Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
No centenário de Mário Soares lembramos a amizade com António Alçada Baptista e a fundação de “O Tempo e o Modo”.
Regresso sempre com muito gosto ao magnífico diálogo biográfico sobre uma vida plena entre Maria João Avillez e Mário Soares, agora reeditado pela Imprensa Nacional. E permito-me recordar o momento em que o futuro Presidente da República integrou o corpo da revista “O Tempo e o Modo”. Foi um momento especial, em que se nota uma certa premonição sobre a institucionalização da democracia. Aliás, a capa do primeiro número da revista é um raro prenúncio do futuro de liberdade que onze anos depois se tornou realidade. Mas comecemos pelo início dessa história, citando o próprio Mário Soares… “Só conheci o Senhor D. António (Bispo do Porto) (…) quando ele se encontrava já no exílio, em Roma, para participar no Concílio Vaticano II. Depois vim a encontrá-lo em Lourdes e, mais tarde em Tormes, perto de Salamanca. Mas isto já no consulado de Marcelo Caetano. Logo que apareceram os chamados ‘católicos progressistas’, compreendi a sua enorme importância política para o combate a um regime que se reclamava do catolicismo e que, pelo menos na sua fase inicial, tivera a bênção da Igreja. Nessa época, tive grande contacto com o Francisco Lino Neto, que conheci durante a campanha de Delgado. Antes, havia já conhecido o Francisco Sousa Tavares, a Sophia, o padre Felicidade Alves. O António Alçada Baptista, conheci-o quando era ainda proprietário da Livraria Morais, e tive contactos com ele desde os tempos em que era advogado. (…) Achei que o corte de setores significativos da Igreja portuguesa com o regime salazarista tinha uma enorme importância estratégica, porque retirava ao regime o seu principal argumento: dizer que a Oposição Democrática era constituída tão-só por comunistas e por velhos republicanos ultrapassados que, por despeito faziam o jogo dos comunistas”. De facto, no princípio dos anos sessenta, algo muda, é o tempo do Concílio Vaticano II, sob o signo renovador do grande Papa João XXIII. E um dia, conta Mário Soares, António Alçada pergunta-lhe se queria participar numa revista de cultura que desejava fundar, “O Tempo e o Modo”. “Não hesitei um momento, apesar da minha posição de ‘laico, republicano e socialista’, que ele conhecia. Disse logo que sim”. Nesse tempo, tentou empurrar o grupo fundador no sentido da democracia cristã. Falou com Giorgio La Pira, síndaco de Florença, e outros democratas-cristãos, mas sem sucesso. “Se os católicos tivessem ajudado pelo seu lado, teria sido muito mais rápido e fácil. Não quiseram, por razões de coerência ideológica, que, aliás, compreendo”. Se tivesse havido esse passo, teriam sido criadas outras condições para um abalo mais rápido da situação. Francisco Sousa Tavares foi o único que compreendeu a ideia de Mário Soares, ele que se envolvera no golpe da Sé com Jorge de Sena. Mas nessa altura ainda era monárquico, “o que atrapalhava um pouco as coisas”. Mesmo assim, entrou em contacto com o grupo de monárquicos democratas, desiludidos com o fracasso do Integralismo Lusitano, cujos melhores acabaram todos anti-salazaristas confessos, de Luís Almeida Braga a Vieira de Almeida – estabelecendo-se ainda a grande amizade com Gonçalo Ribeiro Telles.
