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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


SEXTA-FEIRA MAIOR…
por Camilo Martins de Oliveira


"Sinto hoje muito, minha Princesa de mim, esta partilha, íntima e secreta, do meu diálogo interior contigo. É quase hora de tércia, aqui em Nagasaki, madruga aí esta Sexta-Feira Santa. Diz-nos a tradição evangélica que à terceira hora morreu Jesus. E propõe-nos a liturgia católica das horas o capítulo 53 do livro judeu do profeta Isaías: "Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. E nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva. Pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes; cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as culpas de todos nós. Maltratado, resignou-se e não abriu a boca. Como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda ante aqueles que a tosquiam, ele não abriu a boca". Um dos primeiros livros sobre os bombardeamentos atómicos cuja publicação, no Japão, foi autorizada pelo ocupante americano intitula-se "Kono Ko o Nokoshite" («Ao Deixar Estas Crianças»). Estas eram os filhos, uma e um, que lhe dera a mulher que a terrível bomba matara. A despedida anunciada, agora já só ele a podia dizer, sabendo bem que as radiações que o tinham atingido o matariam. Ao fim de quase seis anos, em 1951... Receberia a bênção papal, a visita de Helen Keller e do imperador Hiohito, em maio de 1949, já depois de ter publicado "Nagasaki no Kane" (Os Sinos de Nagasaki), que seria aproveitado pelo cinema. Sobre isto, como sobre a visita do imperador Showa (Hirohito), inibe-me um pudor quase religioso de dizer seja o que for. Mas deixo-te, Princesa da minha confidência, uma interrogação: oportunismo ou arrependimento? O Professor Takeshi Nagai era um respeitado médico radiologista e um cientista investigador que, já antes da explosão atómica, se expusera, por condição e dever de ofício, a raios X... Esse homem brilhante e considerado morre, vítima da força destruidora do átomo, aos 43 anos. É japonês, um dos muitos que, em Nagasaki, são cristãos católicos. Será, pelo misterioso lado bom dessa péssima ironia do destino - que tantos inocentes castiga - um dos inspiradores do profundo sentimento pacifista que crescentemente se irá apoderando da alma japonesa. De budistas e shintoístas, dos cristãos que são, quiçá,1% da população… A humilhação do Império do Sol Nascente tinha gerado, na circunstância condicionante da ocupação americana, a resignação. Mas a resignação não é um exercício de liberdade. Não é nobre. Tem propensão para a manha, para o "peut êt’e bien qu’oui,peut êt’e bien que non" dos "auvegnat"... ou o albiónico "wait and see"... A nobreza dos homens exige-lhes, não o oportunismo míope do bem-haver imediato, mas um esforço de entendimento do que somos, donde vimos, para onde vamos. A revolta - que tanto opomos à resignação - é certamente compreensível, muitas vezes legítima e até necessária. Mesmo S. Tomás de Aquino assim a entendeu. Mas pode sofrer de um excesso de propensão à violência destruidora. Daí a importância, para as nossas vidas, da harmonia, não como receita (a harmonia não se impõe), mas como procura. Como na música de Haydn, de que tanto gosto. Até nas "Sete palavras de Cristo na Cruz". Procurar a harmonia é abrir uma janela à angústia. Hoje, em Sexta-Feira Santa, recolhido na catedral de Urakami, em Nagasaki, cuja construção foi iniciada em 1895, na era Meiji, e terminada  -- qual obra das nossas catedrais medievais  - em 1925, para ser destruída pela bomba de 1945, e reconstruída em 1959, recordo essa abertura mística de Takeshi Nagai, cientista japonês: "Não terá sido Nagasaki a vítima escolhida, o cordeiro sem mancha, sacrificado numa fogueira total, num altar de sacrifício, respondendo pelos pecados de todas as nações durante a 2ª Guerra Mundial?". Ocorrem-me esses versículos do Apocalipse de S. João: "Digno é o Cordeiro sacrificado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor!..." Mas que sabemos nós, Princesa de mim, dos misteriosos desígnios de Deus? Continuaremos a inventar milagres que O domestiquem e reduzam ao temor do nosso entendimento? Ou bradaremos aos céus, com gestos feios, que Ele não existe e o seu conceito vago apenas nos atormenta? Penso, neste dia, em Nagasaki, lembrando as frustrações de esforços missionários, os silêncios e desvios sincretistas de igrejas remotas, que foram sobrevivendo na fé exilada mas fiel dos seus santos. Sinto-me em comunhão com eles, talvez mais do que com tantos outros que, pela pressão de "lobbies beatos" por cúrias romanas foram sendo canonizados... Se Deus existe, são dele, e dele só, o poder e a glória, o segredo do absurdo e da redenção... E no coração de Deus habitarão todos os povos e religiões do mundo. Dou-lhe hoje graças por acreditar que Ele se me revelou em Jesus Cristo. Na contemplação do Deus humanizado e crucificado comungo o mistério da cosmogénese (diria Teilhard) que conhecemos como sofrimento do mundo E lá me volta, e dá voltas, o nosso Bernanos e sua alegria: "Tudo é graça!". Percorri, anos mais tarde, os mesmos passos de Camilo Maria em Nagasaki.


Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 29.03.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


DE NAGASAKI…
por Camilo Martins de Oliveira


"E cá estou, uma vez mais, em Nagasaki. Se tivesses vindo comigo, deambularíamos ambos por aí, visitando a cidade que desconheces. Mas estou só, minha Princesa de mim, e assim me vou ficando por pontos de vista que já conheço, a imaginar a Nagasaki que não conheci.
Foi com a chegada dos portugueses ao sul de Kyushu, em meados do séc. XVI, que o Japão iniciou contactos com produtos, gentes e culturas de outras áreas do globo, e é nesta circunstância que Nagasaki passou de simples aldeia de pescadores a porto, cidade e ponto de encontro do Oriente nipónico com o Ocidente europeu. Foi o "daimyo" Omura Sumitada que abriu o seu feudo aos missionários jesuítas do Padroado Português do Oriente, depois de um encontro com o padre Cosme de Torres que, então, nomeou o padre Gaspar Vilela para a aldeia de Nagasaki, onde vivia uma pequena comunidade de cristãos, governada por Nagasaki Jinzaemon, genro do "daimyo", e que se batizara com o nome de Bernardo. A proteção oferecida por Sumitada e a cristianização da população encorajam o estabelecimento dos jesuítas, que para lá vão chamando cristãos perseguidos noutras regiões. É assim que, em 1570, o padre Melchior de Figueiredo começa a estudar a baía, com vista na instalação de um porto comercial. No ano seguinte, já se urbanizava Nagasaki, feita cidade onde afluíam navios e mercadores de outras paragens. Entre eles, a nau de Tristão Vaz da Veiga, que inaugura o período das visitas anuais da Nau do Trato. Começa assim uma era de prosperidade, com algumas vicissitudes devidas à cobiça que a cidade, seu porto e comércio despertam em senhorios vizinhos. Mas durante 69 anos Nagasaki será o porto por excelência dos portugueses e a cidade dos jesuítas, por 35 anos, aliás, sede de bispado e da missão católica no Japão. Ali nascem e dali se propagam a moda e o gosto "nanban" - e não resisto a transcrever dois saborosos textos coevos, um do Padre Visitador, Alessandro Valignano, outro do padre João Rodrigues, o "Tçuzu" (intérprete). O primeiro refere-se a uma missão dos padres e dignitários cristãos à cidade imperial (Miyako, hoje Kyoto): "Na manhã seguinte, os Portugueses, revestidos do seu mais fino vestuário, formaram filas e saíram. Era um espetáculo maravilhoso ver cachos de gente que se juntava, vindos de longe e de perto, para mirar a procissão antes dela chegar a Miyako. À medida que nos aproximávamos da cidade, todas as ruas por onde assava a nossa procissão estavam cheias de gente sem conta, e todos os que observavam aquele ordeiro cortejo de inabituais e exóticas pessoas que passavam em vestidos resplandecentes estavam muito admirados e falavam uns com os outros, dizendo que cada uma delas devia ser um "bodisatva" descido dos céus...". O segundo é respigado de uma carta de João Rodrigues: "Quando Hideyoshi deixou Nagoya para atender sua mãe doente em Kyoto, todos os "daimyo" que estavam em Ngoya o acompanharam a Miyako, vestidos à moda do nosso país. Os alfaiates de Nagasaki estão todos tão ocupados que não têm um momento livre, mas mesmo assim o acompanharam a Miyako. Recentemente joias de âmbar, cordões de ouro e botões tornaram-se populares entre eles. Agrada-lhes a nossa comida, especialmente ovos de galinha e carne de vaca, que os japoneses dantes detestavam. O próprio Hideyoshi começou a gostar grandemente desses alimentos. É bastante admirável como tantas coisas dos Portugueses acabaram por ter tão boa fama entre eles". Outro missionário, Francesco Pasio, escreve em 1594: "Hideyoshi gosta muito de vestuário português, e os membros da sua corte, por emulação, vestem-se muitas vezes ao estilo português. Isto é verdade mesmo para "daimyo" não cristãos. Usam rosários de madeira exótica ao peito, penduram crucifixos no ombro ou à cintura, e às vezes até traze um lenço na mão. Alguns, especialmente dispostos à gentileza, decoraram o Pai-Nosso e a Avé-Maria, e recitam-nos enquanto andam pela rua. Não o fazem por troça dos cristãos, mas simplesmente para mostrarem a sua familiaridade com a última moda, ou porque pensam que é coisa boa e eficaz para o sucesso da sua vida quotidiana. Isso leva-os a gastar grandes somas na compra de brincos ovais com representações de Nosso Senhor e de Sua Santa Mãe". Essa Nagasaki e o cristianismo foram abafados e os portugueses definitivamente expulsos, mesmo da ilha artificial de Deshima (de fora), à qual haviam sido confinados. Só a partir desta - e durante dois séculos e meio - holandeses (e chineses) foram autorizados a assegurar um mínimo de comércio internacional. Quando, em finais do séc. XIX, após a reabertura do Japão ao estrangeiro, um padre francês celebrou, em latim, missa em Nagasaki, um grupo de japoneses que estivera recolhido ao fundo da igreja, veio perguntar-lhe se acreditava na presença de Cristo na hóstia e na Virgem Maria sua Mãe, e se obedecia ao Papa em Roma... Perante a resposta afirmativa terão exclamado: - Então és dos nossos! Mas a cidade em que reconheciam o regresso da religião banida há séculos já era outra e acolhia projetos industriais e de construção naval, em parceria com estrangeiros, que serviriam de pretexto ao bombardeamento atómico de 1945 naquele local". Camilo Maria continua esta carta, sem mais ironia do que a do destino cruel: "esta - diz ele - é muitas vezes mais amarga e cáustica do que risonha. E chega a ser feia, quando castiga inocentes, com tanta injustiça que quase perdemos a fé em Deus. Pois, todavia, Jesus disse aos seus discípulos: "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados"...  E o Marquês de Sarolea contará, como leremos, a história de Takashi Nagai, o médico radiologista, e cientista japonês, católico de Nagasaki, que sofreu e morreu dos efeitos da radiação nuclear da bomba atómica. O tempo dos homens, por vezes, não parece ser o tempo de Deus.


Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 27.03.13 neste blogue.