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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 12 a 18 de fevereiro de 2024


«Istambul – A História de Três Cidades» de Bettany Hughes (Planeta, 2023) permite-nos compreender como uma cidade que se encontra na fronteira entre o Ocidente e o Oriente pode ajudar-nos a entender a importância do diálogo entre culturas diferentes e complementares.

TRÊS CIDADES APAIXONANTES
Bettany Hughes, historiadora e publicista, venceu em 2018 o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pela Europa Nostra, representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura. O prémio foi-lhe atribuído pelo trabalho que tem realizado em livros e documentários televisivos na defesa e divulgação do Património Cultural europeu e universal. Estava-se no ano europeu dedicado ao tema e a sua atribuição correspondeu à exigência de pôr a tónica na noção abrangente de Património, não como realidade do passado, mas como realidade viva, envolvendo a herança recebida das gerações anteriores, incluindo a criação contemporânea – numa ligação íntima entre património material e imaterial, monumentos e tradições, natureza e paisagem, arte e ciência, considerando a História como realidade de que somos todos protagonistas. Daí a importância do património comum da humanidade, enquanto fator de paz e desenvolvimento, como salienta a Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea. O livro de Bettany Hughes de que falamos (Istambul, A História de Três Cidades, Crítica - Planeta, 2023) data originalmente de 2017 e constitui um notável testemunho sobre a importância de uma urbe de referência, que envolve a história de três cidades, num ponto de encontro único entre o Oriente e o Ocidente. Se nos reportamos ao Mediterrâneo mítico, quando avistamos o Bósforo da cidade de Istambul, lembramo-nos da deslumbrante paisagem do estuário do Tejo, e percebemos que as duas cidades se relacionam numa relação mimética. Não espanta, por isso, que muitos testemunhos recordem como Calouste Gulbenkian, quando vivia em Lisboa, no alto do Monsanto, recordava embevecido, em tardes amenas, a sua terra natal, olhando o estuário do Tejo. Por isso, muitas gravuras de Constantinopla assemelham-na a Lisboa e os clássicos, ao elegerem Ulisses como mítico fundador da cidade, fizeram-no, por certo, a pensar nessa íntima ligação mediterrânica.

 

UMA HISTÓRIA INESGOTÁVEL. - Bizâncio, Constantinopla e Istambul são pontos de ligação entre o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul. Durante os seus mais de oito mil anos de história, estamos perante uma capital de Impérios, o romano, o bizantino e o otomano, onde se estabeleceram fenícios genoveses, venezianos, judeus e vikings. Há um movimento permanente de gente, de comércio, de transportes, de negócios – que constitui uma importante Economia-Mundo que nos leva a compreender a importância da cidade, para além das mil vicissitudes que acompanham a sua história. Quando lemos o retrato de Orhan Pamuk da sua cidade compreendemos bem que qualquer simplificação impede a compreensão das virtualidades desse encontro de culturas e de vontades. Centremo-nos em Santa Sofia – Haghia Sophia. Para Bettany Hughes tudo na cidade se desenrola e desenvolve em torno deste verdadeiro símbolo da humanidade. É um modelo de arte e de audácia. A cúpula dourada apresenta-se como suspensa no ar, representando a gravidade, a graça e a transcendência, servidas por uma construção exemplar que recorre a uma grande heterogeneidade das matérias-primas – tijolos de Rodes, pinturas, mosaicos, pilares, arquitraves, tetos revestidos a prata, mármore vindo de todo o império bizantino. Imagens poderosas representam uma espiritualidade pujante e serena. As memórias de Teodora e Justiniano (século VI) estão bem evidenciadas neste que foi durante cerca de mil anos o maior templo cristão da humanidade. E o fascínio da cidade corresponde à evidente complementaridade entre as diferentes fases históricas que a caracterizaram. Os vestígios bizantinos estão bem presentes no centro histórico, designadamente nas muralhas internas e externas construídas por Teodósio, avultando os complexos sistemas de cisternas subterrâneas para captação e fornecimento de águas. A magnífica Porta Dourada era o terminal da Estrada Romana, e quando hoje visitamos as ruas comerciais do centro histórico, na Sultanahmet, quase não nos apercebermos de que no dédalo complicado de vielas, pisamos o que foi outrora a via usada pelos Imperadores bizantinos nos grandes cerimoniais.