Para Soares, o fundamental desse encontro e dessa abertura era dar credibilidade à Oposição Democrática, alargando-a para além do que Manuel de Lucena designava como um “grupo de velhos”, dividido entre o “reviralho da baixa” e a “social-democracia”. Havia que levar a água ao seu moinho, sentindo-se satisfeito por estar no grupo de “O Tempo e o Modo” – “janela aberta para outra geração e outra realidade”. E Nuno Bragança compreendeu bem esse entendimento. Porém. se alguns amigos o acusavam de andar “metido com os católicos”, Mário Soares respondia: “Não se preocupem! Sei o que quero e o que estou a fazer”. E Francisco Salgado Zenha concordava inteiramente. Em 1963, houve uma violenta diatribe que envolveu Sottomayor Cardia, então ainda no PC, contra uma “aliança encapotada” entre os católicos e a social-democracia, mas tudo seria passageiro e a coerência de Mário Soares não saiu abalada. E Cardia entraria no PS. Ficou, contudo, sempre uma profunda admiração e amizade com António Alçada – “uma figura humana encantadora e um grande escritor. A política sempre o interessou secundariamente, como mero imperativo ético. (…) arruinou-se alegremente, com a Livraria Morais, O Tempo e o Modo e a revista Concilium. Mas realizou uma obra extraordinária! (…) A par de Lino Neto, de Teotónio Pereira e de Sousa Tavares, desempenhou um papel corajoso e importantíssimo na tentativa de separar a Igreja do salazarismo. Como, décadas antes, tinham ensaiado os irmãos Alves Correia, o grupo Metanoia, com Ferreira da Costa e João Sá da Costa e o Professor Vieira da Luz, entre outros”. Quando realizou a entrevista com Marcelo Caetano, foi criticado e incompreendido. “Não foi grave, mas pagou-o caro, depois do 25 de abril. Alguns apressados ‘revolucionários’ voltaram-lhe então a cara, com muito mais oportunismo do que convicção. Sempre o estimei muito e tive ocasião, nessa época difícil, de lho demonstrar. Consolidámos então uma amizade muito grande, que perdura (estava-se no ano de 1996), e a que, pelo meu lado, se junta a admiração muito sincera pelo Homem, pelo maravilhoso contador de histórias e pelo escritor”. Sou pessoalmente testemunha disto mesmo sem qualquer dúvida.
No primeiro número de “O Tempo e o Modo” (janeiro de 1963), Mário Soares tratou do tema “Oliveira Martins e a Questão do Regime”. Mais do que um ensaio histórico, tratou-se de situar a génese do republicanismo em 1910, perante a crise do final do regime monárquico. Não poderiam, porém, confundir-se os aspetos ideológicos dessa conjuntura com as novas circunstâncias perante o salazarismo. Por isso, salientou a proximidade socializante de António Sérgio e Oliveira Martins, demarcada de uma lógica jacobina. Contudo, Mário Soares pensava na conjuntura do início dos anos sessenta, com a guerra colonial a despontar, a questão social a desenvolver-se e a renovação religiosa a ter lugar – como salientei a propósito de D. Alexandre Nascimento. Por isso, distinguia a diferença dos tempos e considerava as razões que levaram à vitória republicana, perante a incipiência socialista. “Só a história (que está por fazer!) das ideias vistas no seu contexto económico e social, nos poderia dar resposta para este problema” (quem teria razão sobre a resposta à crise do regime do princípio do século XX – Oliveira Martins, Antero e Eça contra Teófilo Braga ou Junqueiro?). “No entanto, apenas como solução provisória – seja-me lícito chamar a atenção (dizia M. Soares) para o seguinte facto sintomático: a adesão popular inegável que encontrou a doutrinação republicana, especialmente a partir do centenário de Camões, em 1880 – adesão que sobretudo avulta em confronto com o fraco eco que respondeu, mesmo nas massas operárias, às aspirações socialistas dos nebulosos doutrinários do século XIX! Não nos inculca esta fácil constatação – que resulta, aliás, de dados incontroversos – o problema da viabilidade do socialismo numa sociedade retrógrada como a do nosso século XIX e o da sua difícil articulação aos anseios mal definidos e às necessidades vitais do português comum?” E havia que compreender a existência de diversas correntes republicanas, devendo ficar claro que a questão do regime se tornava num “autêntico problema de sobrevivência nacional. É condição prévia de qualquer esforço renovador”. Nestes termos, a escolha da “questão do regime” para tema era um alerta para a urgência da construção da democracia, representada pela tentativa da geração de 1870, e em particular de Oliveira Martins para a criação de uma vida nova. A alusão histórica funcionava como uma verdadeira metáfora para os novos tempos, sem criar suspeitas para a censura, que tão duramente atingiria a nova revista. E o ponto de encontro para esse debate era uma iniciativa de ideias que abria caminhos novos, em nome de uma Oposição democrática plural, onde havia, além das oposições tradicionais, católicos inconformistas, que punham em causa o eurocentrismo e chamavam a atenção para a descolonização e para a autodeterminação e independência dos povos africanos, que davam importância ao Estado Social e aos movimentos emancipadores da sociedade e que estavam distantes do velho anticlericalismo. Aliás, a finalizar o texto que referimos, uma nota desenvolvida citava Bernardino Machado sobre a necessidade da tolerância em matéria religiosa. Por outro lado, a presença de um jovem dirigente estudantil, como Jorge Sampaio (também ele futuro Presidente da República), com o título inequivocamente atual, “Em torno da Universidade”, não poderia ser mais significativa. A renovação geracional era (e é) fundamental e a prioridade educativa exigia-se.
