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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (X)

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Teatro Variedades (fachada), 1961, fot. C. Madeira [Museu Nacional do Teatro, cota: 57625].

 

BREVE NOTA SOBRE AUTORES INESPERADOS

Uma breve nota final sobre este ciclo de evocações sobre o teatro de revista em Portugal.

Como temos visto, o teatro de revista, na sua componente global texto/espetáculo, representa, desde meados do seculo XIX, uma das mais constantes expressões do teatro português: e temos salientado, ao longo desta série de referências, a qualidade de muitos textos e a afirmação de não poucos autores.

Cabe agora referir que, nesse conjunto relevante de textos e autores, há uma distinção que aqui tem sido assumida: pois ou estamos perante dramaturgos que só se dedicaram à revista, ou perante dramaturgos que, na opção por vezes subtil entre revista e opereta, completam, digamos assim, obras globais de diferente género e estilo, com “incursões” no teatro musicado.

E desde logo se diga que dramaturgos indiscutíveis na pluralidade de géneros, como designadamente Bernardo Santarenos – e o exemplo é em si mesmo relevante – não desdenharam a revista – no caso de Santareno, uma única vez, é certo, e em colaboração ou “parceria”, termo usado no género, com César de Oliveira, Rogério Bracinha e Ary dos Santos. Os primeiros não são inesperados, antes pelo contrário.
Mas é de assinalar a colaboração de Ary dos Santos, em diversas revistas, de títulos e textos alusivos à conjuntura politica: “Uma no Cravo, Outra na Ditadura”, “A Paródia”, “Ó Calinas Cala a Boca”, “Em Águas de Bacalhau”,  “Ó da Guarda”, “A Paródia”,  sendo que, na primeira, o próprio Ary declamou um poema evocativo de Allende.

Mas voltemos atrás. É que, desde pelo menos os anos 50/60, a produção de revistas trouxe sobretudo aos teatros do Parque Mayer um conjunto notável de autores e de atores que não raro preenchiam as duas funções… São numerosas as revistas escritas e interpretadas por Vasco Santana, José Viana, Henrique Santana, Eugénio Salvador, Francisco Nicholson e tantos mais até hoje.

José-Augusto França historia o Parque Mayer desde a sua inauguração em 1922, e assinala a inauguração dos Teatros Maria Vitória e Variedades, “para proveitosas carreiras de revistas, em acentuado e bem significativo gosto lisboeta de pilhéria e crítica sobremodo politica”. Evoca a inauguração do Capitólio em 1931, projeto do arquiteto Cristino da Silva e hoje em demoradas obras de recuperação. E evoca o ajuste politico das revistas de 1922 a 1974,mais tolerante do que no teatro declamado,   sendo certo que entretanto abriu e fechou um pouco significativo Teatro ABC, e sendo certo também que as outras salas e com elas o próprio Parque, perderam o brilho… (cfr. “Lisboa História Física e Moral” –  ed.2008).

Ora bem: em matéria de autores, temos aqui referido as incursões revisteiras de grandes dramaturgos portugueses: citamos, como mero exemplo a “Terra e Mar” de Alfredo Cortez. Mas refira-se que se verificou, a certa altura, como que uma “profissionalização” dramatúrgica da revista.

Terminamos assim com a evocação “histórica” mas recente da chamada Parceria – João Bastos, Félix Bermudes e Ernesto Rodrigues, que durante anos alimentaram, com qualidade e atualidade, o espetáculo de revista em Portugal.

Hoje, quem garante a qualidade do espetáculo é Filipe La Feria, que, entre outros géneros de espetáculo, recuperou o Politeama para  o Teatro de Revista.


DUARTE IVO CRUZ 

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (IX)

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UMA DRAMATIZAÇÃO DA HISTÓRIA DA REVISTA

Temos recorrido com frequência aos estudos de Luiz Francisco Rebello sobre a história do teatro português, e designadamente, da revista. É pois oportuno evocar aqui uma das últimas peças de Rebello, “Portugal, Anos Quarenta” (1982), pois precisamente concilia, com forte expressão dramática, uma abordagem histórico-politica dos anos 40 em Portugal, pontuada pela evocação e transcrição – isto é, encenação - de diversas revistas da época, conciliando assim drama com comédia, e teatro declamado com revista.

Trata-se de uma abordagem política, a partir dos problemas existenciais e sociais da “família Meneses: Meneses, a Mulher, o Filho e a Filha”, ao longo da década de 40, concretamente “da entrada do novo ano de 1940” ao “Ano Novo, que acaba de entrar nos domínios do Tempo para receber das mãos do Velho Ano o comando de 1949”: e essa cena que abre a 10ª Sequencia (1949) da peça, constitui transcrição literal do “Quadro de abertura da revista Ora Agora Viras Tu” de Carlos Lopes, nesse mesmo ano estreada em Lisboa. E a longa transcrição do quadro inicial da revista contrasta com a expressão dramática do texto de Rebello.

Precisamente, esse contraste constitui, a essência da peça, ao longo das 10 “sequências” correspondentes aos 10 anos de evocação histórico-politica: e a alternativa sequencial é marcada pela citação recorrente de sucessivas revistas que mais acentuam o registo dramático, repita-se, eminentemente e essencialmente contrastante.

E esse contraste cénico e dramático, no sentido mais abrangente do termo, marca a problemática pessoal e política da peça, além de enquadrar uma conjunto importante de situações e cenas revisteiras que conferem uma relevância peculiar no historial do teatro português: e recorde-se as referências bibliográficas que temos feito sobre o teatro de revista, acrescentando agora os diversos volumes de “Parque Mayer” da autoria de Jorge Trigo e Luciano Reis, que assinalam a renovação do género ”sobretudo nos anos do pós-guerra” (ed. 2002-2006).

