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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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13. DE PRINCIPIA ET DE JURE


O que ultimamente se tem passado em Jerusalém é preocupante, mas sobretudo muito triste: as provocações e retaliações homicidas de judeus e palestinos muçulmanos relativas à ocupação ou utilização de lugares santos para eles - e para cristãos também - radicam não só no pretenso estatuto da cidade como capital do estado sionista de Israel ("Jerusalém completa e unificada é a capital de Israel" diz a lei do estado ocupante, ao arrepio de decisões das Nações Unidas) e na reivindicação palestiniana de que ela seja a capital do estado a que os palestinos têm direito, nem apenas na submersão do diálogo inter-religioso, nem na deterioração do convívio étnico. O caso tem raízes históricas, com pesadas responsabilidades de potências ocidentais, que não devem ser escamoteadas. Todos sabemos, por exemplo, que, para efeitos de enfraquecimento, pelo interior, do Império Otomano, seu inimigo na Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico fomentou levantamentos de súbditos (judeus e árabes) daquele, prometendo-lhes estados independentes. Tal como, durante séculos, durante e depois dos tempos bíblicos, houve quezílias, destruições e exílios, mas também períodos de entendimento mútuo e partilha (mesmo sob domínio otomano), estes sempre que o poder hegemónico foi permitindo e fomentando o convívio e a paz entre etnias, confissões religiosas, fações políticas... O povo, os povos, afinal, talvez prefiram a harmonia possível ao afrontamento brutal. Também na música, o concerto é um despique que se resolve nas consonâncias procuradas, e na final que se conseguir alcançar. Não vou agora repetir relatos do que hoje se passa, nem narrativas do que se passou. Há livros de história e reportagens jornalísticas que contam coisas, talvez demasiadas coisas, pois cada qual procura puxar a brasa à sardinha, poucos quiçá fazendo apelo ao universalmente humano desejo de coexistência na tranquilidade. Pensossinto que, se não se manipulassem multidões, aspirações e opiniões, talvez, terra a terra, a cidade dos homens pudesse ser de todos, por tanto, tão pouco ou tão muito, sentida por cada um como sua. Que assim não seja, ou tão difícil pareça poder sê-lo, resulta sobretudo de não haver prioridade da consulta aberta dos povos, que são muitos e partes legitimamente interessadas, sem interferência de títeres, que são poucos e partes ilegitimamente interesseiras. Os nossos sistemas políticos - ditaduras, sublevações, terrorismos ou democracias - sofrem desse mal endémico que é pretender, pela força do poder instalado ou revolucionário, ou pela matreirice do "marketing" eleitoral, impor vontades e destinos alheios ao que as gentes do dia a dia, feito de trabalho, família e comunidade, desejam. Os anseios dos povos são assim dados lançados no tabuleiro dos jogos do poder. Num jogo que mal disfarça a ganância financeira de uns, a soberba pretensiosa e dominadora de outros, o egoísmo totalitário de todos eles... Serei muito estúpido, mas não acredito na distribuição da riqueza pela ditadura marxista, nem pelo funcionamento dos mercados. Talvez ela fosse possível pelo funcionamento organizado de um ou do outro sistema, desde que sempre inspirado pelo sentido da partilha comunitária... Mas todos já sabemos que, por muito que essa beleza se apregoe, nunca assim aconteceu, e até pode piorar pelos tempos que correm. E também nos parece que, apesar de necessário e indispensável, o princípio ético da solidariedade e da justiça, não funcionará ao deus dará... Há certamente uma reforma das mentalidades que deve ser feita. Mas será possível fazê-la sem o adequado enquadramento institucional? Esta questão é quase como aquela de quem surgiu primeiro, se o ovo, se a galinha. Ser eminentemente social, o homem não muda em abstrato, e as instituições são a incarnação comunitária de ideias. Assim, por exemplo, esse conceito que se vai desenvolvendo, a partir das propostas de Michael Porter e Mark Kramer do lucro como criação de valor participado (investimento em inovação e competitividade a longo prazo, avaliação do impacto social e ambiental que deverá beneficiar da riqueza criada) não passará de uma aspiração enquanto não se lhe encontrarem práticas consignadas na lei que tutela a atividade empresarial. Tal como nunca se conseguirá uma reforma dos mercados financeiros, sem a terminação institucional das transações bolsistas especulativas, que tanto têm viciado o valor das empresas e a correta e transparente apreciação dos investimentos a fazer. E quanto mais forem nominativas as subscrições (em vez da distribuição vagabunda que facilita todas as manobras e reforça a manipulação de valores pelos grandes acionistas que, ainda por cima, detêm o poder de eleger os órgãos sociais e, por aí, influenciarem decisões e relatórios) tanto mais social será a empresa e responsável a participação beneficiária dos respetivos lucros. A economia privada tem vantagens indiscutíveis, pela responsabilização adveniente da propriedade, pela inovação fomentada pela concorrência. Por isso mesmo essa propriedade deve ser transparente e partilhada pela valorização democrática do capital e do trabalho; e deve a concorrência seguir regras de jogo limpo. Será que a questão fulcral do nosso destino global tenha hoje a ver mais com o vermo-nos nos espelhos dos outros, com raivas de ressentimentos ou com aspirações de emulação? Não só no interior de cada uma das nossas comunidades divididas por desigualdades, como ainda - e cada vez mais, por força dos media que nos mostram um mundo comum em desequilíbrio de direitos e benesses - na ordem internacional? Meditemos sobre os índices de satisfação (ditos de felicidade) das nossas "sociedades de afluência" e na curiosa comparação que Niall Ferguson faz entre a colonização da América do Norte e a da que se situa a sul do Rio Grande norte-americano. Professora na Sorbonne, Claudia Senik publicou agora (Paris, Seuil, outubro de 2014) L´Économie du Bonheur, que introduz assim: A modernidade democrática fez da felicidade uma ideia nova, um princípio constitucional, quase um dever. Desde que o indivíduo é reconhecido como figura central da sociedade, a sua felicidade torna-se objetivo supremo. Mas se a felicidade é a medida de qualquer escolha, importa encontrar-lhe uma métrica, mesmo aproximativa... ...Trata-se do nível de felicidade subjetiva, declarado pelos indivíduos em resposta a inquéritos feitos à população...  ...O inquérito dos economistas concerne particularmente o papel da riqueza enquanto fundamento da felicidade. Dará o dinheiro a felicidade? O crescimento torna mesmo as pessoas mais felizes? Em caso contrário dever-se-á optar pelo decrescimento ou, pelo menos, medir o bem-estar para além do PIB? Poderiam então as políticas públicas utilizar a quantificação da felicidade como uma espécie de bússola? Este tipo de medida permite compreender porque é que os franceses sobrem de tanto "défice de felicidade", apesar de condições de vida objetivamente satisfatórias. Estamos aqui perante outro sinal dos tempos: em sociedades de abundância e consumo, onde o dinheiro parece ter-se tornado o único substituto dos valores que prezávamos - e medida de tudo, até mesmo do estatuto social e da consideração pessoal - eis que as pessoas se interrogam sobre o que é ser feliz... Bem sei que muitos se sentem infelizes por se pensarem discriminados relativamente aos que mais têm e usufruem, donde resulta ressentimento, inveja, sofrimento de injustiça. Ou, ainda, se sentem explorados, enganados e prejudicados por um sistema mercantil que os envolve de publicidade e promessas e os arrasta para o endividamento... Penso que uma das virtudes de maior justiça distributiva e frugalidade seria, precisamente, a de tornar uns menos soberbos, outros menos revoltados, e todos mais razoáveis e fraternos. Tal como Claudia Senik, gosto de recordar aquele discurso de Robert Kennedy, em 1968, quando era candidato às presidenciais norte-americanas e o mataram, como antes a seu irmão John: O PIB não reflete a saúde dos nossos filhos, a qualidade da sua educação, nem o prazer das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia, a força dos nossos casamentos, a inteligência do debate público, a probidade dos nossos funcionários. Não mede a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa devoção ao nosso país. De facto, mede tudo menos aquilo que faz com que valha a pena viver a vida, e diz-nos tudo sobre a América menos porque é que nos orgulhamos de ser americanos. A abrir o capítulo III do seu Civilisations, já nestas crónicas referido, o escocês Niall Ferguson, professor em Harvard e Oxford, interroga-se sobre as razões do maior êxito civilizacional da América colonizada pelos britânicos, em comparação com a América latina. Vou apenas traduzir aqui duas citações com que o autor sugere o seu pensamento. A primeira é de John Locke que, em 1669, na qualidade de secretário do conde de Shaftesbury, redigiu as Constituições fundamentais da Carolina (hoje dois estados dos EUA). Diz aquele filósofo: A liberdade define-se como a liberdade de cada um para regular e comandar a sua ideia, a sua pessoa, os seus atos, as suas posses, e tudo o que lhe pertence, no âmbito das leis a que está submetido; portanto, de não depender da vontade arbitrária de outrem...  ...O fim principal e capital, em vista do qual os homens se associam em repúblicas e se submetem a governos é, portanto, a preservação da sua propriedade. Claríssimo: nascemos livres, e os pactos sociais são expressão da nossa livre vontade, a propriedade privada sendo garante dela. Mas nem a liberdade individual, nem a propriedade privada são um privilégio de alguns, antes são um bem comum a todos e que todos devem comumente preservar. A outra citação é de Simon Bolivar, o "libertador" da América espanhola do sul, no séc. XIX: Somos os vis descendentes desses predadores espanhóis que desembarcaram na América para a sangrarem até ao fim e se reproduzirem com as suas vítimas. Mais tarde, os rebentos ilegítimos dessas uniões uniram-se com os dos escravos importados de África. Surtos de tal mestiçagem racial e dotados de moral tão exemplar, como poderíamos permitirmo-nos colocar as leis acima dos chefes e os princípios acima dos homens? Sabendo embora como a consciência da mestiçagem pode por vezes determinar ressentimento no mestiço, não posso nem quero atribuir-lhe qualquer culpa de desacatos ou injustiças. Mas guardo, de Bolivar, o reconhecimento, também, de que as leis e os princípios devem sempre colocar-se acima dos homens e dos seus chefes. Os princípios do humanismo: liberdade, igualdade (na dignidade), fraternidade que, no cristianismo, dão pelo nome genérico de valor divino do humano. As leis que os reconheçam e proclamem, e garantam o seu respeito e aplicação. Outro dia falaremos de diferendos e progresso do direito positivo internacional. Por agora, deixo outra pergunta: será possível que a ONU se imponha ao respeito e as suas decisões sejam exequíveis, enquanto a sua própria organização, como muitas das suas regras de funcionamento, não respeitarem os princípios universais acima enunciados? Enquanto teimar ser uma Animal Farm do George Orwell:  All animals are equal, but some animals are more equal than the others...?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 26.12.2014 neste blogue.