Assim, a presença de Mário Soares é, a vários títulos, marcante, como o tempo viria a demonstrar amplamente. Se politicamente a construção da democracia resultou de um compromisso complexo a partir do Movimento da Forças Armadas e do seu desenvolvimento e consolidação, tornando o 25 de abril uma data emblemática (que Francisco Sousa Tavares comparou ao primeiro de dezembro de 1640, do alto da guarita do Largo do Carmo), incompreensível sem o entendimento do processo dinâmico que se lhe seguiu e que permitiu a aprovação da Constituição da República fruto de dois grandes compromissos, envolvendo as Forças Armadas (e lembramos a coerência de Ernesto Melo Antunes) e os partidos políticos, que levaram ao respeito escrupuloso, apesar das naturais vicissitudes, por uma transição do poder militar para o poder civil democrático. Como dizia o primeiro editorial da revista, “o mal-estar geral e não localizado” existente entendia-se “como um estado de crise de consciência coletiva, mas partimos certos de que não enunciaremos todas as perguntas, nem estamos seguros de que as respostas que daremos serão as melhores”. A participação de Mário Soares e Salgado Zenha nesse projeto, que, seguindo a lição de Emmanuel Mounier, deveria envolver crentes e não crentes, constituiu uma espécie de premonição e de profecia – antecipando a institucionalização de uma democracia plural centrada numa cidadania inclusiva pela qual tantos cidadãos se bateram em nome, afinal, do que Mário Soares designou como uma questão de sobrevivência nacional.
Quando hoje nos deparamos com a capa da revista “O Tempo e o Modo”, nascida em janeiro de 1963, encontramos, ao lado do fundador António Alçada Baptista, os nomes de dois futuros Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio.
CULTURA COMO MEIO NATURAL
De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.
Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.
LIBERDADE AUTÊNTICA
Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.
O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA
“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.
Lembramos hoje a revista “O Tempo e o Modo”, invocando António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, a propósito de um texto fundamental sobre o Concílio Vaticano II. Não pode ficar sem referência especial, no mundo das ideias, a partida de Frei Mateus Cardoso Peres, O.P. (1933-2020), pelo que representou a sua personalidade e pela obra que nos deixou.