Importa então referir as revistas de que Rebello transcreve e de que integra cenas, numa alternância dramática com o seu próprio texto:

“Manda Ventarolas”; “Zé Povinho”; “De Fora dos Eixos”; “O Bacalhau a Pataco”; “Há Festa no Coliseu”; “Travessa da Espera”; “Sempre em Pé”; “Se Aquilo que a Gente Sente”; “Ora Agora viras Tu”…

E acrescem transcrições de poemas e outros textos dramáticos em prosa e verso, letras de canções e poemas de autores relevantes como designadamente Adolfo Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Lopes Graça, Reinaldo Ferreira, Júlio Dantas e Lorca, além de diálogos de filmes portugueses e das marchas e de canções populares da época.

Nessa linha, que se integra poderosamente na estrutura da peça, citam-se e transcrevem-se cenas e textos extraídos dos filmes “João Ratão”, “O Pátio das Cantigas”, O Costa do Castelo”, “Capas Negras”, além de citações literais ou dramatizadas de textos de imprensa, conciliando por forma teatralmente muito hábil as citações hoje históricas (já lá vão mais de 60 anos) com a temática de conflito histórico- politico que marcava o país: e nesse aspeto, são recorrentes, ainda, transcrições literais de discursos de dirigentes políticos nacionais e estrangeiros e mais textos e referencias a personalidades da época - Carmona, Salazar, Hitler, Afonso Costa, Pétain, o Duque de Windsor, Otto de Habsburgo, Saint-Exupéry, Carmen Miranda, Marica Rokk,  Sarmento Pimentel, José Rodrigues Migueis, Jaime Cortesão, Eva Perón,  Fernando da Fonseca,  Maria Barroso, Norton de Matos e muitos outros. 

 O próprio Rebello explica a estrutura e a metodologia de construção da peça: “Dramaturgicamente, a técnica de colagem pura e simples seria a solução mais fácil; por isso a rejeitei. Entendi que para o espetáculo cumprir a sua função didática (…) era necessário combinar o documento com a ficção, o testemunho com a memória, a linguagem literal e a linguagem audiovisual com a intertextualidade” (in “Todo o Teatro” INCM 1998; cfr. “O Passado À Minha Frente – Memórias” 2004).

E assim é esta interessante peça, que, independentemente dos conteúdos políticos , representa um belo texto dramático, misto de teatro declamado e de revista – e nesse aspeto, a recuperação de textos de revistas, como de poemas e diálogos de filmes, valoriza, no ponto de vista histórico, a peça em si.

O que é coerente com a notável obra de Luiz Francisco Rebello no âmbito da História do Teatro Português.


DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (VIII)

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DOIS GRANDES AUTORES DE REVISTA: SOUSA BASTOS E EDUARDO SCHWALBACH

Num livro recente, Maria Helena Serôdio enfatiza a relevância da opereta e da revista na produção teatral portuguesa  da transição dos séculos XIX/XX. Cita designadamente, entre outros autores de drama e comédia, os originais ou as adaptações de André Brun (que aqui já foi evocado) numa adaptação de “A Severera” de Julio Dantas com musica de Filipe Duarte, autor também de opereta “O Fado” de João Bastos e  Bento Faria; e ainda,  num registo de “ópera cómica(…) as criações conjuntas de Gervásio Lobato,  D. João da Câmara e maestro Círiaco Cardoso, enquanto na comédia e na revista se vieram a destacar  no inicio do novo século Eduardo Schwalbach (“A Bisbilhoteira”, 1900 e “O Chico das Pegas, 1911)” e outros (in “A Republica das Artes-Teatro, 2010, pag. 17)

Precisamente evocaremos aqui Schwalbach (1860-1946) mas também o seu contemporâneo Sousa Bastos (1844-1911), que temos citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” e de “Carteira do Artista”.   

E desde já adianto que Sousa Bastos é autor ou co-autor – uma vez que as revistas são quase sempre produto de co-autorias – de nada menos do que algo como 18 revistas. Luis Francisco Rebello selecionou cenas de algumas, e a simples leitura dessas cenas permite avaliar o sentido critico e cénico dos textos: por exemplo “Tim Tim por Tim Tim” (1889), em que a “Dívida Pública”  se auto- define como aquela “Que toda a gente condena” mas  se- auto-elogia:

 “Sou esbelta, sou catita/ Tenho atrativos aos centos;/ Como arranjo bom dinheiro/ Tenho fortes argumentos” pelo que “Quase sempre eu dou pretexto/Prós clamores da oposição…/Mas se ela trepa ao poleiro/Logo de mim lança mão!”

Gustavo de Matos Sequeira refere que Sousa Bastos assume em 1894 a direção do Teatro da Trindade, onde se manterá até 1897. E assinala que “O Sal e Pimenta de Sousa Bastos foi a grande peça de 1894. Ainda transbordou o seu êxito para ao ano seguinte. Desde julho da dezembro, a Gloriosa (sic) revista que rivalizou com o Tim Tim por Tim Tim da (do (Teatro da) a Rua dos Condes, encheu o cartaz da Trindade” ( in “O Carmo e a Trindade” vol. III pag. 407).

