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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

83. ERNST JUNGER E O “O SENHOR DA FLORESTA”


Sempre houve intelectuais, pensadores, ideólogos e cientistas que deram caução a totalitarismos e ditaduras de vária índole. 


Hitler, Mussolini, Lenine, Estaline, Mao, tiveram legiões a elogiá-los e a justificá-los.  


Há os que sempre denunciaram totalitarismos e ditaduras, não abdicando das suas ideias em favor da liberdade, extensiva a todas as manifestações artísticas e científicas.


Outros colocaram a experiência e a observação empírica à frente da teoria, para provarem se tinham ou não razão.  


E há os que fizeram um percurso não linear, de reservas, instruído de simpatias totalitárias rumo a uma não aprovação. 


Ernst Junger, famoso escritor, foi um deles.  


Viveu na atmosfera asfixiante e belicista das duas guerras mundiais, foi ferido várias vezes na primeira, condecorado, um herói arquetípico germânico, reunindo todas as condições para ser uma referência do nacionalismo alemão, autor de escritos nacionalistas e figura da extrema direita alemã.  


Simpatizou com a ascensão do nacional-socialismo, foi antissemita, mas quando Hitler tomou o poder resguardou-se e não assumiu qualquer compromisso. Recusou entrar na academia alemã de poesia, submetida ao controlo de Goebbels, apaixonou-se por uma judia, aplacando gradualmente o seu antissemitismo. Deixou Berlim depois de desacreditada e espancada Else Lasker-Schuler, alemã e judia, galardoada com um prémio literário (poesia), em 1932. Convivia com o pacifista alemão, de origem judaica, Ernst Toller, que emigrou para os Estados Unidos, após a tomada de poder pelos nazis. Foi vigiado pela Gestapo, teve benevolências, cedências, afastamentos, suspensões e proibições. Quando da detenção do filho Ernstel, por se manifestar contra Hitler, ativou conhecimentos e o seu prestígio, libertando-o e perdendo-o na guerra. Quando chamado, fez parte do exército alemão, que ocupou Paris, em 1940.


Antes de alistado, de novo, escreveu Sobre as Falésias de Mármore, romance alegórico e profético, que ganhou fama além-fronteiras, denunciando regimes ditatoriais, incluindo o nazismo, e testemunho, para alguns, de algo que ao mesmo tempo superava e limitava as intenções do autor. Avisado Hitler do perigo que representava, ordenou que o deixassem em paz, pela sua audácia e heroísmo.   


No livro é protagonista o Senhor da Floresta: 


“Tal como, em plena montanha, um espesso nevoeiro precede a tempestade, também uma atmosfera de insegurança precedeu o Senhor da Floresta. (…) 


Tal como a erupção vulcânica que estoura, desaparece e surge de novo, assim os dias de tempestade e de calma se misturavam e sucediam.     


Era uma manifestação da sagacidade do Senhor da Floresta.  


Lançar o medo pouco a pouco, em pequenas porções que iam aumentando até que toda a resistência tivesse sucumbido. Também ele tinha um papel a representar (…) de defensor da ordem que se propunha acabar com a anarquia reinante. E enquanto os seus agentes inferiores engrossavam a massa de desordeiros, os iniciados penetravam na magistratura e nas igrejas e o povo via neles espíritos enérgicos que o chamavam à razão.


O Senhor da Floresta era como um médico louco que provoca o mal para depois tratar a doença com os novos remédios que criou”
.     


Em Paris o círculo de hostilidades apertou-se, por se relacionar com os oficiais alemães insatisfeitos com Hitler, que compreenderam a inevitabilidade da derrota, tentando derrubar o regime nazi (operação Valquíria), tentativa frustrada saldada com a execução de amigos, sendo EJ afastado do serviço por conduta indigna, sem provas da sua cumplicidade ou participação ativa.    


Após a derrota nazi, frustrou-se a intenção de o querer julgar por colaboracionismo com o nazismo (fala-se da intervenção de Brecht, com quem se dava). Foi-lhe proposta uma declaração de arrependimento (processo de desnazificação), que recusou, alegando não ter sido nazi, nada tendo de que se arrepender ou renegar, tendo tido obras proibidas.


Viveu flutuando com a corda ao pescoço, no fio da navalha, oscilando na corda-bamba, numa tensão permanente, presa em dois pontos onde os equilíbrios representavam uma vida perigosa e instável, insegura, por um triz, sem se ter exilado ou emigrado, antes procurando uma paz interior, ameaçada e corrompida pelo Senhor da Floresta. 


