Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A luz atravessa o quarto entre as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora de um lado seja o poente - onde está o sol, agora - e do outro o nascente - onde o sol já esteve. No quarto juntam-se poente e nascente, e é esta luz que confunde o olhar, que não sabe em que hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha que percorre o espaço entre as duas janelas, como se não tivesse princípio nem fim; e o que faço é puxar essa linha para dentro do quarto, e enrolá-la, como se me pudesse servir dela para atar as duas extremidades do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique parado entre duas janelas, a poente e a nascente, até que o fio se volte a desenrolar, e tudo recomece.
in A Matéria do Poema, 2008
Lisbon light
The light crossing the room between the two windows is always the same, although on one side it’s west - where the sun is now - and on the other it’s east - where the sun has already been. In the room west and east meet, and it is this light that makes my gaze uncertain for not knowing which hour held the first light. Then I look at the thread of light stretched between both windows, as if it had no beginning and no end; and I start pulling it inwards into the room, winding it up, as if I could use it to tie up both ends of the day into midday, and let the time be stopped between two windows, west and east, until the thread unwinds, and everything begins all over again.
Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:
Nesse número do Orpheu que há-de ser feito Com rosas e estrelas em um mundo novo.
Nunca supus que isto que chamam morte Tivesse qualquer espécie de sentido... Cada um de nós, aqui aparecido, Onde manda a lei e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem Entre um comboio e outro, entroncamento Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento; Mas seja como for segue a viagem.
[...]
Hoje, falho de ti, sou dois a sós. Há almas pares, as que conheceram Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Éramos como um diálogo numa alma. Não sei se dormes... calma, Sei que, falho de ti, estou um a sós.
A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]
Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.
No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:
Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro.
Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:
Tu, morreste.
Foste vencido? Não sei. Morrer não é ser vencido, Nem é tão pouco vencer.
Eu, por mim, continuei Espojado, adormecido, A existir sem viver.
Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - Mais triste do que a minha e malaventurada. ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte, E há tantos como eu que não alcançam nada...
Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grãode trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort...
O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.
Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literário, trago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:
Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente... ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...
... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo.
Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando.
Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que projeto: Se me olho a um espelho, erro - Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim.
E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.
O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo!
Com tradução e prefácio de Nuno Júdice chega-nos pela chancela Sibila Publicações, o romance “A Inconstante”, publicado em 1903, usando então Marie de Régnier o pseudónimo Gérard d’Houville.
A razão do uso deste masculino pseudónimo seria o de evitar que a moral dominante da época pudesse entender este livro como uma provocação de Marie de Régnier, quebaseando-se na sua vida pessoal, expunha claramente, uma liberdade de costumes tidos por impróprios de uma recém-casada.
Marie diria mais tarde que a utilização desse pseudónimo era uma forma de se distanciar dos famosos pai e marido.
Marie entrega-se ao epicurismo – cremos – também para provar que se podia obter um estado de tranquilidade se se ousasse a libertação do medo provocado pela empreendedora sociedade hipócrita, e o equilíbrio fosse encontradopelo não sentimento de culpa ou remorso, face à infidelidade, já que nada nos sentimentos pode ser aquietado, se alguma parecença tiverem com as jarras vazias de flores, aquelas que a Marie, mais lhe pareciam seres incompletos, decapitadas.
Na verdade, Marie era atenta à maquilhagem das coisas que lhe eram alheias, apenas para as identificar como perversas.
Era atenta aos espelhos dos quartos dos amantes que sempre lhe diriam quantas horas, a partir da primeira vez que neles se via, lhe restariam a menos, para viver, procurando alguém que se ocupasse dela, a admirasse, a fizesse mais tranquila, e talvez por isso, sempre chegasse atrasada aos encontros, tentando atrasar a inquietude dos beijos que a prenderiam numa incorrigível e, as vezes, insustentável, ligeireza. Antes que o seu corpo já não divertisse? Ou antes que a fidelidade se deixasse de mostrar embuste? Ou que a infidelidade deixasse de ser um jogo?
O pai de Marie, jogador crónico arruinado, deu-a em mão ao mais rico dos seus pretendentes.
Seria irreverência que depois de um beijo lascivo pedisse ao amante que lhe arranjasse remorsos, pois que mesmo esforçada os não encontrava?
Ajoelhada, olhava para um outro amante, ou o mesmo? Os olhos dela eram doces, muitas vezes tristes e sempre infantis, sob a capa de uma viajante rodeada de apetites, tomada de vertigens, dançando danças rodopiantes, inexplicáveis e sempre servas livres.
E como o amava não sentiria emoção se ele agora entrasse pela porta proibida: tão só cairia sobre o seu próprio coração.
Não, não te enganei. Não deixei de te pertencer, de te adorar, de murmurar o teu nome, de desejar a tua boca, junto de um outro, ela não tinha nada da tua amante.
Pois ainda me amas?
Jura-mo!
Ó querida! não és a única responsável; também o sou. Deixei-te; não te disse quanto te amava.
A obra de Marie foi incompletamente abafada pela sua escandalosa vida sob a irrequieta Paris da Belle Époque, da qual, como oportunamente refere Nuno Júdice, André Gide, Marie de Régnier e Teixeira Gomes formam bem a trindade que lhe representa o espírito.
Maria de Régnier foi uma original e poderosa escritora. Vence o Grande Prémio de Literatura da Academia Francesa e o Grande Prémio de Poesia da mesma Academia.
Este seu livro prende-nos inteiramente e recorda-nos bem as características da transição de século XIX para XX da Paris social e intelectual, parnasiana, incansável, no rigor da forma e igualmente assente num simbolismo que envolve uma verdade encontrada na consciência.
Complete-se A Inconstante com a releitura de O Imoralista e de Sabine Freire, excelente sugestão do prefácio.