 

SETE COLINAS – COMO ROMA E LISBOA. - A cidade é antiga, plena de recantos e segredos, a que não faltam as Sete Colinas, que unem nas suas raízes a antiga Roma à cidade de Constantino e até a Lisboa. Quando percorremos um compêndio de História sobre a cidade, encontramos mil relatos de batalhas e combates. Não é estranho imaginá-lo, já que hoje mesmo estamos paredes meias com o tremendo conflito ucraniano e a evocação renascida da Guerra da Crimeia. O Bósforo é a fronteira da Europa e da Ásia, mas apenas foi aberto como o conhecemos 5500 anos antes da nossa Era. Foi o resultado de um gigantesco e dramático movimento de águas, que elevou o nível do Mar em cerca de 70 metros… E o certo é que o Bósforo hoje ainda esconde um curso de águas doces. Contudo esta ligação do Mar Negro ao Mediterrâneo encerra um potencial de espanto, de riqueza e de risco para a cidade, já que se permite o acesso da Rússia aos mares quentes do Sul e garante à Turquia a influência no Levante Mediterrânico.

 

Quando Constantino escolheu Bizâncio para sua capital ponderou seriamente as vantagens nas rotas do Oriente, preferindo a cidade do Bósforo à hipótese mítica de regresso ao que teria sido a antiga cidade de Tróia, onde quer que a mesma se tivesse situado verdadeiramente. Em 28 de outubro de 312 a vitória de Constantino sobre Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia abriria caminho a um período novo da história romana. Pouco antes da batalha teria mandado que pintassem nos escudos dos soldados uma cruz, tendo ainda avistado nos céus o milagroso lema “In Hoc Signo Vinces” (também invocado pelo nosso D. Afonso Henriques na mítica batalha de Ourique). Constantinopla seria capital do Império Romano de 330 a 395 e depois do Império Romano do Oriente (395-1204 e 1261-1453) e ainda do Império Latino (1204-1261). Mas foram os efeitos dramáticos da Quarta Cruzada que deixaram uma onda irreversível de destruição em Constantinopla, de que a cidade nunca recuperaria, sobretudo em razão de uma governação frágil e caótica no período do chamado Império Latino. O Império Bizantino seria reduzido à cidade, que se tornou um enclave dentro do Império Otomano, até que o sultão Maomé II tomou Bizâncio após um cerco de cerca de um mês em 1453, tornando-se a cidade capital otomana, em lugar da antiga Adrianópolis (Edirne). E foi o acontecimento de 1204 que contribuiu decisivamente para a destruição de Bizâncio e do Império Romano do Oriente. Bettany Hughes não tem dúvidas, porém, sobre o facto de Istambul ser ainda a capital não oficial da Turquia – “com muita da energia e vibração cosmopolita de que desfrutou ao longo da História”. Eis como o património cultural vivo marca o tempo.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

FALAMOS MUITO...

  


Falamos muito, e tememo-lo, nós os ocidentais, esse epifenómeno que dá pelo nome de "fundamentalismo islâmico". Para uma cultura da permissividade como prática de vida, é evidente que a cultura do culto da "lei" como norma de vida é incompreensível. Mais: é inaceitável. Isto é: em nome da liberdade de expressão e ação, lançamos um anátema sobre quem pensa que ela não é legítima ou, mais simplesmente, deve ser limitada. Até já se chamou, a este desentendimento, choque de civilizações... Mas também podemos evocar as cruzadas - com o que trouxeram de sofrimento imposto pelos cristãos do ocidente aos de Bizâncio - ou as guerras de religiões cristãs na Europa da reforma, os ódios entre chiitas e sunitas muçulmanos, o holocausto nazi a par do estalinista, as rivalidades entre cristãos além-mar, como as que alimentaram martírios de católicos no Japão dos sécs. XVI-XVII, ou o descalabro das missões jesuítas na América do Sul. Ou ainda as "bruxas de Salém", para não falar desse prenuncio de "técnicas científicas" nazis que foram as medições morfológicas de jesuítas e outros religiosos pela nossa 1ª República... E temos muito mais: Rwanda, Pol Pot no Cambodja, Sudão, Bósnia, eu sei lá! Somos, instintivamente, animais agressivos, quando tememos o outro. Ou quando o queremos comer. Quando nos fechamos no individualismo, de cada um ou do seu grupo, e esquecemos que a racionalidade que nos diferencia necessariamente nos obriga ao exercício crítico que S. Tomás de Aquino dizia ser "diferenciar (distinguir) para compreender." A diferença, ou a consciência dela, não é divisão (e muito menos guerra): é reconhecimento. Parafraseando Paul Claudel, para quem a "connaissance" - o conhecimento - é «nascer com»: o reconhecimento, neste sentido, é renascermos com os outros. Será a procura da harmonia, com a coragem que nos conduzirá ao encontro das raízes comuns a todos, que já o primeiro livro judeo-cristão assinalava dizendo que Deus nos criou, homem e mulher, à sua imagem e semelhança. A todos nós. A divisão, essa entre o bem e o mal, o belo e o feio, cada um de nós a traz em si, como o "visconde cortado ao meio" do Italo Calvino. "L’enfer c’est les autres" dizia Sartre. E assim existencialmente, demasiadas vezes, o entendemos. Mas o próprio sabia que o inferno está em nós e se propaga, como incêndio, na projeção da paixão de nós sobre os outros. "O pecado - escreveu um dominicano francês, Jean Cardonnel - é a paixão dos nossos limites". Os outros, os que não entendemos logo, são um apelo insistente a que sejamos mais firmes e fortes no que somos e mais abertos ao abraço dos outros, que é o que todos poderemos ser num mundo em globalização. Nesse mundo, que tão rapidamente nos cerca, só a fortaleza das nossas raízes nos ajudará a responder à nossa vocação do Outro. O diálogo só é possível com autenticidade. As rendições sempre começaram por traições.