Mas recordo aqui ainda a revista “Em pratos Limpos” (1896) onde Sousa Bastos critica, numa sucessão de exemplos, os “galicismos”  na moda:
“A cadeira é fauteille! Bem bom!/É a gare a estação! Faz-me fel!/ A luneta é agora um lorgnon!/ E um mordomo é um maître d Hotel!” E segue-se a casa -  chateau ou chalet, estante -  étagere, bacia -  bidet,  molduras - passe partout  ,manta  -  couvre pieds,e mais 18 francesismos – “e mais não digo que a lista é comprida/ E nem mesmo eu a tenho ao alcance!/ Se à casinha que está na Avenida/ Até chamam um “chalet  d aisence!” (in Luis Francisco Rebello -  “História do Teatro de Revista em Portugal” vol. 1).

E é então altura de evocar as revistas de Eduardo Shwalbach. Das largas dezenas de revistas que escreveu, cobrindo a passagem do seculo, destacam-se títulos e sucessos  como    “Agulhas e Alfinetes”, “Formigas e Formigueiros”, “Retalhos de Lisboa” “O Ovo de Colombo”, o Dia de Juizo”  “O Reino da Bolha”, “Fado e Maxixe” entre mais.

São quadros de grande sentido cénico. Por exemplo, em “Agulhas e Alfinetes”, estão em cena, a certa altura, um professor e pelo menos 14 alunos. Mas no plano oposto, temos por exemplo “A Feira do Diabo” que põe em cena Mefistófeles, o Orçamento da Despesa e o Orçamento da Receita. Ou a ultima revista citada por Rebello, “Ao Deus Dará”: “Haja Festança. Haja folia/  Que tudo a bem se arranjará/ Se a massa chega só pra um dia/ Para os seguintes… Deus dará” ( in ob. cit. vol. 2)

Vitor Pavão dos Santos, em “A Revista à Portuguesa” (1978), destaca uma cena de  “Fado e Maxixe”(1909) escrita com João Foca. Trata-se de um dueto entre a Avenida da Liberdade e as Avenidas Novas:
“AL _ Eu sou desta aldeola em ponto grande/ Desta Lisboa tola e presumida/Onde a tolice com rumor se expande/ A via mais seleta e concorrida

AV – Nós, Avenidas Novas/ Meninas petulantes/ Damos sobejas provas/ De sermos elegantes…”

E em “O Dia de Juizo”, o confronto entre a moda masculina e a moda feminina:
“Entre piadas, entre picuinhas/ Quer para elas, quer para os seus alcaides/ Vão os gentis e belos cartolinhas/ Com as lindas e dengosas Adelaides”…

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (VII)

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ALFREDO CORTEZ, AUTOR DE DUAS OPERETAS?

Sem preocupações cronológicas rigorosas, mas com rigorosas exigências de qualidade, evocamos agora as duas peças musicadas de Alfredo Cortez: “Terra e Mar”, espetáculo episódico levado á cena, sob pseudónimo, no Teatro Foz (1918) e “S. Paio” manuscrito datado de 1922, que em parte incluí no estudo elaborado em 1983 para a edição do Teatro Completo de Alfredo Cortez (INCM). Aliás, os primeiros ensaios que publiquei sobre o teatro de Cortez datam de 1961, e posteriormente tive acesso a manuscritos rigorosamente inéditos, guardados num espólio familiar.

De notar que alguns desses textos não estão completos. Mas mesmo assim: o que resta designadamente do que se crê sejam cenas da “Terra e Mar” revela um sentido apurado de métrica e uma vocação cénica que se confirmaria desde logo em 1922, com a “Zilda” e com a restante obra dramatúrgica, seja em prosa ou em verso.

As  breves cenas atribuídas ao “Terra e Mar” assumem  uma ironia pícara sobre grandes figuras da politica da época, e sobre situações então de  atualidade, evocadas em personagens e quadros alegóricos revisteiros, de que damos um breve exemplo:

”Embriaguez – Tu que és a Pouca-Vergonha/ Tens de explicar-me, vem cá/Como é que a minha mamã/ É também o meu papá?

Pouca-Vergonha – Não percebes?

Embriaguez – Não percebo.

Pouca – Vergonha –Pois eu explico-te, pá/  Ela esperava casar/ E vai depois não casou/ Coitada, ficou de esperanças/ Só de tanto que esperou.

Embriaguez – Quem espera sempre alcança

Pouca Vergonha – Foi assim que ela alcançou…”

Na mesma edição de Teatro Completo, publiquei outro inédito de Alfredo Cortez que também pode indiciar uma “dramatização musicável”, perdoe-se o insólito da expressão… Trata-se de um manuscrito indicativo do Ato I de uma peça intitulada ”S. Paio”, da qual restaram breves cenas musicadas e uma vasta didascália que remete para algo de semelhante, no ambiente, ao “Tá-Mar” ou a “Ala Arriba”, textos dramáticos de Cortez como adiante referirei, pelo ambiente piscatório, aqui na ”Cambeia dos Cardosos, na Murtosa”, com detalhadas descrições da “aglomeração de barcos”.

Em cena, encontramos a “Micas Saleira, Carminda, Rosa Pita e outras campónias munidas de ancinhos (que) carregam em grandes carros de bois o junco que sai do barco”, e “Manuel Fé e João Embirra, tipos vulgares de moliceiros (que) descarregam o barco para a margem superior”. Segue-se uma descrição pormenorizada destes personagens.

E o que que restou do texto inculca um espetáculo de grande expressão musical: “antes de subir o pano ouve-se em bastidores um coro de raparigas e o assobio dos homens”. E o diálogo é interrompido por sucessivas cenas musicais, em coro ou a solo. Veja-se um exemplo:

“Cezília – Limpando as lágrimas e cantando a custo – Cum cachopo em cada braço…/ e outo ós pinchos no regaço/ Caze chegaste a nascer…/ Botê-me à quinta do Paço, /Derreada de cansaço/ Sem gêto de me mober!