UM TEXTO PREMONITÓRIO Conheci-o bem por razões familiares e tenho pela sua vida e obra uma grande admiração. Devo lembrar que o grupo de que fez parte dos “católicos inconformistas” integrou alguns dos meus grandes amigos, como António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa – num conjunto mais vasto de quem sempre estive próximo, entre os quais se contam Pedro Tamen, Maria Isabel Bénard da Costa, Nuno Bragança, Ruy Belo, M.S. Lourenço, Manuel Lucena, Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Falo da Aventura da Morais, de “O Tempo e o Modo”, da revista “Concilium”, do Centro Cultural de Cinema (CCC) e do Centro Nacional de Cultura. E se há quem obrigue a considerar com o maior cuidado a expressão de Ruy Belo sobre “Os Vencidos do Catolicismo” é exatamente Frei Mateus. Com efeito, o tempo passou e não devemos esquecer que o célebre poema abria já a porta relativamente aos exatos termos do que representa essa geração. “Nós que perdemos na luta da fé / não é que no mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos”… O poeta bem conhecia a origem oitocentista da designação dos “vencidos da vida”, e sabia que o tempo os tornaria vencedores, não no sentido temporal, mas no sentido das ideias e da essência do espírito. Há trajetórias diferenciadas, é certo, mas há também que entender os frutos de longo prazo que foram lançados… “Victus sed victor” – e porque há quem continue a resistir ao entendimento sobre os sinais dos tempos, a verdade é que continua atual esse combate sereno e persistente não por uma Igreja triunfante, mas por um caminho cristão de respeito mútuo e de dignidade. Não esqueço, há muitos anos, um convite que Frei Mateus me fez para ir falar a Fátima à comunidade dominicana sobre pluralismo e tolerância. Lá estivemos, uma tarde de Primavera, e não esqueço as estimulantes reflexões de outro saudoso amigo, Frei José Augusto Mourão. Longe de orientações fechadas, eis que ficou uma pergunta, mais do que quaisquer respostas: como lidar com os intolerantes? Como distinguir a tolerância, enquanto respeito e não indiferença, a intolerância e as pessoas intolerantes? E o tema continua na ordem do dia. Frei Mateus era um intelectual rigoroso mas estimulante, avesso às simplificações. Com ele sabíamos que a dignidade humana exige procura, e que o diálogo só vale a pena se for trabalhoso… Sempre nos ensinou, por isso, que a teologia obriga a conhecimento e a ir além da superficialidade – o “aggiornamento” obrigaria, pois, a tempo e a reflexão. Daí a importância dos célebres colóquios para assinantes da “Conciluim”: refletindo sobre e com Schillebeeckx, Chenu, Congar ou Balthasar… Leia-se, por isso, um texto fundamental e premonitório publicado no nº 32, de “O Tempo e o Modo”, de novembro de 1965, intitulado “A 4ª Sessão, o Concílio e a Igreja”. É um artigo histórico. Assina-o Manuel Frade, pseudónimo de Frei Mateus Peres, apropriado para evitar mal-entendidos. Aí encontramos a defesa de uma fraternidade colegial conciliar, a crítica de alguma excessiva prudência papal e a defesa da necessidade de retirar consequências no tocante à liberdade de consciência e à liberdade religiosa… “Permanece problemático saber se o homem do nosso tempo sentirá, face a este documento (sobre liberdade religiosa), a Igreja francamente simpática ao respeito devido à liberdade religiosa dos não-católicos e se se convencerá de que ela renunciou de uma vez para sempre ao imperialismo doutrinal, para enveredar por caminhos de diálogo, de fraternidade, de serviço”. Já quanto ao importante esquema 13 (que se tornaria a constituição “Gaudium et Spes”), salientando a sua importância, temia que lhe pudesse faltar “simplicidade, clareza e força, (…), para poder ajudar os mais desesperados”. E dava um exemplo: “o esquema quando trata da guerra e paz, condena o uso das armas atómicas mas não a sua posse, o que é sancionar as armas de dissuasão, os orçamentos militares, a guerra fria”…
O TEMA DO CELIBATO Por outro lado, as orientações sobre a vida sacerdotal, designadamente quanto ao celibato, deveriam ter merecido mais atenção, mas foram subtraídas pelo Papa à discussão da Assembleia… Ontem como hoje, o velho tema persiste, e o autor não deixava de colocar o dedo na ferida. E afirmava: “Seria talvez mais eficaz e mais puro, em vez da avalanche de textos equilibrados, sensatos e timoratos, propor ao mundo, em toda a sua inteireza, uma bela linguagem profética, que não pretendesse solucionar os problemas à luz da moral atual, mas que lançasse os espíritos para maiores exigências, experiências mais radicais. Estamos confiantes que essa linguagem seria útil, certos de que as dificuldades são mais frequentemente superadas do que resolvidas e de que ela iria em cheio atingir aqueles que mais desesperadamente estão à espera, mesmo inconscientemente, da Igreja de Cristo. O Concílio apareceria então como verdadeiro acontecimento espiritual, no sentido mais nobre do termo, concretização do “amor pela humanidade” na palavra já citada de Paulo VI, da intuição genial de João XXIII”. E acrescentava que a mensagem poderia não tocar o homem da rua, por ser superficial e faltar-lhe novidade. E, citando Charles Péguy, sem o dizer, afirmava que seria melhor ser mais “místico” e menos “político”. De qualquer modo, para Frei Mateus, os esquemas sobre a liturgia e sobre o ecumenismo eram muito bons e muito positivos… Sobre as relações com o mundo as dificuldades eram naturalmente maiores, e não podemos esquecer o que ocorreu entre o naufrágio do primitivo esquema 17 e o esforço titânico de João XXIII, com a encíclica “Pacem in Terris”, para dar sentido a uma relação positiva e transformadora da Igreja no mundo, no sentido de uma cultura de paz… Esta expressão crítica dá-nos boa nota sobre a extraordinária independência de espírito do pregador e sobre o seu empenhamento na renovação da Igreja. No entanto, havia “toda uma série de textos conciliares (…) preciosamente válidos e que nos dizem muitas coisas muito úteis. Em certo sentido podemos dizer que ao pós-concilio caberá decidir da sorte do Concílio”. Assim tem acontecido, como sempre ocorre na História. “Se os textos forem bem aproveitados nas suas facetas positivas, se se mantiverem bem vivos o espírito e o clima do Concílio no seu pendor mais corajoso, a Igreja nas suas múltiplas manifestações locais, poderá conhecer uma certa transformação, condição indispensável de um certo tipo de diálogo com o mundo”… Frei Mateus conhecia as audácias de S. Tomás de Aquino, bem distantes de qualquer lógica conformista. E quando relemos este texto, vem à memória esse lado saudavelmente crítico…
Ainda há muito pouco, Luís Miguel Cintra recordou o momento em que Sophia de Mello Breyner disse ter terminado a tradução do «Hamlet» de Shakespeare. Foi um momento heroico. Trata-se de uma obra-prima da língua portuguesa.
O mais curioso é que ocorreu em relação a esse texto de 1965 um episódio caricato que dá bem ideia do absurdo que é sempre qualquer ato de censura.
António Alçada Baptista pretendeu publicar um excerto dessa magnífica tradução na revista «O Tempo e o Modo» - mas, como acontecia nesses casos, era necessário enviar as provas do texto à Comissão de Censura. Importa esclarecer que a revista foi das mais martirizadas pela censura, tendo sofrido a proibição de cerca de metade dos textos que, entre 1963 e 1969, foram a exame.
Inesperadamente, o texto de Sophia veio totalmente cortado. António Alçada ficou estupefacto. Não esperava que tal acontecesse relativamente àquele texto clássico. Pegou no telefone e falou ao coronel dos serviços de censura. Eram coronéis reformados que normalmente estavam encarregados dessa tarefa…
Do lado de lá da linha, o censor confirmou o corte total do texto. António, com uma paciência infinda, explicou quem era Shakespeare e que o texto era do século XVII. No entanto, inabalável, o coronel insistiu na decisão. Era assim, não havia volta a dar… Mas não dava razões…
Perante a insistência, lá veio a justificação. É que no «Hamlet» há uma personagem de nome Marcelo – e (ainda que Salazar estivesse de saúde) falava-se com insistência na hipótese de Marcelo Caetano poder suceder ao Presidente do Conselho – como aconteceria três anos depois… E o censor estava convencido que havia naquela publicação uma intenção politica qualquer…
Não se conformava, porém, António Alçada – e, palavra puxa palavra, tudo acabou com um corte parcial, não se publicando a fala de Marcelo…