 
Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.12 neste blogue.

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   A filosofia, etimologicamente significando amor ou amizade da sabedoria ou, se quiseres, a persistência na busca do entendimento, vai tendo, ao longo dos percursos humanos na cultura do espírito, duas faces unas e distintas: por um lado, a sabedoria é o conhecimento, por outro será o juízo prudente. Assim, é savoir e é sagesse, mesmo em português poderemos falar em sabedoria e sageza, esta palavra tendo há muito sido autorizada pelo cronista medievo Fernão Lopes. Como conhecimento, o que inquirimos e aprendemos é sempre filosofia, mas esta finalmente se constrói refletindo sobre aquela aquisição. Aí, já se vai tornando juízo, cuja prudência avalia, sistematiza e nos dispõe. E a partir daí lá se vai formando, pela cultura do espírito, algo que intimamente sempre nos acompanha, e a que muitas vezes também chamamos filosofia: a nossa weltanschaung ou visão do mundo, o nosso modo de olhar os seres e as suas relações.

 

   Os iluminados europeus do século XVII/XVIII, os filósofos das Luzes, descobriram o pensamento em modo chinês pelos relatos que lhes iam chegando da missão jesuíta em Pequim, e assim se tornou Confúcio um deles, penso eu, Princesa, que por sobretudo se tratar de uma reflexão moral à margem dos ditames de qualquer igreja ou religião. Ainda hoje, por aí, se fala de Confúcio como sage. Curiosamente, como muito bem entendeu Anne Cheng no seu Les tribulations de la "philosophie chinoise" en Chine, (in La pensée en Chine aujourd´hui, Folio Essais, Gallimard, Paris, 2007), o novo género de «histórias da filosofia» que proliferam na Alemanha e em França na orla do século XIX tende, pelo contrário, a delimitar o território da filosofia como propriamente europeu, rejeitando para um lá fora não filosófico tudo o que não releve da herança grega e cristã, em nome de uma nova definição da filosofia caracterizada como ciência e não já como reflexão moral.

 

   Antes de retomar uma extensa e esclarecedora citação da filha de François Cheng (do qual já muito te falei noutras cartas), deixa-me, Princesa de mim, recordar-te passos das minhas memórias do Japão, que há muito tempo já também te referi. A autorreclusão do Império do Sol Nascente, durante os 250 anos do shogunato Tokugawa termina oficialmente em 1867, sob a pressão americana do comodoro Perry, e afirma-se pela restauração do poder imperial efetivo conhecida pela designação do próprio imperador: Meiji. A partir daí, o Japão torna-se no pioneiro da modernização ocidentalizada do Extremo Oriente, muito voluntarista, procurando importar tudo o que de melhor se produzia na Europa e nos EUA, desde o direito à organização política, administrativa, e militar, do armamento aos caminhos de ferro e equipamentos públicos, da filosofia a todas as formas da atividade científica, literária e artística, incluindo, é claro, o ensino universitário. Naturalmente, a primeira tradução do conceito filosofia em caracteres chineses surge em japonês: tetsu gaku, que posso traduzir, literalmente, por estudo (gaku) da sabedoria. Deve-se a um intelectual importante da era Meiji, Nishi Amane, introdutor do positivismo de Comte na escola japonesa, que pela primeira vez o usa em 1874. De acordo com Anne Cheng, só 23 anos mais tarde, a palavra será usada na China, escrita com os mesmos kanji, ou caracteres sínicos, mas pronunciando-se zhexue, num relatório sobre o Japão publicado em 1897 por Huang Zungxian, em que se decreve a organização da universidade imperial de Tokyo, fundada em 1877, no espírito Meiji, e composta de três grandes faculdades: direito, física e literatura, desta dependendo um departamento de «filosofia». Volto então àquela citação de Anne Cheng:

 

   É à ideia hegeliana de que «não há filosofia chinesa» (entretanto ainda vivaz no "establishment" filosófico europeu, designadamente em França) que a modernidade chinesa procurou responder. Entre as Guerras do Ópio dos anos 1860 e a Revolução Cultural dos anos 1960, decorreu um século pautado por acontecimentos mais ou menos traumatizantes : 1895 (grande derrota das tropas imperiais face ao Japão); 1898 (os «Cem Dias», em que se tentou a primeira reforma das instituições imperiais, que resultou em lamentável fiasco); 1911 (descalabro definitivo da dinastia manchu e, com ela, do regime imperial que durara dois milénios, seguida da instauração da República em 1912); 1919 (movimento iconoclasta de 4 de Maio); 1949 (instauração da República Popular da China, após mais de uma década de conflitos armados: guerra de resistência à ocupação japonesa, guerra civil entre nacionalistas e comunistas). Nas nossas referências a esse «século das revoluções», que também poderíamos chamar século das tentativas de modernidade, devemos ter presente um feixe de fatores que vão desde a influência das ideias ocidentais aos esforços de mobilização de recursos tradicionais, à mutação do letrado tradicional em intelectual moderno, à instalação de novas estruturas educacionais, tais como universidades de modelo ocidental, sem esquecer o papel da mediação japonesa. Seremos pois levados a insistir no papel complexo desempenhado, durante este período, pelo Japão, simultaneamente modelo e repulsa para a China, percebido quer como potência colonizadora a exemplo do Ocidente, quer como aliado contra este.

 

   As raízes chinesas (e, aliás, sino-coreanas) da escrita, do budismo e de muitos aspetos da cultura e tecnologia nipónicas, além da própria configuração política da instituição imperial japonesa foram abordadas no meu Fomos em Busca do Japão (VERBO/BABEL, Lisboa, 2016) e outros escritos, designadamente publicados no blogue do CNC. Em finais do século XIX, e tempos seguintes, verificam-se movimentos de influência em sentido inverso, ainda que penalizados pela amargura e ofensa impostas pela agressão nipónica à China, o Império do Meio, (de que até Le Lotus Bleu, aventura do Tintin, traça um retrato arguto e sentido) e a colonização da Coreia pelo Japão, na primeira metade do século XX. Três povos com muitas parecenças e algumas afinidades e pertencentes a três famílias linguísticas distintas, ainda que todos três se sirvam todavia, total, quase ou parcialmente (o coreano apenas para nomes, visto dispor de escrita própria desde o século XVI, o japonês acrescentando dois silabários fonéticos derivados) de caracteres chineses. Quanto à expressão tetsu gaku, criada no Japão com caracteres sínicos e, nestes sendo depois incorporada na língua chinesa, deixa-me acrescentar outra curiosidade: foi na universidade de Tokyo que se começou a ensinar «filosofia chinesa» e, pela primeira vez, em 1900, se depara com o título Shina Tetsugaku Shi, utilizado pelo professor Endo Ryukichi. Traduz-se por Nova Filosofia da China, mas a surpresa está na substituição de Chuoku (País do Meio), na leitura japonesa dos dois carateres chineses, pela fonética Shina, em dois caracteres silábicos nipónicos. Afinal, talvez lhes parecesse que, com a modernização Meiji, o "centro" do mundo passasse mais para leste, onde nasce o sol... para o Império do Sol Nascente... Nihon ou Nippon significando a raíz, a origem do sol.

 

   Porque a filosofia é cultura - quiçá a cultura do espírito por excelência - ela só pode exercer-se em circunstância e na história. Assim, passa de interrogação a busca, de procura, e reflexão, a explicação, que mais não é do que um olhar proposto. Mas este, como qualquer visão do mundo, comunica-se e enraíza-se, alarga-se como árvore que cresce e se abre em ramos, a cuja sombra se abrigarão muitas gerações. A sua história é distiladora de essências a que chamamos valores ou princípios. A universalidade destes não tem dono, antes é, por definição, de todos: só pela entrega e comunicação se fixa, como raíz fasciculada, que vai beber, buscar e dar vida até onde puder. O valor do universalismo cristão, por exemplo, que afirma a igual dignidade de todos os seres humanos, pode ter sido esquecido - e muitas vezes o foi e é -  no seio de comunidades ditas cristãs, até por impulsos sectários de distinção entre bons e maus. Mas pode, por essa tal cultura (subterrânea também) do solo que a todos nos sustenta, florescer em comunidades heterogéneas. Dou-te, Princesa de mim, uma ilustração que hoje traduzo de The Economist, notícia e comentário que não inventei, cinquenta anos depois do célebre discurso - conhecido por Rios de Sangue - proferido por Enoch Powell para uma plateia de militantes e eleitores tories no Midland Hotel, em Birmingham, "profetizando" o advento de conflitos sangrentos entre brancos e gente de cor se continuasse a permitir-se imigração no Reino Unido:

 

   Atualmente, metade dos habitantes não brancos do RU vivem nas três maiores cidades do país: Londres, Birmingham e Manchester. A segunda incarna o que os universitários apelidam de "superdiversidade". Outrora, as minorias étnicas tinham tendência a fechar-se em grupos. Hoje, a mistura de populações de diversas origens étnicas é sem precedentes. Nenhuma circunscrição de Birmingham conta menos de 32 etnias, segundo Jenny Phillimore, da Universidade de Birmingham. O distrito recordista é o de Handsworth, cujos 31.000 residentes procedem de 170 países diferentes: ali, diz a investigadora, "todos têm um lugar".

 

   Esta demografia retrata-se na vida política da região. A antiga circunscrição de Enoch Powell, Wolverhampton South West, foi representada, até 2015, por Paul Uppal, um sikh (conservador), sendo hoje o mesmo assento parlamentar ocupado por Eleanor Smith, uma deputada trabalhista cuja mãe deixara Barbados para vir para o RU em 1954, a fim de trabalhar para o National Health Service. Esta mulher política lembra-se do desapontamento de sua mãe ao ouvir o discurso de Enoch Powell, que apelava ao repatriamento voluntário - linha oficial do partido conservador naquela altura. Fora encorajada a vir para o RU quando este país precisava de mão de obra e, agora, intimavam-na a voltar para casa..."

 

   Em carta próxima, Princesa de mim, voltarei à filosofia chinesa, como reflexão moral e política. Sempre vamos aprendendo uns com os outros... Falar-te-ei do conceito milenário de tianxia, ou seja, de tudo o que está sob o céu...

 

Camilo Maria     


Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Continuando o que, em carta anterior, te vinha narrando:

   Escreve Goldfisher que a necessidade do desdobramento da personalidade do Dr. Saud se faz sentir em 1973, depois dessa encantadora personagem se ter solidarizado, mediante a prestação de ajuda financeira, com vizinhos países árabes que se tinham envolvido numa guerra contra Israel, o Estado judeu que também ele detestava. Só que não contara com o advento do apoio americano ao seu inimigo, a quem os EUA forneceram equipamento militar, de modo a evitar que Israel fosse aniquilado. Despeitado, o Dr. Saud  sonhou então com provocar o desabamento de todo o Ocidente, cortando-lhe o petróleo, numa altura em que se configurava a derrota americana no Vietnam e estalava o Watergate, momento portanto propício a uma humilhação da grande potência. Mas esta não se assustou e mandou uma armada pronta a arrasar a Arábia Saudita, caso o embargo não fosse levantado. Então, o Dr. Saud, não só deu consigo a declarar-se fiel aliado dos americanos, como se lembrou da droga capaz de o fazer desempenhar duas distintas personagens, com duas aparências físicas diferentes. Chamava-se tal droga «petrodollars», e ele possuía-a em grandes quantidades, posto que os governos ocidentais viam nele um amigo. Ao princípio, a poção parecia fazer maravilhas: permitia-lhe parecer cada vez mais ocidental, enquanto prosseguia na sombra os desígnios ignóbeis do Sr. Djihad. Mas a droga teve um efeito secundário imprevisto: quanto mais sucumbia aos encantos do Ocidente, tanto mais o Sr. Djihad ganhava força e  raiva. Numa noite de 1979, durante o sono, o Dr. Saud transformou-se involuntariamente em Sr. Djihad. Sob o nome de Al-Ikhwan («os irmãos»), este conseguiu apoderar-se da sua própria Mesquita Maior, em Meca, e anunciou que tinha expulso o Dr. Saud do reino! Quando o nosso homem, muito abalado, voltou a autocontrolar-se, optou por uma solução temporária: só voltaria a vestir a pele do Sr. Djihad fora do reino. Desta maneira, pensou ele, poderia continuar a encantar o Ocidente, sob a aparência de Dr. Saud, mas semeando o caos por todo o lado, enquanto Sr. Djihad...

   

   Acompanhando a saga, Goldfisher destaca alguns exemplos: o apoio da Arábia Saudita à Djihad afegã, contra os russos soviéticos, com a anuência dos americanos que aí viam apenas o propósito de expulsar os comunistas.

 

   Cita o conselheiro para a segurança dos EUA, Zbigniew Brzezinski: «O que é que contava mais, do ponto de vista da história mundial? Alguns muçulmanos excitados ou a libertação da Europa central e o fim da Guerra fria?». E sublinha como, satisfeitos com a ajuda desses muçulmanos exaltados, nem reparavam nos biliões gastos na construção e funcionamento de escolas e mesquitas, onde se ensinava e pregava o radicalismo islâmico e se incorporavam jovens, se financiavam e armavam guerrilhas, no Afeganistão, no Paquistão e alhures... Nem o 11 de Setembro conseguiu abrir-lhes os olhos para a união pessoal do Dr. Saud e do Sr. Djihad. E vai daí, esquecem-se de investigar os sauditas e vão invadir o vizinho Iraque, onde o Sr. Djihad não podia pôr sequer um pé!

 

   Esta história toda tem zonas sombrias, nem sempre é linear, nem clara. Tal como tem episódios de trapalhada e trafulhice. Mas é evidente que a invasão do Iraque foi um tiro no alvo errado. E parece ainda certo que parte importante do financiamento do terrorismo islâmico internacional provém de petrodólares sauditas, até para que o Dr. Saud possa exportar - e manter afastada do seu reino - uma ameaça. Mas dinheiro saudita, aliás, também apoiou os EUA em várias frentes, designadamente na luta anticomunista, tal como serve para adquirir armamento e financiar a respetiva indústria americana. Ao que consta, quinze dos dezanove reconhecidos terroristas do 11 de Setembro de 2001 eram sauditas, tal como o famigerado Bin Laden, cuja Al-Qaeda, todavia, também teria perpetrado os atentados em Riad, em 2003. Curiosamente, surgiu uma tese saudita, mais ou menos oficial, a culpar Teerão desses atentados. Estranha acusação essa, que aponta para um apoio iraniano e xiita a ações bélicas realizadas por uma organização de sauditas, ainda por cima sunitas bem conhecidos pelo ódio que têm aos seus  irmãos muçulmanos "heréticos"... Mas, afinal, quem foi, quem poderia ter sido?

 

   Parece-me, Princesa, que, além do mais, há muita intriga, conspirações de palácio e rivalidades de famílias e dinastias, lá pelos reinos arábicos do Golfo. São vidas principescas em sobressalto contínuo, nem seitas nem confissões religiosas as sossegam. Pensa, por exemplo, como se desconfiam entre si o reino saudita e o emirato do Qatar, ambos riquíssimos, cheios de petróleo, e ambos sunitas wahabitas... Tal como haverá muitos interesses estrangeiros envolvidos, públicos e privados, políticos e financeiros. O Lawrence da Arábia conhecia desses labirintos. Ele próprio também tinha um psiquismo complexo, que aliás se refletia na sua ação de espião, agitador e criador de circunstâncias e factos políticos e bélicos... Se fosse vivo, muito nos poderia ensinar sobre a atividade encapotada dos agentes das grandes potências, na produção de circunstâncias, factos e pretextos, bem com das eminências pardas que são os grandes interesses por detrás daquela. E até o Hergé situou o seu Tintin em cenários assim induzidos, desde a América latina (L´Oreille Cassée) à China (Le Lotus Bleu), passando pelo Médio Oriente (Au Pays de l´Or Noir). Os desequilíbrios terroristas não são só árabes, nem apenas islâmicos.