Perguntaram-lhe, um dia, dezenas de anos após o fim da guerra, se o Senhor da Floresta era o retrato de Hitler. Respondeu:      


“A propósito do Senhor da Floresta, houve um amigo que me disse: “Este sapato serve em muitos pés”. Se é verdade que o modelo podia assentar bem a Hitler, a História mostrou que também assentava a uma personagem de ainda maior envergadura: Estaline. E pode assentar a muitos outros homens. O que todos estes Senhores da Floresta têm em comum é o ódio à cultura digna desse nome. É ela que perturba, que desvia a linha de ação que eles traçaram. O homem para quem a cultura existe é um homem que perturba, pela sua simples existência, porque lhe repugnam a violência, o fanatismo, a barbárie. Há de haver sempre um limiar que ele se recusa a ultrapassar, um ato, um crime que ele se recusa a cometer…quanto mais não seja por razões estéticas”
.      


Ganhou o prémio Goethe, em 1982, finou em 1998, com 102 anos.


30.07.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

79. CULTURA E TOTALITARISMOS

II - FASCISMO


Michael Mann, define o fascismo como “a busca de um estatismo nacionalista transcendente e depurador através do paramilitarismo”, englobando cinco termos centrais: nacionalismo, estatismo, transcendência, depuração e paramilitarismo (The Sources of Social Power). Os principais redutos europeus, entre as duas grandes guerras, foram a Alemanha. Áustria, Hungria, Itália, Roménia e Espanha. Italianos e nazis foram, de longe, os mais relevantes. O Estado Novo português, autoritário e ditatorial, é tido como um dos exemplos dos regimes “fascistas entre aspas”, em que as tendências fascistas são diluídas por outra tendência: o deus, pátria e família de Salazar. É tido como um regime corporativista que aumentou o estatismo e o nacionalismo orgânico, culpabilizando e intensificando a perseguição e exclusão das minorias e da esquerda, chegando a apropriar-se de ideias fascistas para reprimir os verdadeiros fascistas, assim sobrevivendo e mantendo o poder.


O fascismo também tinha como imperativo urgente a necessidade de construção de um homem novo. Os fascistas italianos incorporavam-no na romanidade. Os nazis desejavam um homem novo biológica e culturalmente puro, uma raça superior que fosse a representação mais pura do arianismo, habitando solo ariano, aí procurando os fundamentos da sua cultura nacionalista.      


NAZISMO OU NAZIFASCISMO
      


O nazismo é tido como o expoente máximo ou uma forma extrema do fascismo (ou nazifascismo), desde logo pela sua depuração reforçada pelo racismo e antissemitismo, em que judeus e outros grupos tidos como indesejáveis (ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, pacientes de hospitais psiquiátricos) foram perseguidos, escravizados ou assassinados, membros da oposição política e religiosa brutalmente reprimidos, presos, mortos ou coagidos ao exílio.  


Daí que o nazismo, mais étnico, seja tido como mais mortífero e radical que o fascismo italiano (entre outros), que identificava os inimigos em termos essencialmente políticos.


Não surpreende que a depuração nazi tivesse efeitos devastadores e imediatos nas artes e cultura em geral, depurando liminarmente artistas e intelectuais de origem judia ou tidos como desajustados sociais.  


Enquanto o fascismo italiano integra o futurismo de Marinetti, o nazismo condena toda a “arte degenerada” das vanguardas. Tal arte decadente, além de incluir sempre as obras de autores de origem judaica, integrava também todas as obras de arte e movimentos culturais que estavam em desacordo com a conceção e o ideal de beleza da arte nazi, que se queria clássica, naturalista, figurativa e popular, e não elitista. Arte degenerada era a arte moderna, incluindo movimentos como a Bauhaus, cubismo, futurismo, dadaísmo, impressionismo, expressionismo, surrealismo, pintura metafísica, nova objetividade e fauvismo.   


Numa exposição feita em Nuremberga, em 1933, e depois em Munique, em 1937, a “arte degenerada” foi exposta e posta a ridículo, colocando-a ao lado de pinturas,  esculturas e fotografias de doentes mentais e de pessoas com deficiências físicas, onde foram expostas obras de Kirchner, Klee, Klein, Chirico, Chagall, Kandinsky, Max Ernst, Gauguin, Mondrian, Otto Dix, Emil Nolde, entre tantos outros. Algumas foram vendidas no estrangeiro ou trocadas por arte adequada aos padrões nazis, as demais queimadas, sendo hoje clássicos da modernidade as que sobreviveram.  


