CADA ROCA COM SEU FUSO…
O CÉLEBRE CASO DA NÃO PRODUÇÃO DE PORCOS…
28 de março de 2019
O António Alçada Baptista era um contador de histórias inesgotável. Estar-se com ele era sempre um deleite, uma vez que se passava sempre um tempo fantástico… E gostava muito de contar o que aqui vou recordar, e que é a ilustração suprema do analfabetismo da tecnocracia. Millor Fernandes dizia, aliás, que «a economia compreende toda a atividade do mundo. Mas nenhuma atividade do mundo compreende a economia». E o António dizia por outras palavras isto mesmo.
Por isso, recordo o célebre caso da não criação de porcos. Tudo partia da existência de um mirífico subsídio por cabeça para a não criação de porcos. Quantos desses apoios não conhecemos nós, em várias circunstâncias e por múltiplas razões? A história tinha a ver com o requerimento feito por um pobre agricultor a um distante Ministro. Basta ler a parte final para entender tudo. Oiçamos. «Excelência. Estes porcos que não criaremos teriam comido 10 mil sacas de trigo. Ora, assegurando-nos que o governo indemnizará igualmente os agricultores que não cultivem o trigo.
Nesta ordem de ideias, poderemos esperar que nos deem qualquer coisa pelas sacas de trigo que não serão cultivadas para os porcos que não criaremos. Ficar-vos-emos extraordinariamente reconhecidos se nos responder o mais rapidamente possível, porquanto julgamos que esta época do ano será a melhor para a não criação de porcos e, por isso, gostaríamos de começar quanto antes. Queira Vossa Excelência, Senhor Ministro, receber os protestos da maior consideração. P.S. – Excelência. Não obstante o exposto poderemos engordar 10 ou 12 porcos só para nós, sem que isso venha a perturbar a nossa não-criação de porcos? Queremos assegurar que esses animais não entrarão no mercado e não significam mais do que a maneira de termos um pouco de toucinho e presunto para o inverno». O exemplo é extraordinário. Rio-me comigo mesmo quando lembro o gozo sentido pelo António a contar este episódio, e todos nós a ver um funcionariozinho de pala e mangas de alpaca e receber a missiva e a tentar responder-lhe com toda compostura …
E corri à estante para reler o Alexandre O’Neill, amigo do peito do António, que insistiu sempre que se davam bem porque nunca se levaram demasiado a sério…
«Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós... »
Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa.
Agostinho de Morais