 

   Se o objetivo da História é alumiar um pouco o teatro das nossas sombras (Dominique Iogna-Prat, em Ordonner et exclure. Cluny et la société chrétienne face à l´hérésie, au judaïsme et à l´islam (1000-1150), Paris, Flammarion, 2000) recordarmos o longo período da afirmação e clímax do imperialismo europeu na África do Norte e no Médio Oriente (1860-1914-1939) talvez ela nos ajude a entender melhor muito do que hoje acontece. Por hoje, minha Princesa de mim, deixo-te só um trecho de Seven Pillars of Wisdom, do T. E. Lawrence (o da Arábia, o tal que pretendia ter formado uma nova nação, ter restaurado uma influência perdida): We could see a new factor was needed in the East, some power or race which would outweight the Turks in numbers, in output and in mental activity. No encouragement was given us from history to think that these qualities could be supplied ready-made from Europe... Alguns de nós julgaram que havia força suficiente e de sobra nos povos Árabes (a maior componente do velho Império Turco), uma prolífica aglomeração Semita, grande em pensamento religioso, razoavelmente industriosa, mercantil, política, ainda assim mais acomodante do que dominante em carácter...

   O poderio árabe foi o Ocidente que o suscitou.

 

        Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Fouad Ajami

 

   Minha Princesa de mim:

 

   A comissão de inquérito presidida por Sir John Chilcot produziu recentemente um relatório muito crítico sobre a guerra de invasão do Iraque em 2003, documento esse que provocou vários artigos igualmente críticos em jornais britânicos prestigiados, tais como The Independent, The Financial Times, The Guardian ou o New Statesman. Para te dar uma ideia de como vários sectores da opinião britânica que se revêm nestas publicações, continuamente reagem a uma decisão política cujas trágicas consequências hoje ainda sentimos, traduzo alguns textos respigados pelo Courrier International de 13 de Julho passado.

 

   The Independent será o que menos papas tem na língua:

Foi sempre claro que a eliminação de Saddam Hussein traria um vazio político e militar que seria preenchido por terroristas. Com a supressão impiedosa do seu ditador, era inevitável transformar-se o Iraque num atoleiro ingovernável, onde se desencadeariam ódios sectários, enquanto que um país vizinho, possuidor de armas nucleares, o Irão, se apressaria a intervir. E toda uma geração de jovens sem emprego e com formação militar teria de achar outra causa para defender. Assim fizeram, no seio de um movimento que se chama Daech. Eis o que deve pesar na consciência de todos os que apoiaram a guerra. Não apenas a morte de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes - abominável consequência. Não apenas a rápida desintegração de uma sociedade e de um país que já eram vítimas de brutal opressão e que caíram na anarquia. Mas também o brusco e temível aumento de poder desses terroristas que hoje representam a mais grave ameaça à segurança do Ocidente.

 

   Penso, Princesa, que a proximidade temporal da publicação do relatório Chilcot com a vitória do BREXIT no referendo britânico terá inspirado, a outros jornalistas, os artigos donde destaco os trechos seguintes. The Guardian sublinha, em primeira página, uma frase escrita, em 2002, por Blair ao presidente Bush, revelada agora por aquele inquérito: Estarei consigo, aconteça o que acontecer. E comenta que tal declaração - feita sem que para tal houvesse um mandato da ONU e antes de qualquer autorização do parlamento britânico - conduzira ao terrível erro que conhecemos, fazendo ainda com que o comportamento do primeiro ministro tivesse alimentado a desconfiança do público britânico para com o seu governo (...) e que essa desconfiança por sua vez alimentasse o voto pro-Brexit. O New Statesman corrobora tal análise, escrevendo: Inúmeras causas do voto pro-Brexit - o ódio aos homens políticos tradicionais, a desconfiança para com as elites, o desejo de que o Reino Unido se desvincule do mundo - remontam à decisão de invadir o Iraque, há treze anos.