Em 1933, é criado o Ministério da Informação e da Propaganda, a cargo de Goebells,  que tem a cargo a nazificação da cultura, controlando todas as suas vertentes, desde a literatura, o cinema e a música, à rádio e às artes plásticas, obrigando os artistas a aderir às diferentes câmaras profissionais, enquadradas e monitorizadas pela Câmara da Cultura.        


À nazificação da cultura, agudizada pelo holocausto, campos de concentração, esterilização obrigatória de pessoas portadoras de defeitos hereditários, numa desumanização e violação sistemática dos direitos humanos, acresce a fuga e exílio de artistas e intelectuais.   


Thomas Mann, emigrou para a Suíça, em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, perdendo a nacionalidade alemã.  


Walter Gropius, fundador da Bauhaus, fechada pelos nazis, em 1933, emigrou para os Estados Unidos. 


Após o banimento e queima dos seus livros, Erich Maria Remarque, tido como descendente de judeus, emigrou para os Estados Unidos.  


Bertolt Brecht, após a ascensão de Hitler, exila-se.   


Albert Einstein, físico alemão, nascido numa família judia alemã, exilou-se e naturalizou-se norte-americano quando os nazis chegaram ao poder.


Franz Jagerstatter, objetor de consciência austríaco durante a segunda guerra mundial, foi condenado à morte e executado por se recusar a combater pelos nazis, sendo declarado mártir e beatificado pela igreja católica.  


Muitos outros emigraram ou exilaram-se, como George Grosz (pintor), Fritz Lang (cineasta), Freud (criador da psiquiatria), Hannah Arendt (filósofa), Gunther Stern (filósofo e ensaísta, primeiro marido de Hannah Arendt), Ernst Toll (pacifista, poeta, dramaturgo) e os escritores Walter Benjamim, Alfred Doblin, Hermann Broch, Emil Ludwig, Heinrich Mann, Else Lasker-Schuler, Odon Von Horvath, Anna Seghers, Joeph Roth, Stefan Sweig.      


Mas há sempre o perigo do hipotético ressurgimento do fascismo, cujo totalitarismo amordaça e corta a liberdade criativa, ao invés de uma sociedade onde haja liberdade de expressão e de movimentos.   


Em qualquer caso, o totalitarismo do Estado, é apanágio dos extremos e radicais, quer de esquerda ou de direita, com reflexos similares a nível cultural.  

 

02.07.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

72. A CULTURA E O QUESTIONAMENTO PERMANENTE DA REALIDADE


É um lugar comum questionar como foi possível o nazismo florir num país como a Alemanha, pátria de filósofos, compositores, escritores, cientistas, intelectuais, artistas e pensadores de vanguarda, num território tido como culto e exemplo, à data, de uma nação civilizada.
Sabemos bem, a começar pela História, que nem a educação, o saber ou o conhecimento intelectual nos oferecem qualquer garantia de um juízo moral ou de uma ética melhor.
A desumana tirania das ideias sempre teve o apoio de intelectuais e de pessoas da cultura.    
Ditadores e regimes totalitários sempre tiveram muitos admiradores e simpatizantes intelectuais e das artes em geral.
Alguns desses mentores legitimaram e institucionalizaram a violência terrorista.
Legitimaram e fomentaram a prática de crimes contra a humanidade.
O mundo pode ser modificado pela força do intelecto, para o bem e para o mal.
Mas é a cultura que nos permite distinguir entre a barbárie e a civilização.  
Foi a cultura que nos permitiu compreender a distinguir a barbárie dos totalitarismos.
Só uma cultura enquanto questionamento constante e permanente da realidade nos liberta.
Só uma cultura essencialmente crítica permite distinguir tiranos, ideias, doutrinas e regimes totalitários da democracia baseada no espírito crítico.  
É esse espírito e sentido crítico   que nos pode libertar da ameaça de uma ditadura tecnológica, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, ou numa mera cultura de entretenimento e diversão.     
Se é verdade que graças à força das ideias se pode criar um mundo melhor, pondo de lado despotismos e tiranias em desfavor da pessoa e dos direitos humanos, também é verdade que o desaparecimento da cultura enquanto questionamento permanente da realidade é o melhor amigo de utopias fraudulentas sempre prontas a suprimir a verdade pela causa da pretensa verdade maior que defendem.  

30.04.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício