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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POESIA

ODISSEIA (6)


XX

  


Se existir um leitor que reúna qualquer dia

com o próprio dia,

para ele escreverei

no sentido de o ouvir,

no sentido de abrir coisas,

no sentido de me dizer da morte antes do nascer

e do que significam as coisas antes de significarem.


XXI

  


Existe sim, uma arte no encurvar-se,

mas não sob um peso,

antes sob um não falar e um não calar

porque ambos abrem algo

num tempo

que se vai mostrando.


XXII

  


O que vi?

Vi sempre a mesma coisa:

tanta forma de morte que até se assiste ao seu envelhecer;

tanto pólen da piedade dos deuses

sem linguagem para o final,

quando até a bondade humana

se confunde.


XXIII

  


Embora hoje os sinos toquem,

eles estão equivocados.

Ainda a última morada antes da última se não escolheu

e ainda nem desafiámos o que nos resta,

nem sequer sabemos se o pensamento será fiel às suas ruínas

ou até se não existimos o suficiente.

Afinal.


XXIV

  


Receio qualquer porta que não reconheça a morte,

enquanto sem entrar e sem sair

e sem tempo,

aqui estou sem ter escrito uma escrita que um dia se possa ler

num algoritmo de milho.


XXV

  


É chegada a hora da canção.

Canta ela que para cá e para lá da morte ainda resta a transgressão

do muito que se não conhece.


XXVI

  


Debaixo da mesa, numa das suas raras entrevistas,

a morte afirmava nada saber do que lhe perguntavam.

Acrescia mesmo que se calhar, ela era vida num tempo diferente,

numa parte do real fora do nosso alcance,

ou não fosse impossível entender uma realidade

fora dela mesma,

como quem coloca flores que já emigraram ou ainda não chegaram,

dentro de uma jarra.


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

ODISSEIA (5)


XXIII


A morte é a raiz que lhe falta dentro e fora dela.

A morte só se apoia.


XXIV


Numa pausa concertada.

O olhar longe

numa ideia que é parte

de cá e de lá.

O olhar

numa entrega sem nada mais.

Sem a pergunta desnecessária.

Estorvo.


XXV


Também nos aproximamos de tudo o que inaugura um novo adeus,

um novo adeus que é apenas parte intermédia,

parte encurralada, insegura e ainda assim

experiência.


XXVI

  


De quantas vidas necessitamos para que se cumpra

uma morte?

Talvez se algo mudasse de sentido,

o pudéssemos saber,

mas sempre

a meia distância

de tudo.


XXVII


A morte tem de ser inteira,

sem fraude.

Os fantasmas que se passeiam nas ruas de nós,

conhecem

o quanto as mortes são

nossas experiências desarmantes,

o quanto não basta

cronologicamente arrumar

as circunstâncias.


XXVIII


A eternidade também nos esquece.

Sobretudo se já tivermos iniciado

a abolição dos pretextos,

esses mesmos que não aprenderam a morrer

nem a viver.


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

ODISSEIA (4)


XVI 

  


Quando pouco a pouco o ouvido aprende a ensurdecer,

o amor tem forma de mão.


XVII

  


Se quanto mais vivos mais morremos,

tudo afinal nos abandona,

até o amor, essa grande companhia.


XVIII

  


Submete-se até a zona das perguntas

para que o mundo se não repita tanto,

para que as coisas escapem das coisas

e tudo escape de tudo,

para que as palavras se abracem de um outro modo.


IX

  


Onde está o que se parecia com um mundo

e que nos chegou vindo do limite da página

e nos estendeu o ombro para nos dizer

que todos os saltos necessitam de apoio,

salvo

aquele que de tanta força

se incendeia.


XX

  


Aqui começa o território das inseguranças

mais definitivas.

Aqui é o exato lugar onde e aonde é possível

queimar todos os princípios e todos os finais

para que se designe isto ou aquilo

adentro de uma outra

grande amnésia.


XXI

 


Digo:

que no desbatizar do mundo,

o homem que segura o abismo,

exprime tanta bondade e coragem

que converte a lágrima

num líquido de amor e pedra,

ambos, deliberadamente vítreos,

ambos

alternativa.