 

   Acontece-nos esquecermos que a intervenção, liderada pelos EUA, no Iraque, em 2003 - pretendendo justificar-se como resposta ao atentado de 11 de Setembro de 2001 - foi sobretudo motivada pela vontade de proteger e poder assegurar o abastecimento de petróleo proveniente daquela zona geográfica, sempre privilegiando, como aliada, a Arábia Saudita, o maior produtor, e inimigo declarado do Irão e do Iraque. Sobre o reino da dinastia Saud, o professor David Goldfisher, da universidade de Denver, publicou, no sítio Opendemocracy.net, em 2 de Março passado, um curioso artigo que, parafraseando o título do célebre romance de Robert Louis Stevenson sobre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, em português O Médico e o Monstro) nos fala do Estranho caso do Dr. Saud e Mr. Djihad. Traz-nos algumas interrogações...


   No momento em que os americanos se preparavam para a guerra, em resposta aos atentados de 11 de Setembro, o saudoso analista Fouad Ajami tinha emitido este aviso visionário: «Vamos ver muitos camaleões capazes de se apresentarem como amigos da América, mas do género de não estarem presentes quando forem precisos». Antes de atentar no Estranho caso do Dr. Saud e Mr. Djihad, registo esta previsão do Dr. Ajami, bem recordada por Goldfisher.

 

   Fouad Ajami, que trabalhou com a John Hopkins University e era membro da Hoover Institution, é considerado um dos mais influentes intelectuais árabes da sua geração. Nascido no Líbano, emigrou para os EUA, naturalizou-se americano e, como qualificado investigador da história e da geopolítica do Médio Oriente, foi consultor da Administração Bush, e pensava que o povo iraquiano acolheria a invasão e o derrube de Sadam como uma libertação. No ano da sua morte, aos 68 anos, em 2014, a Hoover Institution Press publicou a sua derradeira obra: The Struggle for Mastery in the Fertile Crescent. Trata aí de um dos seus temas recorrentes, tentando compreender o que se pode passar à volta da Mesopotâmia, ao longo da fronteira do Iraque com três Estados que, naquela zona, ocuparam o vazio de poder deixado pelo Ocidente: a Turquia, o Irão, a Arábia Saudita.

 

   Por hoje, Princesa, ficarei por este último, ou melhor, pelo estranho caso do Dr. Saud e do Dr. Djihad, tal como o narra David Goldfisher... O nosso protagonista, o Dr. Saud, reina sobre um território mais cheio de petróleo do que outro qualquer no mundo. É considerado amigo dos Estados Unidos, os quais esperam, como ele, que a sua imensa riqueza contribua para a paz e prosperidade dos dois povos. O Dr. Saud quer boa vida, e com gosto sucumbe às admiráveis atrações do Ocidente moderno. Também gosta do seu papel de guarda dos Lugares santos do islão. Mas malevolentes vizinhos sempre ameaçaram privá-lo desses prazeres: primeiro, os comunistas soviéticos, depois os aiatolas iranianos e, finalmente, Sadam Hussein.

Felizmente, os poderosos Estados Unidos tinham-se oferecido para montarem a guarda diante do seu reino: quando esses inimigos cobiçavam o petróleo do Dr. Saud, a América enviava a sua armada para o proteger. Algo todavia fazia pairar uma sombra sobre a vida aparentemente invejável do bom doutor: a sua encantadora personalidade dissimulava obsessões sombrias, difíceis de gerir. Estremecia de desgosto, de cada vez que pensava em xiitas, ou em judeus, ou em mulheres que guiam; ou na simples ideia de sociedades livres, pluralistas e tolerantes. Quando lhe vinha tal raiva, alucinações perturbavam os seus pensamentos: e logo se via, dominador, a derramar sangue e a pôr o Ocidente de joelhos.

Uma voz, ora sedutora, ora ameaçadora, sussurrava-lhe que os seus mortíferos instintos eram inspirados por Deus. O Dr. Saud sabia que seria incapaz de resistir totalmente a essa voz imperiosa, mas também tinha consciência de que ceder inteiramente a uma loucura mortífera o levaria à morte. Quando se compenetrou de tal dilema, o nosso homem procurou, e terá encontrado, uma solução maravilhosa: uma droga capaz de o transformar num «Mr. Djihad» bem distinto, graças ao qual se poderia entregar aos seus vícios, sem estragar a reputação e o saber viver que o mundo esperaria do Dr. Saud...

 

   Assim apresentada a metáfora que o mesmo Prof. Goldfisher considera pertinente a uma achega à história geoestratégica de que te falo, vou resumi-la. Segundo  o próprio, claro. E só em próxima carta, que esta já vai longa.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira