A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de agosto de 2018
Joaquim Sapinho foi convidado para revisitar as reservas do Museu Gulbenkian para dar a sua leitura da coleção.
PERANTE A INTERROGAÇÃO DO TEMPO
Perante o relógio de bolso, desenhado por René Lalique, que Calouste Gulbenkian usava quando morreu, na sua caixa original, tomamos consciência do escrúpulo do colecionador em muito mais do que uma galeria de curiosidades. É o génio de um homem multifacetado e apaixonado pelo mundo e pela humanidade que encontramos – e aquele relógio é símbolo do tempo, o grande mistério da vida humana. Joaquim Sapinho é um cineasta de créditos firmados. A sua paixão pelos museus e pelas coleções levou-o a ser convidado para uma leitura pessoal sobre as reservas de um Museu especial e sobre o fabuloso percurso de Calouste Sarkis Gulbenkian, ao longo de uma vida, que lhe permitiu reunir uma das mais importantes coleções de arte do mundo. E o certo é que essa coleção constituiu para Sapinho desde muito cedo uma referência – “era o museu da minha infância, um modelo de museu para a minha vida inteira”. E assim imaginou uma intervenção que partiu de um mergulho nas suas memórias antigas, sentindo-se de novo criança ao entrar nas reservas da coleção, como se regressasse à leitura de “Tintin e os Charutos do Faraó”. E assim encontrou notícias incríveis de outros espaços com ramificações infinitas, colocando-se na pele do colecionador apaixonado. Partindo das moedas de ouro gregas, revela-nos como Calouste Gulbenkian mandou fazer uma caixa e depois encomendou à casa Louis Vuitton um estojo para transportar esse precioso tesouro. E é a ideia de viagem que o homem da imagem quis apresentar como paradigma do Museu. Mas não há apenas a viagem física, há igualmente a viagem no tempo e no espaço. “Eu parado com uma obra, viajo. Ao olhar para as moedas, imagino Gulbenkian a brincar com elas e a dar a mão a alguém na Grécia Antiga ou em Siracusa”. Os cadernos, as listas, as contas, os pequenos objetos, tudo identifica uma personalidade de exceção – capaz de aliar a formação científica e técnica, o sentido do negócio e a sensibilidade artística. Quando se fala de Património Cultural, aí está a capacidade de compreender um nexo de continuidade, em que cada nova geração vai acrescentar valor ao que recebeu, em conhecimento e em cuidado. E lembramo-nos de Mortimer, de E. P. Jacobs, no Cronoscafo, a máquina de “Armadilha Diabólica”, que permitia viajar no tempo, como em H. G. Wells, apesar de alguns pequenos e perturbadores enganos de percurso e de época. Joaquim Sapinho usou de um grande rigor nessa viagem no tempo – começando com as imagens captadas pela Pathé Filmes em 1928 na inauguração da capela de S. Sarkis em Londres, que Gulbenkian mandou construir em memória de seus pais. Só compreendemos o tempo através da memória.
COMO O TÚMULO DE UM FARAÓ
“As reservas deste museu são como o túmulo de um faraó – cheias de tesouros, mas também de objetos pessoais que nos ajudam a compreender como viveu, que mundo era o seu, em que é que acreditava” – esclarece o curador (Público, 20.7.18). Ao depararmos com a imagem do século XVIII que representa Eneias a fugir de Tróia, depois da vitória dos gregos, apercebemo-nos de que o herói transporta com ele Anquises, que carrega os deuses do lar em pequenas esculturas. Joaquim Sapinho dá um especial sentido a esta presença. Não é só a essência da noção de património que está em causa, o serviço (múnus) relativamente aos nossos pais (patres), mas também a experiência de cada um, ora para Gulbenkian na capela de Londres, ora para o próprio cineasta na lembrança pessoal do seu próprio pai (com quem começou, aliás, a nossa amizade). Gulbenkian é como Eneias e os deuses que Anquises transporta representam a extraordinária coleção que está em Portugal, ao serviço do mundo. De facto o Museu em Lisboa foi uma opção do próprio fundador para que o usufruto da magnífica coleção não passasse despercebida, integrada em qualquer outro grande museu. E o que agora se mostra é uma excecional câmara de maravilhas – que constitui um convite à viagem, desde a Anatólia, como Eneias, até à criação de um lugar de chegada, que pudesse ser um apelo contante à partida, pelo conhecimento e pela compreensão das diferenças. Lisboa não é um acaso, é um lugar de partidas para o mundo e a cidade simétrica de Bizâncio. Gulbenkian sentiu isso e Azeredo Perdigão soube interpretá-lo muito bem. Quem não compreender isso perde o essencial. As peças são múltiplas e fascinantes: a lista do que se encontrava na secretária do quarto da avenue d’Iéna, 51 toca-nos. E há tudo o mais: as fotografias do avô e do pai, os passaportes e vistos diplomáticos (um em especial ilustra o desencontro com o Reino Unido), a placa da Chancelaria da Legação Imperial do Irão, um pequeno pássaro embalsamado, um tapete de oração otomano, moedas de Constantinopla, o precioso fragmento de um livro de horas do século XV (uma nota muito especial de espiritualidade), desenhos de Fragonard, panejamentos que pertenceram a Maria Antonieta… Veja-se, aliás, a carta que Gulbenkian envia a John Walker, conservador da National Gallery de Washington. Estamos perante a cabal demonstração de que o atual Museu realiza o desígnio do colecionador, encarando as obras da sua coleção como “filhas”, que não deveriam perder a sua identidade e companhia, não se misturando num grande museu ou não ficando separadas entre si e do público. O fundador deseja que o seu Museu seja vivo, tenha pessoas e seja um fator de encontro de civilizações e cultura.
SÓ O MELHOR!
O exercício agora feito por Joaquim Sapinho completa um longo caminho de estudos e investigações. Como não tinha sido feito antes, vai-se ao encontro de Calouste Sarkis Gulbenkian não apenas como genial homem de negócios ou como colecionar ímpar, mas como representante de um diálogo entre culturas e espiritualidades que na cidade de Lisboa sentiu de outro modo a magia de Istambul. Recordo bem, como Orhan Pamuk me disse maravilhado na Biblioteca de Arte da Gulbenkian que tinha visto aí originais sobre a cidade do Bósforo que antes não vira no seu esplendor. A cada passo, sentimos a tentativa de construir a casa ideal. Mas a perfeição é impossível. Calouste diz à mulher: “Prometi-te um palácio, não te prometi a felicidade”… Eis o que sentimos neste exercício de espanto. Procuramos o homem insatisfeito, mas nunca desistente. Por isso, vamos descobrindo a outra face do génio, que deseja legar à posteridade a demonstração de que uma sociedade melhor é possível. Se dizia aos seus colaboradores que só queria o melhor (“Only the best!), fazia-o projetando um futuro em que a felicidade pudesse ser conquistada com passos persistentes. Daí os quatro cavalos que constituem o símbolo da Fundação Gulbenkian: Arte, Educação, Ciência e Beneficência. Trata-se de um nómada muito especial. Quando parte de Constantinopla para o mundo não esquece que a viagem é um modo de encontrar os outros e de se encontrar a si próprio. Joaquim Sapinho compreendeu-o bem, exigindo que prossigamos na capacidade de perceber melhor a importância do homem e da instituição que criou e de um sentido aberto e cosmopolita apaixonante…
Guilherme d'Oliveira Martins