XXII

  


Sabe-se que existem pássaros que enlouquecem de repente

nos seus próprios movimentos.

Perdem eles o ponto de equilíbrio

tal como os homens quando balbuciam

a que poderá ser a última palavra

antes da nova linguagem.


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

ODISSEIA (3) 

XI


Em bodas nunca vistas,

antes mesmo da luz no cálice

ser outro tanto ou mais

que uma pomba,

guardou-se o luto

pelo anjo que não morreu

de mal de amores.


XII 

  


Se o meu olhar for capaz de se despojar de si,

terei a prova:

o esquecimento

não existe.


XIII

  


Ainda não preenchi a minha proposta

ao infinito, e se a fizer,

as coisas passam na mesma,

passam,

e eu,

sem entrar nem sair delas,

sem questionar o zero,

sem sequer me aposentar das precauções,

pergunto onde está o mundo que era como este,

onde estão as palavras que saltaram do papel?


XIV 

  


Esprema-se este mundo até que uma gota

caia num outro.

A barca, jovem senhora,

vendida por seu pai, trocada por sua mãe,

desamada por olhos abertos,

largou a águas fundas,

interrogando o único sapato de terra

que lhe permitiria andar descalça.


XV 

  

Há uma robustez

que se expulsa da descrença e se alonga até

ao pátio dos mosaicos que faz

a leitura do deserto

e resiste.


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

ODISSEIA (2)


VI

  


A metalinguagem é lava

que só um pássaro habita no chamado

da ideia.


VII

  


As cores têm nas suas bolsas

outras cores, outras perseveranças,

aquelas mesmas que nos respondem à pergunta

se estaremos juntos para sempre

quando não estivermos em lugar algum.


VIII

  


Se cada poema faz esquecer o anterior,

cada silêncio entra na amnésia

do que não foi dito.

Resta que poema e silêncio se envolvam

e consigam o dia bom

conforme o tinham imaginado.


IX

  


Há também um tempo que vem embrulhado

num labirinto sem portas.

É talvez este um tempo que só se lê numa linha de ação:

 

“Amélia olha pela janela e não retoma nenhum caminho.”


X

  


Há que acreditar em novas respirações:

por exemplo, quando se chega ao autor

pela leitura;

quando se acede ao leitor pela palavra;

quando o texto a todos lê:

 

perdigueiro, perdigueiro.


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

ODISSEIA (1)

Se a vida tivesse forma de escrita, letra a letra descobria-se o verbo.


I


E quando o peito incumbe que às costas também seja dada atenção,

a aprendizagem inicia-se.


II
 


E se o que nos ocorre fosse uma cópia do que não nos ocorre?

E se existisse um tempo em que tudo quanto dele saísse

o espelho devolveria?

E se os meus passos fossem recibo do caminho?

E se tropeçar, como em tudo se tropeça,

viesse de um subir para cair de mais alto,

de mais perto de Deus?


III


Digo:

as palavras estão unidas por uma argamassa

colocada num ritmo que as ensina

a dizerem-se.

Depois olham-nos sim, são elas que nos olham a nós,

e para lá de nós.


IV


Por erro e por defeito quero as palavras dos versos

que como sapatos descansam de seu pé.

Quero a vida que vivo nos poemas

e por eles todas as vésperas

dos ângulos que vou conhecendo;

todas as estrelas azuis que cumprem os destinos,

e quero-as muito

quando findas e mudadas,

se aproximam pelos ramos de altas copadas

ao fundo das coisas

sem culpa.


Teresa Bracinha Vieira

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

"A ILÍADA" E "ODISSEIA" DE HOMERO (XIII)

 

“A Ilíada” e a “Odisseia”, atribuídas a Homero (século VIII a. C.), são as duas obras maiores da cultura greco-latina, marcando decisivamente as tradições mediterrânicas, a ponto de, segundo a lenda, Lisboa ter sido fundada por Ulisses. “A Ilíada” tem origem na tradição oral da época micênica cantada pelos aedos. Tais versos foram compilados numa versão escrita no século VI a. C. em Atenas. O poema foi então dividido em 24 cantos, divisão que persiste até hoje, correspondendo cada canto a uma letra do alfabeto grego, segundo o método usado pelos estudiosos da Biblioteca de Alexandria. O poema passa-se no décimo ano da guerra de Troia e refere-se à ira de Aquiles causada por uma disputa com Agamémnon, comandante dos exércitos gregos, e consumada na trágica morte do herói troiano Heitor, culminando no seu funeral. Este episódio é fundamental na cultura helénica, por se referir ao combate entre alguém da estirpe dos deuses, Aquiles, filho de Tétis, parcialmente vulnerável, e um homem, cujas qualidades heroicas não oferecem dúvida. Homero refere-se a mitos e acontecimentos prévios à guerra, mas esta não é contada na íntegra. O conhecimento da mitologia grega acerca de Troia é, pois, essencial para a compreensão da obra. A Guerra de Troia ocorre quando os aqueus atacaram a cidade de Troia, procurando vingar o rapto de Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta, irmão de Agamémnon. Antepassados dos gregos, os aqueus representam no poema épico a origem mítica e histórica de uma civilização plural, enaltecida no poema. A mulher mais bela do mundo era Helena, filha de Zeus e de Leda. Estava casada com Tíndaro, rei de Esparta. Helena possuía diversos pretendentes, entre os quais os maiores heróis da Grécia. Tíndaro, seu pai adotivo, hesitava em tomar uma decisão, mas finalmente um dos pretendentes, Ulisses, rei de Ítaca, resolveu o impasse propondo que todos jurassem proteger Helena e a sua escolha, qualquer que ela fosse. Helena casou-se então com Menelau. A guerra inicia-se quando Páris, filho de Príamo, rei de Troia, vai a Esparta em missão diplomática, e apaixona-se por Helena, raptando-a e levando-a para Troia, o que naturalmente enfurece Menelau, que apela aos antigos pretendentes, em nome do juramento feito. Agamémnon então assume o comando de um exército de mil barcos e atravessa o mar Egeu para atacar Troia. As naus gregas desembarcaram na praia próxima de Troia e iniciaram um cerco que duraria dez anos, custando a vida a muitos heróis, de ambos os lados. Finalmente, seguindo o célebre estratagema proposto por Ulisses, através da suposta oferta do Cavalo pelos deuses, os gregos conseguem invadir a cidade governada por Príamo e terminam a guerra, vencendo-a. A «Odisseia» é também um poema elaborado ao longo de séculos pela tradição oral dos aedos, tendo sido fixada por escrito, provavelmente no fim do século VIII a.C.. Quase todas as edições e traduções modernas da «Odisseia» são divididas em 24 livros. O poema inicia-se dez anos após o fim da Guerra de Troia. Telémaco, filho de Ulisses, tem 20 anos e procede na ilha de Ítaca à partilha da casa de seu pai ausente, com sua mãe e uma multidão de desonestos pretendentes, que querem persuadir Penélope de que seu marido está morto, e que ela deve casar-se com um deles. O enredo de “Odisseia” tem a ver com o relato da viagem de regresso do herói de Troia para Ítaca. É uma descrição iniciática, na qual Ulisses viaja pelo mundo dos vivos e dos mortos. Passa pela terra dos Cícones, visita os comedores de Lótus, é capturado pelo ciclope Polifemo, consegue fugir após cegá-lo com uma ponta afiada de madeira, é recebido por Éolo, senhor dos ventos, que lhe oferece um saco de couro contendo todos os ventos (salvo o de oeste), que deveria garantir a viagem para casa em segurança… Porém, roídos pela curiosidade os marinheiros abriram o saco enquanto Ulisses dormia, pensando que se tratava de ouro; e deixaram escapar todos os ventos, gerando uma tempestade que afastou os navios de Ítaca… Os conselhos de Circe, a passagem pela ilha das sereias, Cila e Caríbdis, o trágico abate do gado do deus-sol e o naufrágio que se segue, os sete anos na ilha de Calipso – tudo culmina no regresso e no ajuste de contas final de Ulisses, símbolo da paixão temperada pela medida.

 

Agostinho de Morais