Coro – Tarefa baldada!/ Na quinta do Paço/ Ninguem perca nada!

Cezília - Nem bender-lhes nada queria/ Qua canastra bai bazia/ E a benda tá acabada./ Fiu por uma belancia/ Quas topei noutro dia/ Da hgente quedar ougada!

Coro – Pois fostes em vão/ Na quinta do Paço/ Todos dizem: Não!”

A prosseguir este inédito incompleto, o menos que poderíamos dizer é que se estava perante uma obra cénico-dramática, quem sabe se um libreto de ópera ou um texto de revista…

Mas o que devemos então aqui lembrar é que o “Tá-Mar”, peça de Alfredo Cortez escrita em 1936 e ambientada na Nazaré  constitui, quase sem alterações o libreto da ópera homónima de Rui Coelho: e de Rui Coelho é também a música de cena do filme de Leitão de Barros “Ala- Arriba” (1942), com de argumento e diálogos de Alfredo Cortez.

DUARTE IVO CRUZ 

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (VI)

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EÇA DE QUEIROZ AUTOR DE UMA OPERETA

Vimos aqui como o austero e exigente Alexandre Herculano não desdenhou, antes pelo contrário, escrever o libreto de uma peça musicada por António Luís Miró, “Os Infantes de Ceuta” datada de 1844: já não era pois uma obra de juventude. Nesse mesmo artigo, referi a existência de uma opereta com texto de Eça de Queiroz. Talvez se possa dizer que o teatro musicado melhor se adequava a um do que a outro…

Mas também se recorde que Eça não é propriamente um dramaturgo, apesar da tradução, em 1863, da peça “Philidor” de Joseph Baucardez e de vagas e nunca concretizadas intenções de adaptação pelo próprio de “Os Maias” que, esse sim, viria a subir á cena em pelo menos duas versões: em 1945, adaptado por José Bruno Carreiro, e em 2013, adaptado por António Torrado. Outras peças de Eça foram adaptadas a cena e anuncia-se agora uma adaptação teatral de “O Mandarim”

Registe-se ainda que as versões cinematográficas de romances de Eça remontam a 1922 com “O Primo Basílio” de George Pallu, “tarefa difícil e árdua” escreveu António Horta e Costa (in “História do Cinema Português” pág. 31). Em 1959, António Lopes Ribeiro realiza uma nova versão do mesmo romance “de que só ficou o enredo, rigorosamente respeitado”, diz Alves Costa (in “Breve História do Cinema Português”, pág. 5). De notar que para o professor brasileiro Carlos Cordeiro de Melo o mais expressivo “cinematismo” da obra de Eça situa-se em “Os Maias” e em “A Cidade e as Serras”. (in “Dicionário de Eça de Queiroz”, dir. A. Campos Matos pág. 207).

Precisamente: em 2014 estreou em Lisboa o filme “Os Maias”, de João Botelho, leitura cinematográfica muito próxima do texto de Eça nos diálogos e nas descrições,  inclusive pela adoção de um cenário para- teatral nas cenas de exterior. Excelente filme, na minha opinião.

Eça, estudante em Coimbra, foi ator. “O Francesismo”, publicado postumamente nas “Ultimas Páginas”, recorda, com detalhes, a sua experiencia no Teatro Académico. “Era pai nobre. E durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei, entre as palmas ardentes dos académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas – tudo traduzido do francês” …!

Hernâni Cidade escreveu que em “O Francesismo” Eça resume (“em luminoso relevo (…) a sua biografia intelectual, desde os tempos em que pôde ler correntemente uma história (…) até ao tempo da sua formação universitária, em que o único livro português que suas mão folhearam foi a Novíssima Reforma Judiciária”.

 E cita uma carta de Eça para Oliveira Martins, datada de 10 de Maio de 1884., onde afirma que “os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou em quase tudo um francês – exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada. Em tudo o mais, francês de província. Nem podia ser de ouro modo: já no pátio da Universidade, já no largo do Rossio, eu fui educado, e eduquei-me a mim mesmo, com livros franceses, ideias francesas, modos de dizer franceses, sentimentos franceses e ideais franceses”… Ironia de quem tanto amou e tão bem retratou a realidade portuguesa! (in “Seculo XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos seus Mestres” pags.55-56)

Ora bem: em 2013 é publicado o que restou de uma inédita opereta de Eça de Queiroz e Jaime Batalha Reis, Intitulada “A Morte do Diabo” datável do final dos anos 60, pesquisa e edição de Irene Fialho, Mário Vieira de Carvalho e José Brandão.  

Vieira de Carvalho refere designadamente que “os fragmentos que sobreviveram do projeto (a breve trecho abandonado) dão-nos no entanto indicações suficientes quanto ao perfeito entendimento que parecia existir entre o músico e os libretistas A blague musical e a blague literária entretecem-se e potenciam-se mutuamente” (cit. pág. 85).  

Não sabemos obviamente o que se deve a Eça e o que se deve a Jaime Batalha Reis. Os personagens são entretanto adequados ao teor irónico e iconoclasta dos textos cantados que chegaram até nós: Satã, Lorette, Mefisto, Ventre, Fósforo, Dandy, Poeta, e os Coros dos Diabos Velhos, dos Diabos Novos e das Almas.

Mas, no pouco que resta, encontramos por exemplo este trecho exemplificativo:

“Mefisto- Senhor, Vossa senhoria…/Satã – O quê?/ M- Devia fazer, para poder espairecer/Uma viagem, um dia/ S - O quê? Ir eu viajar?/ M- Ao Continente e às Ilhas/ S- Mas se eu não posso alugar/ Nem um burro de Cacilhas…/ Todos – Viver era voar, gritar, gritar/ Coro dos Diabos – Senhor Satanás/ Tenha piedade/ Toda a sociedade/ Está sem colarinhos./ Vá á rabugenta/ da tia Astragon/ Dê que é bom-tom/ Dar-lhe uns cobrezinhos/ Dê, dê/ Senhor Satanás/ Tenha modos nobres/E não faça asneira/ Dei-te aí uns cobres/ P´ra engomadeira”…


DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (V)

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HERCULANO, AUTOR DE UMA OPERETA

Comecemos por um ponto prévio de análise dramático-musical, perdoe-se o tom enfático da expressão. É que, em rigor, não haverá uma distinção absoluta entre géneros de espetáculo: até que ponto uma peça de teatro musicado é ópera, é opereta ou revista? Quantas óperas existem, ao longo de séculos de criação e produção, em que as cenas declamadas alternam com as cenas cantadas? Quantos números de revista alternam o carácter cómico com o trágico? E mais: Eça de Queiroz, e é só uma referência que veremos em próximo artigo, não escreveu o texto de uma opereta? E quantas revistas introduzem, no conjunto de cenas e números cómicos, pequenas dramatização de teor crítico claramente e assumidamente dramático?

A questão põe-se muito especificamente com um autor de quem não se esperam ligações ao teatro musicado – e referimo-nos a Alexandre Herculano. Desde logo se diga que a produção dramática de Herculano é escassa, três textos apenas, e logo a primeira, “Tinteiro não é Caçarola” (1838) não passa da tradução/adaptação de um vaudeville de Scribe e Duveyrier, a que se seguiu “O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” (1839) e finalmente “Os Infantes de Ceuta” (1844), libreto de uma peça musicada por António Luís Miró.

Mas mesmo assim: tudo o que Herculano escreveu tem óbvia relevância e qualidade. No caso de “Os Infantes de Ceuta”, estamos perante uma insólita paixão do Infante D. Henrique por uma serva moura. A qualidade e solidez do historiador emerge, tal como já escrevi na “História do Teatro Português”, “na minucia dos cenários, na terminologia militar rigorosa e em certa dimensão romântica da defesa da praça africana “ Transcrevo aí uma fala do Infante:

 “Quando ardente paixão tem a ternura/quantas fascinações há no amor virgem:/quanto meigo sorrir, quantas promessas!” E acrescento um comentário de Teófilo Braga: “poesia percebia-se pouco”… (in “História do Teatro Português” pág. 157).

Luciana Stegagno Picchio destaca a dramaturgia breve de Alexandre Herculano e integra-a num movimento geral de produção dramática que, na época tornou-se quase moda: “em meados de Oitocentos não havia em Portugal quem não fizesse teatro, e assim poderá ter interesse respigar do repertório desses anos, o nome do pai de historiografia romântica, Alexandre Herculano”. E cita ainda o “cândido romancista” Júlio Dinis, Rodrigo Paganino, hoje esquecido, João de Lemos  e Camilo, este “o mais sanguíneo, imaginativo e , no certo sentido o mais autêntico dos romancistas portugueses”, nada menos! (in “História do Teatro Português” pág. 261)

João de Freitas Branco, na “História da Música Portuguesa” assinala “Os Infantes de Ceuta” como obra de destaque na musicologia de António Luís Miró (1815 – 1853). Este compositor , hoje praticamente esquecido, nasceu em Granada e faleceu no Brasil, onde se fixara em 1850. Entretanto, antes dos 10 anos já vivia em Lisboa, onde fez a sua formação musical e iniciou uma na época brilhante e festejada carreira de maestro e compositor, designadamente de óperas e operetas: assumia-se como compositor e maestro português e como tal o refere Sousa Bastos no sempre citável “Diccionário do Theatro Português” (1908).

O certo é que Miró veio para Lisboa em criança, aqui fez a sua carreira, aqui estreou centenas de obras, entre elas, numerosas óperas e operetas. E o austero e exigente Alexandre Herculano não hesitou em colaborar com ele!…

Aliás, é caso para dizer que o teatro marcou a vida e obra de Herculano muito para lá da sua dramaturgia breve. Os estudos e pareceres recolhidos no volume V dos “Opúsculos” e a colaboração e docência no Conservatório, a colaboração atenta na imprensa, revelam uma participação direta no meio teatral do tempo. Chegou a dirigir o Teatro do Salitre com Castilho e César Perini (cfr. Jorge Custódio e José Manuel Garcia na edição dos “Opúsculo - V” pág. 63)

E no dramalhão ”O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” introduz com eficácia um personagem cómico, o taberneiro Paio Rodrigues: quando o protagonista D. Pedro toma conhecimento do exilio do Prior do Crato, brada na boa tradição do drama romântico: “(D. Pedro) – Oh! Minha Pátria! Minha desgraçada Pátria!” ao que replica o taberneiro: “(Paio Rodrigues) – Oh! Minha estalagem, minha escavacada estalagem”!

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (IV)

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André Brun, caricatura de Francisco Valença 

 

ANDRÉ BRUN, DA COMÉDIA E DA REVISTA À TRAGÉDIA DA GUERRA

Há um paradoxo, e não é pequeno, nesta evocação das comédias e das revistas de André Brun: é que a oportunidade e a calendarização surge no contexto das comemorações do início da Primeira Grande Guerra: e no livro de recordações intitulado “A Malta das Trincheira - Migalhas da Grande Guerra – 1917-1918”, o capitão André Brun descreve, num realismo simultaneamente cómico e trágico, os dois anos que passou no Norte de França, nas trincheiras do Corpo Expedicionário Português.

Desde logo se diga que esta narrativa, sempre dura, tantas vezes cruel nos factos vividos que descreve, não raro irónica mas sempre humaníssima, concilia-se bem com a extraordinária obra teatral do autor, que nos deixou para cima de trinta peças, sobretudo comédias e revistas. E praticamente em todos esses textos, dos mais cómicos aos mais sensíveis, o que ressalta é um substrato humaníssimo de observação de comportamentos, de situações, geralmente cómicas mas sempre com um substrato que conduz à observação e compreensão psicológica - e isto, tanto nas formidáveis comédias, como “A Vizinha do Lado” (1913) que António Lopes Ribeiro transpôs para o cinema em 1945, ou sobretudo “A Maluquinha de Arroios” (1916) que constituiu, mais de 50 anos passados, um dos maiores sucessos do Teatro Experimental de Cascais: de ambas escrevi, na “História do Teatro Português” (2001), que  “são modelares dessa textura do primeiro quartel do século XX português, com a problemática que a I Guerra reforçou”…

Ora precisamente: as memórias da guerra, vividas e descritas por Brun, transmitem um sentido simultaneamente trágico, condoído, irónico tantas vezes mas sempre solidário, da tragédia individual e coletiva da guerra. E sente-se, nestas descrições vividas, o sentido de dramaticidade, abrangendo situações trágicas mas também “cómicas” se tal se pode dizer na guerra…

Os exemplos sucedem-se, mas veja-se esta transcrição:  

«Entrevisto a minha gente.-Ah! Meu capitão! Eles mandaram aí umas “garrafas de litro”; mas cá a gente não “cortou prego”…

A quem queira fixar o português da zona de guerra, direi que os projeteis eram então divididos, conforme o tamanho, em “barris de almude, garrafas de litro e copos de meio litro”. “Cortar prego” ficou sendo ”sem medo”». (André Brun, ob. cit. Pag.41)

Ora bem: o que aqui e agora quero salientar é este extraordinário talento que permite passar da tragédia da guerra, diretamente vivida, para a exuberância espetacular da ”revista à portuguesa” como enão se dizia, para já não falar das comédias. “Se é certo que fala do medo, do sofrimento e da morte, também é certo que procurou nas condições da natureza e da condição humana aquilo que um humorista sempre procura quando admite que o riso seja temperado com o sal das lágrimas” escreveu José Jorge Letria na reedição de “A Malta das Trincheiras”. E não será por acaso que Brun a certa altura escreve, na obra citada, que “ o grande Q. G. (Quartel General), tendo acordado em que um dos meios de promover as tropas do que se chama um bom senso moral é facilitar-lhes quanto possível o bom humor, organizou a Repartição dos Humoristas com delegações nas várias estâncias da papelândia”… 

“Talento enorme de humorista,” refere Vítor Pavão dos Santos: e cita um diálogo entre a “Avenida da Liberdade” e as “Avenidas Novas”, na revista “Fado de Maxixe” (1909):

«AL – Eu sou desta aldeola em ponto grande/Desta Lisboa toda presumida/ Onde a tolice com rumor de expande/ A via mais seleta e concorrida.

“AN - Nós, Avenidas Novas/Meninas petulantes/ damos sobejas provas/ de ser- mos elegantes» …( cit. in “A Revista à Portuguesa” -   1978).

E Luís Francisco Rebello transcreve, da revista “O País do Vinho” (1909), uma “Cega – Rega do Ministério” em que o Diretor Geral, os oficiais e amanuenses, o contínuo, o porteiro, abandonam a repartição porque “O ministro foi a paço/Com certeza não vem cá/Portanto também me passo/ Que é mesmo um ar que me dá”…( in” História do Teatro de Revista em Portugal” vol. I – 1984.

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (III)

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GUERRA JUNQUEIRO, INESPERADO AUTOR DE REVISTA

Em 17 de janeiro de 1879 o Governo Civil de Lisboa proíbe a representação, no Teatro Ginásio, da “revista do ano” -  como então se dizia - “Viagem à Roda da Parvónia”, de um tal Comendador  Gil Vaz, estreada na véspera, em ambiente de escândalo. E de tal forma, que o comunicado do Governo Civil“ mand(a) a qualquer agente da policia que intime a empresa  do Teatro ginásio Dramático para que retire imediatamente de cena a revista (…) cujas representações ficam proibidas; bem como para que seja desde já contra-anunciado o espetáculo desta noite”…! Curiosamente, este desconhecido Comentador Gil Vaz ocultava uma  inesperada parceria revisteira: nada menos do que Guerra Junqueiro e  Guilherme de Azevedo: Junqueiro já  na altura era um nome referencial; Azevedo era jornalista de grande nomeada, porem de escassa expressão dramatúrgica (“Rosalino” – 1877).

E também se diga que Junqueiro pouco se dedicou ao teatro: alem da revista que aqui recordámos, colaborou noutro texto, “A Fábia” (1873), récita de finalistas da Universidade de Coimbra. E só em 1896 publicaria a versão final do poema dramático “Pátria”, critica violenta à situação histórico-politica a partir do Ultimato inglês de 11 de janeiro de 1890.  A génese deste exercício teatral foi lenta e assumiu formas e designações diversas -  “Portugal no Calvário” no próprio ano do Ultimato, “A Agonia” em 1891/2 e finalmente a versão final, “Pátria”.

Como se sabe, D. Carlos é violentamente criticado: mas, como noutro lado, escrevi, “Junqueiro reconheceria a tolerância do reu relativamente ao seu poema” (in “História do Teatro Português” pag. 234. E tal como refere Luciana Stegagno Pichio, a “Pátria identificava Portugal vilipendiado e politicamente frustrado com o doido da tradição medieval” (in “História do teatro português” pag. 310).  Por  seu lado, Álvaro Manuel Machado reconhece no poema “uma vibração elegíaca e saudosista” que é relevante em termos de literatura dramática. (in “Dicionário de Literatura  Portuguesa” pag. 254, verb. Junqueiro, A. M. Guerra).

Mas voltemos À Viagem à Roda da Parvónia” O texto assume um criticismo feroz, que ainda hoje se faz sentir, especialmente pela capacidade e potencialidade “de espetáculo”, num fase mais ou menos inicial do teatro de revista.  Para já, são pAra cima de 60 personagens, evidentemente desdobrados em termos  da representação teatral, mas que cobrem, no seu sentido critico mordaz e tantas vezes violento, um universo variadíssimo de  carateres e determinam um choque permanente de situações.

 A politica domina o texto, a critica e até a cena: não por acaso, o Quadro I do Ato I  “representa uma arcada do Terreiro do Paço. – Vários grupos conversam – De quando em quando rapazes atravessam apregoando cautelas – Vendilhões de agua fresca gabam e excelência do liquido”, nada menos! E segue uma delirante sucessão de situações, que põe em cena populares, poetas, deputados,  ministros , estátuas, deuses clássicos, as  quatro estações, candidatos, eleitores…  e mais Matusalem, Apolo, o Judeu Errante…

 Luis Francisco Rebello, NA História do teatro de Revista em Portugal,  (vol. I -1984) evoca a lista de personalidades que, a pedido dos autores, comentaram e a edição do texto: João  de Deus, Antero, Oliveira Martins, Filho de Almeida,  Ramalho Ortigão,, Pinheiro Chagas, Gervásio  Lobato,  Julio César Machado, Magalhães Lima… E cita uma cena na Camara dos Deputados, que constitui, na verdade, uma tremenda critica à vida politica da época…
O Teatro Experimental de Cascais repôs muito recentemente  a "Viagem à Roda da Parvónia". E o espetáculo mostra como o texto não perdeu oportunidade!

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (II)

GIL VICENTE, AUTOR DE REVISTAS?

O tema desta crónica não é tão absurdo como possa parecer. Afinal, a revista,  género teatral iniciado entre nós, como já vimos, em 1851, pode definir-se a partir de algumas características bem claras: espetáculo dramático-musical, de cariz predominantemente mas não exclusivamente cómico, com vocação critica de costumes e de atualidade, estruturado em cenas ou quadros sucessivos e encadeados por um tema, mas entre si autónomos. Assim é a “revista do ano”, como na origem se designava.

Mas se virmos bem,  esta estrutura de espetáculo subjaz e pode ser aplicada ou identificada em autores clássicos, mesmo assumindo que a intencionalidade era outra e os meios cénicos totalmente diversos.  Por isso mesmo, iremos encontrar grandes autores dramáticos, escritores e poetas de primeiro plano  que escreveram e assinaram revistas: outra coisa não é, por exemplo, a “Viagem à Roda da Parvónia” de Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo, estreada em Lisboa em 1876, que referiremos em próxima crónica.

Ora, neste perspetiva, não choca considerar Gil Vicente, também aqui, de certo modo o percursor do género…Vejamos pois.

 No conjunto da obra de Gil Vicente, cerca de 45 peças, pelo menos 36 remetem diretamente e expressamente para “números musicais”, utilizando já aqui uma terminologia comum na estrutura da revista. Mesmo acompanhando a classificação clássica de comédias, tragicomédias, farsas e obras de devoção, comummente aceite a partir da “Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente” publicada em 1562, encontramos numerosos números musicais expressamente referidos: e o facto de eles surgirem também nas tragicomédias não colide com a carater predominantemente lírico, não raro cómico, dessas canções e demais intervenções de cânticos expressamente apontados como tal.

 “Gil Vicente alem de autor, também era musico e ator” escreve Lucciana Stegagno Pichio (“História do Teatro Português” 1964).  Manuel Carlos de Brito , reconhecendo embora que são muito escassos os dados que nos permitam afirmar que Gil Vicente foi ele próprio  compositor”, admite que as intervenções cantadas ou tocadas em diversas peças “foram também compostas pelo autor”. (“Estudos da História da Musica em Portugal” 1989).

 João Freitas Branco é explicito quando distingue, na obra de Gil Vicente,   a musica de cena, as canções expressamente como tal referidas, as indicações de números musicais e o espetáculo musical que conduziria à  ópera: ”Em Gil Vicente, os cantares e tangeres aparecem quando os personagens, na sua ação em cena, cantam e tocam como cantariam ou tocariam como se a coisa se passasse na vida corrente, fora do tablado.” (“História da Musica Portuguesa”1959).

Em qualquer caso, percorre-se o conjunto das obras de Gil Vicente, e encontramos numerosíssimas canções e intervenções musicais como tal expressamente referidas. E é curioso, ou poderá ser significativo, que logo no “Auto Pastoril Castelhano”  peça que surge imediatamente depois do iniciático “Auto da Visitação ou “Monólogo do Vaqueiro”, um personagem singularmente  denominado Gil, logo na fala inicial, canta: “Menga Gil me quita el sueno/ que no durmo”. E são numerossímas, como acima referi, as intervenções musicais, tanto das comédias como nas tragicomédias ou nas obras de devoção.

