Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um rosto é um milagre. Há hoje, no mundo, oito mil milhões. Nenhum igual a outro: cada rosto é único. Um rosto é a visita do infinito e a sua manifestação viva no finito. Que é um rosto senão alguém que se mostra na sua aparição?
Esse rosto concentra-se no olhar. Sim, o olhar. Não é dos olhos que se trata. O mistério é o olhar. Um dia terão perguntado a Hegel o que se manifesta e vê num olhar. E ele: “O abismo do mundo.”
Num olhar, o que há é alguém que vem à janela de si e nos visita. Também por isso, para tornar alguém anónimo, venda-se-lhe os olhos. Faz-se o mesmo a um condenado à morte, porque é intolerável o seu olhar. E, quando alguém morre, coloca-se-lhe um véu sobre o rosto: já está para Além...
Até para nós próprios, somos por vezes terrivelmente estranhos. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? “Quem é esse ou isso que me vê, desde o abismo?”
Essa estranheza assalta-nos até no olhar de um animal: um cão velho e abandonado que nos olha não nos deixa indiferentes. Mas é sobretudo o olhar de alguém que é perturbador. Ele há o olhar triste. O olhar meigo. O olhar arrogante. O olhar do terror. O olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceitação. O olhar do ódio e desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. Ah!, o olhar da despedida final para sempre! O olhar morto, que já não é olhar!
O olhar é a presença misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela. Já ao nível do tal cão velho e abandonado pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser cão? Mas é uma sensação de abismo, um belo dia, precisamente perante o olhar de alguém, ficarmos paralisados com a interrogação: o que é ser alguém outro? Porque a outra pessoa - o outro homem ou a outra mulher - não é simplesmente outro eu, mas um eu outro.
Explicitando: o que é e como é ser o Alberto ou a Eunice, viver-se a si mesmo por dentro como o Alberto ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar?
E como é que eu sei que há o outro, não enquanto outro eu - ainda no prolongamento de mim -, mas precisamente como um eu outro, sujeito inapreensível?
Sartre teorizou que esse saber é dado de modo indubitável no sentimento da vergonha. E dá o exemplo de alguém que, num hotel, está, concentrado, a espreitar pelo buraco da fechadura. Ouve passos no corredor. Então, no sentimento paralisante da vergonha, ao ficar objectivado pelo olhar do outro a quem os passos pertencem, sabe que há um sujeito que não é ele. Ele é objecto para esse sujeito que o vê: é visto.
Sem o outro não há eu, como diz o conceito de Ubuntu, próprio da cultura africana, que diz precisamente: “Eu sou eu através de ti”, e na solidariedade e colaboração, não na competição. Se a única ou a principal relação com o outro fosse a da vergonha, não se aguentava viver, porque “o inferno” seriam “os outros”.
Seria insuportável estar sob a vigia de um olhar omnipresente. Por isso, para Nietzsche, o olhar de Deus é intolerável. Em A Gaia Ciência, uma miúda pergunta à mãe: “É verdade que Deus está em toda a parte?”, respondendo ela própria: “Eu considero isso uma indecência.” Então, em Assim Falava Zaratustra, escreve: o Deus que objectiva o Homem “tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo. A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos.”
Também Jean-Paul Sartre cortou relações com Deus, o Todo-Poderoso, por causa do seu olhar horrorosamente indiscreto. “Uma só vez tive a sensação de que Ele existia. Brincava com fósforos e queimava um pequeno tapete; estava eu a dissimular o meu crime quando, de súbito, Deus viu-me; eu rodopiava na casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. Salvou-me a indignação. Blasfemei, murmurei como o meu avô: ‘Maldito o nome de Deus, nome de Deus, nome de Deus.’ Nunca mais Ele me contemplou.”
É certo que só vimos a nós na correlação com o outro. Sem outros eus enquanto tus, não há eu. Mas, repito, será que a única ou mesmo a principal relação com o outro é a da vergonha? Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro, enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente Outro.
Conta a Bíblia, no Livro do Êxodo, que Moisés quis ver Deus, e Deus respondeu: “Farei passar diante de ti toda a minha bondade... mas tu não poderás ver a minha face, pois o Homem não pode contemplar-me e continuar a viver.” O Senhor disse: “Está aqui um lugar próximo de mim; conservar-te-ás sobre o rochedo. Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado. Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista.”
Segundo a fé cristã, o Deus invisível deixou-se ver no rosto e no olhar misericordioso de Jesus. Ele deixa-se ver no rosto de todos os homens, mulheres e crianças: “O que fizestes a um destes mais pequeninos - dar de comer, de beber, curar, visitar... - a mim o fizestes.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 7 de setembro de 2024
Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.
Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?
De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um “Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro” - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”
A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade? Ele seria possível?
Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo. Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de seis anos dizer à mãe: “tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas --, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”
Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 31 de agosto de 2024
Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.
Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão “Die Zeit”. O que aí fica reflecte esse debate.
A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar — no caso do Homem, de objectivar-se — é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.
Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.
O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.
Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.
A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo — tentamos "tomar decisões racionais".
Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".
Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."
Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: “Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O “eu” que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro.”
Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de abril de 2023