Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 8 a 14 de abril de 2024


Nuno Júdice é, no panorama da literatura portuguesa, uma referência fundamental que o futuro se encarregará de valorizar cada vez mais.


LER POESIA – CELEBRAR A CULTURA
Na celebração do Dia Mundial da Poesia, que teve lugar no Centro Cultural de Belém, escolhi para a maratona da leitura, um poema de Nuno Júdice que recorda as origens algarvias, mas também lembrei a evocação dessas paragens da autoria de Miguel Torga, regressando ao dia já distante em que aí encontrei o Mestre. E, por um momento, vieram-me à memória os pioneiros, António Mega Ferreira e Vasco Graça Moura, que iniciaram esse hábito salutar de leitura, em nome do culto da Poesia. Li “Estrelas”, publicado em Pedro Lembrando Inês, e senti um sentimento de gratidão, pois o Algarve que ali está representado é a saudosa terra que a poeta definia como o lugar que afirma as pequenas marcas do seu carácter único. “Desfaço nas mãos, os figos / fugazes de setembro, enquanto o seu leite / escorre pelas folhas verdes que / os envolvem. Esses figos, que me traziam / em cestos de vime, eram mel na boca / que os saboreava. Secos iam parar / aos frascos fechados para o inverno, de onde / os tirava para meter no bolso, / antes de sair. ‘O que tens aí?’, perguntavas-me. E /eu passava-te para a mão um desses figos, e via / como o abrias, chupando os seus grânulos, / e passeando na boca a amêndoa que / o recheava. Onde estarás ?, pergunto. Poderia / ainda hoje partilhar, contigo, um / desses figos do inverno? Ou o seu leite secou, / nos cantos dos lábios, roubando-te / as palavras, e o húmido murmúrio / do amor?”.


Num tema aparentemente tão simples, está toda a grandeza do poeta e da sua atenção. Nuno Júdice seguiu o melhor lirismo, que vem dos trovadores, desenvolve-se nos grandes cancioneiros e culmina na herança inesgotável camoniana e em tudo quanto se lhe seguiu. Um pormenor do quotidiano, o figo, maduro e seco, e o diálogo da amizade e do amor, ingredientes indispensáveis à compreensão da vida. António Carlos Cortez acaba de publicar Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Em boa hora encontramos aí a expressão viva, do que para o poeta é mais do que um balanço ou do que uma homenagem. É a demonstração da relevância de uma figura maior da nossa literatura, em confronto com os nossos maiores. Afinal, a justa projeção internacional que Nuno Júdice alcançou corresponde a muito mais do que uma afirmação individual, para ser uma fecunda manifestação da cultura da língua portuguesa além-fronteiras.


UMA NATUREZA VIVA
E ouvimos o discurso direto do poeta: “Quando começo um poema nunca sei para onde estou a ser conduzido. Há muitas formas de encontrar linha de desenvolvimento, umas vezes lógica, outras mais contraditória ou paradoxal, mas o que é comum é o modo como o poema se fecha a si próprio, quase sempre de uma forma inesperada que surpreende através de várias formas, desde a ironia até esse encontro como o que posso chamar uma transcendência que obriga a ler o poema e a reinterpretá-lo. O que importa é a surpresa no final, que subverte ou transforma o que vinha antes”. De facto, para o autor não pode haver Poesia sem passado e sem memória. Todavia, a memória não vem apenas da experiência pessoal, mas de uma poesia perene, dos poemas lidos, das situações próprias, mas também da partilha de experiências. E então a memória reinventa-se, como na genial lição de Eduardo Lourenço, na revisitação de Fernando Pessoa sobre a falsa influência de Walt Whitman na “Ode Triunfal” e a verdadeira repercussão do americano em Caeiro, numa inversão de termos, que reinventa a unidade da criação poética de Pessoa…


“O título é a última coisa que aparece quando estou a compor um livro (confessava a António Carlos Cortez, num diálogo recente, de 2023). Tem de conter em simultâneo uma síntese, mas também a forma como vou distinguir um livro de outro, encontrando essa ‘personalidade’ que o distingue”. E se falamos de passado e de memória, importa enfatizar o necessário diálogo com as diversas artes. As experiências de Berna e depois de Paris permitiram ao poeta desenvolver uma relação forte com a pintura, os museus, os artistas com quem conviveu, os livros de arte que escreveu, de Manuel Amado a Graça Morais, de Jorge Martins a Júlio Pomar, que conferiram à poesia de Nuno Júdice um lado visual, que se tornou paradigmático. Como ele disse ainda: “Não há poesia sem imagem, tal como não há poesia sem ideia (embora no meu caso a filosofia seja algo mais interrogativo do que explicativo)”. No fundo, para Eduardo Prado Coelho, estávamos perante um poeta da imaginação, que esclarece, não se considerando neorromântico nem surrealizante. É verdade que há, sem dúvida, a imaginação, mas também “uma razão que inscreve essa imaginação não num plano delirante (…), mas numa dimensão que vai buscar uma lógica nem sempre previsível no início do poema para criar uma surpresa e uma transformação na forma de ver a realidade”.


O CULTO DA PALAVRA
“Desde o início (continuamos a ouvi-lo) que o poema longo faz parte da minha poesia. Isso deve-se à leitura de Campos, de Caeiro, de um Eliot ou de um Pound, mas também de poetas franceses como Saint-John Perse. E resulta de uma necessidade que, nesses anos 60, senti de transformar a escrita poética numa forma de narrativa, ou conto (o Jorge Luís Borges é essencial nesse processo)”. Há aí, assim, a rejeição da poesia formalista, que se empobrece e esgota no processo da sua invenção…  Nesse ponto Antero de Quental e Fernando Pessoa têm um papel fundamental. Antero reconcilia-o com o soneto, e reforça a força da ideia e do pensamento que sempre atraiu Nuno Júdice.  Pessoa transforma a poesia em ficção e o final de Antero corresponde a uma transformação ficcional “naquele banco onde se suicida de uma forma perfeitamente encenada”. Deste modo, “memória, imaginação e ficção são partes essenciais da criação poética, mas se na sua origem não se encontra uma experiência, uma relação próxima com a realidade, o poema soa a vazio, a falso”. E o certo é que a poesia se torna não só uma forma de resistência, mas também de sobrevivência. E no diálogo que temos vindo a seguir, Nuno Júdice considera-se beneficiário de um privilégio – “nasci em Portugal e o país pese a essa tendência masoquista da nossa ‘inteligência’ para nos autodestruir, é uma exceção que permite respirar um pouco melhor quando olhamos o mundo. E tem uma grande história literária e paisagens e espaços únicos”… Essa é a natureza viva que constitui matéria-prima de um autor de exceção, cuja descoberta é ainda inesgotável.   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

O MEU AMIGO NUNO JÚDICE


Com a serenidade de sempre havia um tom de esperança na última vez que falámos. Sabíamos todos que a situação era difícil, mas como sempre aprendemos na relação com ele e ao lê-lo, havia a compreensão da importância de entender “as coisas mais simples” e de fazer de uma “cartografia de emoções” um exercício de proximidade e de compreensão. Era um amigo sincero e um sistemático cultor da palavra e das ideias, como modo de encontrar as razões do ser. E nesse amor das palavras havia o desejo permanente da decifração dos enigmas que a vida nos reserva. “…E / não vejo o caminho para onde o destino / me leva; mas vou deixando atrás / de mim as contas que marcam o tempo / dos meus passos. Se me perder, guiar-me-ão / no regresso – com se o vento e os animais / noturnos não as espalhassem para / longe da minha vista, e cada manhã / não me afastasse, mais e mais, do pátio / da minha infância” (O Fruto da Gramática, 2014).


Nuno Júdice continua bem presente, na sua reflexão e na sua poesia. Não se pense, porém, que se trata de um lugar-comum. No trabalho que desenvolveu até ao fim, na sua banca de artesão, procurou legar-nos a possibilidade de vermos melhor a herança dos poetas e pensadores. Quando em meados dos anos sessenta começou a frequentar o Centro Nacional de Cultura, onde Sophia de Mello Breyner pontuava com a sua poesia e o seu exemplo (com Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Ruy Belo, Nuno Bragança ou Pedro Tamen) encontrou a pura Poesia. “…E espero que / me digas que este poema que pôs tudo de lado quando / chegaste ao pé de mim, é um poema; e se me disseres / isso, então eu sei que é teu este poema, e o resto/ que fique para quem julga que sabe o que é, / ou não é, a poesia” (Idem). Afinal, como Nuno disse do épico: “importa ler Camões sem ouvir esse ruído ideológico que acaba por apagar o que subsiste de uma voz que está longe de ter esgotado a sua invenção”. E assim descobriu e desenvolveu a originalidade camoniana de considerar o Amor como vivência de contrários, e como ligação do concerto e desconcerto do mundo, do encanto e do desencanto. Esta relação inesgotável com a poesia e a literatura foi, sem dúvida, uma das chaves da dimensão universalista da obra de Nuno, que o tornou um dos valores mais seguros e importantes da cultura portuguesa, ouvido urbi et orbi, num singular e justo reconhecimento do mundo literário internacional. O tempo por certo se encarregará, de modo natural, de demonstrar como esta “colheita de silêncios” múltipla encerra a compreensão do tempo e de quem o ocupa de forma perene. E assim lemos com um sentimento de alegre melancolia “De Sagres, uma tarde, para o Ruy Belo em Madrid”. “Uma tarde, em sagres, o vento soprava sempre / por cima das falésias, saía de dentro das furnas, e voltava a meter-se em / furnas e falésias, escrevemos-te um postal, de sagres para madrid, do / extremo da terra ao meio da península”. Afinal “nesse tempo, em que nem era preciso pensar no que se tinha para / dizer, eu pensava na poesia”. E vem à memória Alexandre O’Neill: “A poesia é a vida? Pois claro! Embora custe caro / e a morte se meta de permeio” (No Reino da Dinamarca).


António Carlos Cortez acaba de publicar Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Lemos o percurso do poeta com júbilo e atenção. E ouvimos na primeira pessoa Nuno dizer: “O professor tem de ter consciência de que a literatura não pode desaparecer do ensino, e que é uma aberração ter separado o Português da Literatura, como se uma língua pudesse existir sem a literatura e não fosse a literatura a formá-la e a informá-la”. Nos últimos dias, Nuno Júdice continuou o seu trabalho incansável. Terminou o último número da Colóquio-Letras, que celebra Abril, enviou-o para a impressão e deixou planeados os próximos números. Os leitores terão oportunidade nos próximos meses de verificar como a sua lucidez continua a beneficiar uma cultura livre e aberta.


GOM

NUNO JÚDICE (1949-2024)

Porque a luz existe e permanecerá

  


Sempre que a palavra elaborava outra

era tempo de asas na poesia de Nuno Júdice.

Havia uma concha que nos levava dentro da Casa de NJ

num diálogo fluente, redivivo em nós por nos reconhecer

agua-vento, transubstancial.


Porque há que acordar uma segunda vez, hoje e também este poema tão rumo:


“A Origem do Mundo”

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

NJ


Teresa Bracinha Vieira

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO JÚDICE 

  


Fábula industrial


As chaminés das fábricas tinham
pescoços de cegonha, e quando deitavam
fumo era como se as cegonhas abrissem
as asas. Quando o fumo era preto,
porém, as cegonhas transformavam-se
em corvos de grandes pescoços feitos
de tijolo; e ao contrário das cegonhas
não voavam, mas faziam soar as sirenes
com os bicos metálicos, para que
os operários saíssem do seu ventre
em direcção a casa. No dia
seguinte, se o fumo fosse branco, as operárias
agarrar-se-iam às asas da cegonha
e puxá-las-iam, como se fossem
linho, para as enrolar e meter
nos contentores que os barcos esperam
no cais, para as levar para os países
com falta de lençóis. É por isso que
os ninhos de cegonha, nos grandes postes
eléctricos estão vazios; e que as raposas
correm de uma árvore para outra,
à procura de um ramo em que esteja
um corvo, sem conseguirem encontrar
o queijo que a fábula lhes prometeu.


2019, unpublished
© Nuno Júdice


Industrial fable


The factory chimneys were like
stork necks, and when they gave off
smoke it was as if the storks were opening
their wings. When the smoke was black
however, the storks changed into
crows with huge necks made of
bricks; they didn’t take flight like the storks
but instead sounded sirens
with their metallic beaks, letting
the home-bound workers out
of their bellies. The following
day, if the smoke was white, the workers
would hold on to the storks’ wings
and stretch them as if they were
linen in order to fold them and
store them in containers on waiting ships
which would take them to countries
where there was a shortage of sheets. This
is the reason stork nests on top of tall
electric pylons are empty; and also the
reason why foxes run from tree to tree
looking for a perching crow, unable to find
the fable-promised cheese.


© Translated by Ana Hudson, 2019
in Poems from the Portuguese 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO JÚDICE

  


A luz de Lisboa


A luz atravessa o quarto entre
as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora
de um lado seja o poente - onde está o sol, agora - e do outro
o nascente - onde o sol já esteve. No quarto
juntam-se poente e nascente, e é esta
luz que confunde o olhar, que não sabe em que
hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha
que percorre o espaço entre as duas janelas,
como se não tivesse princípio nem fim; e
o que faço é puxar essa linha para dentro
do quarto, e enrolá-la, como se me
pudesse servir dela para atar as duas extremidades
do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique
parado entre duas janelas, a poente
e a nascente, até que o fio se volte
a desenrolar, e tudo
recomece.


in A Matéria do Poema, 2008


Lisbon light


The light crossing the room between
the two windows is always the same, although
on one side it’s west - where the sun is now - and on
the other it’s east - where the sun has already been. In the room
west and east meet, and it is this light
that makes my gaze uncertain for not knowing
which hour held the first light. Then I look at the thread
of light stretched between both windows, as if
it had no beginning and no end; and
I start pulling it inwards into
the room, winding it up, as if I could
use it to tie up both ends
of the day into midday, and let the time be
stopped between two windows, west
and east, until the thread
unwinds, and everything
begins all over again.


© Translated by Ana Hudson, 2009
in Poems from the Portuguese 

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão  o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá  nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que  António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:

 

                     Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
                     Com rosas e estrelas em um mundo novo.

 

                     Nunca supus que isto que chamam morte
                    Tivesse qualquer espécie de sentido...
                    Cada um de nós, aqui aparecido,
                    Onde manda a lei e a falsa sorte,

 

                   Tem só uma demora de passagem
                   Entre um comboio e outro, entroncamento
                   Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
                   Mas seja como for segue a viagem.

                   [...]

                   Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
                   Há almas pares, as que conheceram
                  Onde os seres são almas.

 

                 Como éramos só um, falando!
                  Éramos como um diálogo numa alma.
                  Não sei se dormes... calma,
                  Sei que, falho de ti, estou um a sós.

 

   A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]  

   Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.

   No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro  é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:

 

                    Eu não sou eu nem sou o outro,
                    Sou qualquer coisa de intermédio:
                    Pilar da ponte de tédio 
                    Que vai de mim para o Outro.

 

   Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:

 

                    Tu, morreste.

 

                    Foste vencido? Não sei.
                    Morrer não é ser vencido,
                    Nem é tão pouco vencer.

 

                    Eu, por mim, continuei
                    Espojado, adormecido,
                    A existir sem viver.

 

                   Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - 
                   Mais triste do que a minha e malaventurada.
                   ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte,
                   E há tantos como eu que não alcançam nada...

 

   Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o  dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível  do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grão de trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... 

   O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.

   Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literáriotrago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:

   Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente...   ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...

   ... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo. 

   Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando. 

   Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:

 

                    Como se chora um amante,
                    Assim me choro a mim mesmo:
                    Eu fui amante inconstante
                    Que se traiu a si mesmo.

 

                   Não sinto o espaço que encerro
                   Nem as linhas que projeto:
                  Se me olho a um espelho, erro - 
                  Não me acho no que projeto.

 

                  Regresso dentro de mim
                  Mas nada me fala, nada!
                  Tenho a alma amortalhada,
                  Sequinha, dentro de mim.

 

      E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.

   O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo! 

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

MARIE DE RÉGNIER - "A INCONSTANTE"

 

Com tradução e prefácio de Nuno Júdice chega-nos pela chancela Sibila Publicações, o romance “A Inconstante”, publicado em 1903, usando então Marie de Régnier o pseudónimo Gérard d’Houville.


A razão do uso deste masculino pseudónimo seria o de evitar que a moral dominante da época pudesse entender este livro como uma provocação de Marie de Régnier, que baseando-se na sua vida pessoal, expunha claramente, uma liberdade de costumes tidos por impróprios de uma recém-casada.


Marie diria mais tarde que a utilização desse pseudónimo era uma forma de se distanciar dos famosos pai e marido.


Marie entrega-se ao epicurismo – cremos – também para provar que se podia obter um estado de tranquilidade se se ousasse a libertação do medo provocado pela empreendedora sociedade hipócrita, e o equilíbrio fosse encontrado pelo não sentimento de culpa ou remorso, face à infidelidade, já que nada nos sentimentos pode ser aquietado, se alguma parecença tiverem com as jarras vazias de flores, aquelas que a Marie, mais lhe pareciam seres incompletos, decapitadas.


Na verdade, Marie era atenta à maquilhagem das coisas que lhe eram alheias, apenas para as identificar como perversas.


Era atenta aos espelhos dos quartos dos amantes que sempre lhe diriam quantas horas, a partir da primeira vez que neles se via, lhe restariam a menos, para viver, procurando alguém que se ocupasse dela, a admirasse, a fizesse mais tranquila, e talvez por isso, sempre chegasse atrasada aos encontros, tentando atrasar a inquietude dos beijos que a prenderiam numa incorrigível e, as vezes, insustentável, ligeireza. Antes que o seu corpo já não divertisse? Ou antes que a fidelidade se deixasse de mostrar embuste? Ou que a infidelidade deixasse de ser um jogo?


O pai de Marie, jogador crónico arruinado, deu-a em mão ao mais rico dos seus pretendentes.


Seria irreverência que depois de um beijo lascivo pedisse ao amante que lhe arranjasse remorsos, pois que mesmo esforçada os não encontrava?


Ajoelhada, olhava para um outro amante, ou o mesmo? Os olhos dela eram doces, muitas vezes tristes e sempre infantis, sob a capa de uma viajante rodeada de apetites, tomada de vertigens, dançando danças rodopiantes, inexplicáveis e sempre servas livres.


E como o amava não sentiria emoção se ele agora entrasse pela porta proibida: tão só cairia sobre o seu próprio coração.


Não, não te enganei. Não deixei de te pertencer, de te adorar, de murmurar o teu nome, de desejar a tua boca, junto de um outro
, ela não tinha nada da tua amante.


Pois ainda me amas?


Jura-mo!


Ó querida! não és a única responsável; também o sou. Deixei-te; não te disse quanto te amava.


A obra de Marie foi incompletamente abafada pela sua escandalosa vida sob a irrequieta Paris da Belle Époque, da qual, como oportunamente refere Nuno Júdice, André Gide, Marie de Régnier e Teixeira Gomes formam bem a trindade que lhe representa o espírito.


Maria de Régnier foi uma original e poderosa escritora. Vence o Grande Prémio de Literatura da Academia Francesa e o Grande Prémio de Poesia da mesma Academia.


Este seu livro prende-nos inteiramente e recorda-nos bem as características da transição de século XIX para XX da Paris social e intelectual, parnasiana, incansável, no rigor da forma e igualmente assente num simbolismo que envolve uma verdade encontrada na consciência.


Complete-se A Inconstante com a releitura de O Imoralista e de Sabine Freire, excelente sugestão do prefácio.

 

Teresa Bracinha Vieira