Daremos apenas mais um exemplo, entre dezenas que poderíamos citar –  este surge no “Auto Pastoril Português”.  Perante a imagem da Virgem, o pastor Joane propõe que se termine com cânticos a  adoração a Nossa Senhora. Os clérigos rezam o “Himno O Gloriosa Domine” . E os pastores, diz a nota da edição original, cantam “e a letra da cantiga é a seguinte:
Quem é a desposada?/ A Virgem sagrada”...  E segue a cantiga até final.

Mas mais: na edição dirigida por Marques Braga (“Gil Vicente – Obras Completas” – vol I, 1958)  que aqui temos utilizado, encontramos  remissões musicais atribuídas ao próprio Gil Vicente. No “Auto da Sibila cassandra, “acabada assi sua adoração, cantaram a seguinte cantiga feita e ensoada pelo autor(…) Isto bailado de terreiro de três por três: e por despedida, o vilancete seguinte”…

 Gil Vicente também músico?


DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (I)


O QUE É UMA REVISTA?

A tradição do teatro de revista em Portugal vem de meados do século XIX, e a própria designação do género aponta desde logo a expressão de conteúdos a nível de texto: trata-se, na origem, de uma evocação, memorização ou descrição dos eventos relevantes passados em determinada época – daí, a designação tradicional, aplicada ainda em meados do século passado, de “revista do ano”.

E isto porque o primeiro texto-espetáculo do género sobe à cena no Teatro do Ginásio (que aqui já foi evocado) em 11 de Janeiro de 1851, sob o título programático de “Lisboa em 1850”. Eram seus autores, no que se refere ao texto, Francisco Palha e Latino Coelho, o que justifica aliás o reparo de Luís Francisco Rebello: “poderá surpreender a ligação do polígrafo austero (…) a um género de teatro aparentemente tão frívolo” (“História do Teatro de Revista em Portugal”, vol. I - 1984).

Em 1908 Sousa Bastos, ele próprio autor de revistas, propõe uma definição deste género teatral: “É a classificação que se dá a certo género de peças em que o autor critica costumes dum país ou duma localidade, ou então faz passar à vista do espetador todos os principais acontecimentos do ano findo: revolução, grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários, espetáculos, crimes, desgraças, etc.” assim mesmo: e queixa-se de que “houve épocas em que nas revistas (…) eram festejadíssimas as caricaturas de personagens importantes da política.  Tudo isto hoje está proibido. Pois sinceramente, era isso preferível à pornografia de que quase todas as revistas hoje estão recheadas”! (in “Diccionário do Theatro Português – obra ilustrada com mais de 500 photogravuras” - 1908).

Repita-se, estávamos em 1908!

A designação deste género de teatro musicado, a “revista do ano”, decorre de que precisamente se passava em revista, numa sucessão de quadros, os acontecimentos marcantes da atualidade – no caso da primeira que acima citamos, “Lisboa em 1850”…  E no mesmo estudo  de Rebello, são transcritos diálogos de outra das primeiras revistas levadas à cena  -  “Fossilismo e Progresso” (1856) de Manuel Roussado. Vejamos um diálogo entre “Portugal e o Enviado do Brasil” acerca do orçamento do Estado:

“Portugal - “Cada vez que oiço falar em orçamento cubro-me todo de suores frios. Oh, eu tenho sido vítima do orçamento (…) Todos se lançam ao orçamento como cães esfaimados”. “Enviado do Brasil - E é verdade. Há sujeitinho que, morto de fome, se senta à mesa do orçamento para comer umas sopas: o caso é que da sopa passa ao cozido, do cozido aos assados, dos assados aos saboreantes, e comeria tudo até arrebentar, se não houvesse outros tão esfaimados como ele (recita com acompanhamento de música) Na mesa do orçamento/comem bem grandes glutões/E que fazem a vapor/Muito bem as digestões”… e seguem-se mais duas quadras do mesmo teor  a que o personagem” Portugal” responde – “É isso mesmo sem tirar nem pôr o que me sucede a mim”…

Ora bem: durante mais de um século, o teatro de revista constitui uma janela de crítica politica e social em que, curiosamente, ao longo dos tempos e das sucessivas situações e regimes, houve maior liberdade de espetáculo e de texto do que no teatro declamado. Talvez porque se pensasse que a revista, e designadamente o Parque Mayer, não provocava crises politicas.

Mas se virmos os textos, verificamos que não faltava critica – só que num envolvimento de música e de espetáculo que seria considerado menos subversivo… o que não impedia, evidentemente, a censura previa aos espetáculos, no ponto de vista da politica e dos costumes: mas nesse aspeto, mesmo nos anos de maior fechamento politico a Revista beneficiava de uma “tolerância” bem maior do que o teatro declamado.

Seria pela tradição secular de crítica social, ou por se entender que o Parque Mayer não era subversivo? O certo é que, de 1850 aos nossos dias, a revista gozou sempre de maior tolerância do que outros espetáculos.

E agora, uma referência a autores. Dando como certo que a primeira revista data de 1851, menos certo não será que o género está implícito em expressões dramáticas e em intervenções musicais, no plano da comédia e da crítica, que remontam a Gil Vicente e passam pelos clássicos e pelos românticos. E que autores mais recentes, de  Guerra Junqueiro a Bernardo  Santareno, escreveram revistas:  deles falaremos em próximos artigos.

DUARTE IVO CRUZ