada, que eu até carrego o filho dele. Eu até já pedi a Deus que o não castigue. Isto foi dele ser burro e magoar sem querer. Ele nem me deixa nem nada, pois o coitado não sabe o que seria de mim sem ele, e teme-se. É assim, minha senhora, rezo sempre: Pai Nosso seja feita a vossa vontade aqui na terra e um dia no céu. E cá ando, ponho esta pomadita e uso a fralda do meu mais velho em jeito de penso. Isto vai-me passar, sou mulher de força e, às vezes, muito poucos me entendem, percebe a senhora? E até me olham com estranheza. Mas que isto é amor é, e também resignação como me cabe, é sim senhora. E tenho cortinas na minha casa, tenho sim senhora, lavadinhas e penduradas, é chita, mas da linda, da linda mesmo.
E começou a chorar com a cabeça entre as mãos enquanto dizia:
- ó, minha senhora, às vacas nada lhes falta, nem às galinhas, nem às ovelhas, nem aos coelhos, nem aos campos que neles dou de manhã à noite, e faço o pão e faço tudo porque o pobre é na pinga que se mata, e o que é dele sem mim?
Coitado, está tão arrependido do que me fez agora que dorme na furgoneta que nem portas tem e lá está arrependido e ora veja a senhora, como é que sem a pinga ele se aquecia de noite, naquele arrependimento todo na furgoneta, o pobre?
Sabe, minha senhora, eu tenho um medo de que esta doença que anda aí se lhe pegue que nem sei. Dizem que se fica sem forças. Ora se é assim como pode um dia ajudar-me? Até pode querer, mas…até dizem que pode fazer mal à cabeça. Então o que será de mim se se esquece que só de mim gosta e claro dos filhos que para ele me faz em mim?
E ele anda preocupado, tolhido mesmo, e daí a pinga, pois eu perdi gémeos no ano que passou e é como ele diz, assim só com dois, se este que aqui trago correr bem…, a ajuda do Estado é pouquinha e ainda a pinga que não o deixa trabalhar, o pobre…
É assim, pronto! isto parece coiso, mas é a vida. A Senhora é uma santa, escuta e entende, pois, nada diz. Agora vou-me embora. Tenho de ir buscar a foice para cortar o milho e como se me cansa muito este trabalho meio agachada com este peso todo na barriga, se calhar tenho o filho hoje e o homem fica-me mais calmo vendo que o quente da sopa não fez mal à criança. Ele é muito preocupado, é como eu.
Penso tanto o que é uma mulher sozinha com dois filhos faria se ao meu homem lhe chegarem doenças para o torto.
Ah, e até me esquecia do porque é que aqui vim hoje, mas gostava muito que um filho da senhora fosse padrinho do meu que está aqui aos pontapés, morto por nascer.
Então depois diga-me. Eu já disse ao meu homem que sim, para ele não se tolher mais que ele respeita muito a senhora e seu marido e toda a família pois! E já bem basta não haver dinheiro em casa, hoje, e nem para a pinguita.
Obrigada e até depois. Ficam aqui umas perinhas que trouxe das minhas árvores, docinhas como rebuçados para os seus meninos. Desculpe ser pouco, mas é do coração.
Ai, e a senhora viu na televisão aquelas mulheres com o pano pela cabeça? Ai ! ,que horror. Deus nos proteja!
Há mulheres cuja voz é perturbadora e profunda como o tempo.
Tentávamos seguir o poder que nos sonhos nos tinha sido conferido pela música celta. Música também de Portugal, da Escócia, da Galiza, da Irlanda, música igualmente improvisada por trovadores; música que utiliza flautas e harpas e pianos e as línguas locais nas letras das músicas.
Sem que compreendêssemos porquê, sabíamos que iriamos encontrar por entre aquela escuridão, o predestinar da voz de Loreena McKennitt.
Era Primavera fria e no céu daquela noite só uma brecha de lua se deixava desvendar.
Seguíamos pelas ruas desertas procurando ouvir o rumo da voz desejada.
Os nossos olhos diziam a surpresa do nada no que era o tudo daquela noite sem sombras.
Todavia, caminhávamos, caminhávamos sem supor que a bússola dos nossos passos nos levaria a um largo imenso alumiado por lanternas suspensas das árvores.
De repente, no centro do ar de uma clareira, ao piano, uma mulher dona de magia, cuja voz de tão bela, de tão perturbadora, de tão profunda, nos seduzia, enquanto nós, agora abraçados, nos recordávamos termos dito um ao outro antes das trevas:
A Câmara Municipal de Tavira e a Fundação Calouste Gulbenkian apresentam no Museu Municipal - Palácio da Galeria uma exposição subordinada ao tema “Mulheres Modernas Na Obra de José de Almada Negreiros”. Desde logo se saliente o interesse da iniciativa e a qualidade da mostra, que reúne um conjunto relevante de obras de Almada, aqui devidamente expostas, analisadas e documentadas num livro onde, além de estudos e documentação importante e pouco conhecida no conjunto, representa acervo notável de reproduções de numerosas obras exemplarmente documentadas por textos e escritos diversos do próprio artista evocado e homenageado.
Na introdução do livro, sobre a obra de Almada, salienta-se um conjunto de textos e estudos introdutórios de Jorge Botelho, Presidente da Câmara Municipal de Tavira, de Isabel Mota, Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, de Jorge Queiroz, Diretor do Museu Municipal de Tavira e de Mariana Pinto dos Santos.
E seguem-se centenas de reproduções de obras de Almada Negreiros, devidamente “ilustradas” e enquadradas por textos do próprio Almada.
Porque Almada Negreiros é como bem sabemos um extraordinário artista plástico, um excecional dramaturgo, um notabilíssimo escritor: e tudo isto surge devidamente documentado neste vasto e notável livro-catálogo da exposição.
Evidentemente, o que mais sobressai na exposição e no livro é a reprodução do conjunto das pinturas e desenhos de Almada. Mas aqui, queremos sublinhar também os textos que convertem o catálogo numa verdadeira antologia da obra escrita de Almada Negreiros.
Salientamos então algumas referências a peças, a teatro e a cinema, a espetáculos, feitas pelo próprio Almada Negreiros e reproduzidas no livro:
«Deixa-me passar! Tira-te da minha vida! Já viram isto? Sentinela à vista! Toda a vida sentinela à vista! O meu íntimo devassado!» (in “Deseja-se Mulher”)
«De uma vez num passeio, o arco-íris foi quadrado até ao fundo dos raios x para lá do cavalo transparente numa continuidade cinematográfica contornando a apologia feminina sagradamente epiléptica em SS de cio todo realce e posse de reflexos.» (in “K4 O Quadrado Azul”).
«Uma noite encontrou-a num cine. Ela não devia tê-lo visto. Seria uma boa ocasião de observá-la desprevenida. Ela porém era invariável.» (in “Vera”)
«Um dia “La Argentinita” entra em cena pelo mesmo lado que as outras, faz o mesmo que as outras fazem, dá as mesmas voltas, o sapateado, as castanholas, os couplets, e tudo é diferente, saudável, genial. Nós ficamos com a opinião de que a Espanha artista tem estado mal representada até à chegada triunfante de “La Argentinita”» (in DL- 17.02.1925).
E muitas mais são as citações, e muitíssimas mais as reproduções que tanto valorizam este livro, notável “catálogo” da exposição do Palácio da Galeria de Tavira.