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  1. ORDNUNGSPOLITIK

Em La Rebelión de las Masas, José Ortega y Gasset a dado passo escreve: El Estado contemporâneo es el produto más visible y notório de la civilización. Y es muy interessante, es revelador, percatarse de la actitud que ante él adopta el hombre-masa. Éste lo ve, lo admira, sabe que está ahí, assegurando su vida; pero no tiene conciencia que es una creación humana inventada por ciertos hombres y sostenida por ciertas virtudes y supuestos que hubo ayer en los hombres y que puede evaporarse mañana. Por otra parte el hombre-masa ve en el Estado un poder anónimo, y como él se siente a sí mismo anónimo  -  vulgo  -, cree que el Estado es cosa suya. Imagínese que sobreviene en la vida pública de un país cualquiera dificultad, conflicto o problema: el hombre-masa tenderá a exigir que inmediatamente lo assuma el Estado, que se encargue directamente de resolverlo com sus gigantescos y incontrastables médios. Éste es el mayor peligro que hoy amenaza a la civilización: la estatificacion de la vida, el intervencionismo del Estado, la absorción de toda espontaneidad social por el Estado; es decir, la anulación de la espontaneidad histórica, que en definitiva sostiene, nutre y empuja los destinos humanos. (O sublinhado é meu). Palavras pronunciadas num tempo em que, pela Europa, já se impunham, se formavam ou ameaçavam, os totalitarismos que todos conhecemos. Lembrei-me delas ao ler, no nº 737 de Le Monde Diplomatique, um artigo assinado por dois franceses (um sociólogo do CNRS e um jornalista) e uma alemã (jornalista) e intitulado L´ordolibéralisme allemand, cage de fer pour le Vieux Continent, que me fez regressar à minha circunstância intelectual em finais dos anos 60 e início dos 70, quando eu era um jovem próximo do movimento de liberalização do Estado Novo e, indigitado por Rogério Martins  -  o terminador do condicionamento industrial em Portugal  - , fui nomeado delegado do nosso país ao Comité da Indústria da OCDE, em Paris. Nesse tempo, falávamos muito de um novo liberalismo económico europeu, mais político e social, designadamente no seu modelo alemão, posto em prática, no pós-guerra, por Ludwig Erhard, ministro da economia de Adenauer (1949-63) e, mais tarde, chanceler da RFA (1963-66). O pensamento subjacente surgira, ainda no período nazi, na universidade de Friburgo-em-Brisgau, movido por intelectuais católicos e conservadores, oponentes do hitlerismo. Adiante veremos isso. Agora, parece-me interessante traduzir para aqui o início do artigo acima referido:  «Se alguém quisesse ainda provas do perigo com que os referendos ameaçam o funcionamento das democracias modernas, ei-la aqui!», fulminava o semanário Der Spiegel de 6 de Julho de 2015, logo depois do anúncio dos resultados da consulta grega. A sideração provocada na Alemanha por este retumbante «não» explica-se pela colisão frontal entre duas concepções da economia e, mais latamente, dos negócios públicos. A primeira achega, que em princípios de Julho os dirigentes gregos incarnavam, reflecte um modo de governo propriamente político. O sufrágio popular tem primazia sobre a regra contabilística, e um poder eleito pode optar por mudar as regras. A segunda, inversamente, subordina a acção governamental à estrita observância de uma ordem. Os políticos podem agir como entenderem, desde que não saiam do enquadramento, que de facto está subtraído à deliberação democrática. O ministro alemão das finanças, Wolfgang Schäuble, personifica esse estado de espírito. «Para ele, as regras têm um carácter divino», observou o seu antigo homólogo grego Yanis Varoufakis. Esta ideologia alemã mal conhecida tem um nome: ordoliberalismo. Tal como os adeptos anglo-saxões do «laissez faire», os ordoliberais recusam que o Estado falseie o jogo do mercado. Mas, contrariamente àqueles, estimam que a livre-concorrência não se desenvolve espontaneamente. O Estado deve organizá-la; deve edificar o quadro jurídico, técnico, social, moral, cultural, do mercado. E fazer respeitar as regras. É isto a «ordopolítica» ou Ordnungspolitik. Estamos assim perante uma corrente do neoliberalismo, isto é, da renovação ou revisão do pensamento liberal, que ocorreu entre as duas grandes guerras do sec. XX e divergia, na cultura austro-germânica, da tradição liberal, tal como esta era defendida por Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, por exemplo. Curiosamente, o ordoliberalismo, apesar ou, quiçá, precisamente em razão da desconfiança na capacidade de autogoverno das massas (que, aliás, o coevo Ortega partilhava), inspirava-se também em princípios de justiça e estabilidade social, que não eram estranhos à doutrina social da Igreja e, mais tarde, alicerçaram os modelos social-democratas europeus, designadamente o alemão. Mas não vou demorar-me em considerações sobre o pensamento da chamada "Escola de Friburgo", na qual o próprio ministro Schäuble se filia, nem nas suas correspondências com outras correntes do pensamento socioeconómico. Limitar-me-ei a sublinhar que, tal como os seus actuais seguidores e praticantes hoje o defendem, ele é, certamente, um produto da cultura germânica e, como tal, encontra, alhures, críticas, discordâncias e oposições. Pessoalmente  --  e consciente das muitas virtudes que lhe reconheço  --  acho que, como qualquer olhar sobre o mundo e a sociedade, ele é susceptível de revisão, quer para se adaptar a circunstâncias diferentes, quer pelo dever democrático de respeitar a espontaneidade social, como Ortega, aliás, há quase um século vislumbrava. No seu Le Capital au XXIe siècle, Thomas Piketty dedica o capítulo que precede imediatamente as conclusões à questão da dívida pública. Aí recorda como a inflação pode ser um meio eficaz de redução da dívida pública, dado que esta é nominal, pelo que o seu valor real irá diminuindo à medida da desvalorização monetária. E escreve: Assim foi reduzida a maioria das dívidas públicas importantes na história, designadamente, no decurso do século XX, no conjunto dos países europeus. Por exemplo, na França e na Alemanha, a inflação anual foi, respectivamente, de 13% e 17%, em média, de 1913 a 1950. Foi o que permitiu a esses dois países lançarem-se à sua reconstrução com uma dívida pública insignificante no início dos anos 50. A Alemanha, em particular, é de longe o país que mais massivamente recorreu à inflação (e também à anulação pura e simples de créditos) para se desembaraçar das suas dívidas públicas ao longo da sua história. E recorrendo ao historiador alemão Albrecht Ritschl (Does Germany owe Greece a debt? The European debt crisis in historical perspective, LSE, 2012), lembra que uma parte importante da dívida alemã  -  e esta incluía custos de ocupação debitados à Grécia  -  foi pura e simplesmente anulada pelos Aliados a seguir à 2ª Grande Guerra, reportada a uma eventual unificação alemã e nunca mais reembolsada. É fácil conjeturar que a tensão entre os blocos separados pela "cortina de ferro" e a necessidade de fomentar as economias ocidentais tivessem determinado tais generosidades políticas e financeiras, através de medidas e comportamentos menos ortodoxos e mais inovadores. Tal como não será difícil imaginar como povos castigados por décadas de altas de preços e encargos de dívida, na sequência da 1ª Guerra, sentissem receio e raiva a qualquer nova ameaça de desestabilização económica, financeira e social. Já antes, na periferia europeia, a maioria dos portugueses aceitara como mal menor, ou mesmo salvador, depois da desordem da 1ª República, o Estado Novo. Mas talvez se possa hoje pedir, à opinião pública da Alemanha reunificada, uma lembrança mais clara e um entendimento mais sensato das circunstâncias em que foi socorrida e das ajudas então recebidas. Para que, por sua vez, se debruce sobre a diferente condição de outros e se interrogue sobre as necessárias e possíveis inovações políticas  --  no plano nacional como internacional, designadamente quanto à indispensável reestruturação da União Europeia e dos seus mecanismos. Já sabemos que, além de demasiado pesada e injusta para muitos, a "austeridade" vem sendo democraticamente cada vez mais contestada; também sabemos que não tem conseguido reduzir as chamadas dívidas soberanas; nem travado o crescimento do endividamento privado, nem fomentado o desenvolvimento económico e social. E, ora, será bom não esquecer que a circunstância da própria Alemanha tem evoluído muito: já não é a de um país que recebeu muitos apoios e incentivos e logo integrou a CEE, porque era necessário assegurar uma paz duradoura numa Europa desfeita por duas grandes guerras em menos de meio século, e um robustecimento económico das democracias europeias face ao desafio dos países reunidos, sob tutela soviética, pelo Pacto de Varsóvia. Hoje, a Europa conta já mais de meio século de paz e prosperidade, e a CEE passou de seis a quase trinta nações reunidas na União Europeia, integrando a periferia sul do continente e vários países emancipados do jugo comunista ; a imigração, nas economias mais abastadas, já não é só o fluxo pacífico de mão de obra necessária, mas depara-se com a chegada incessante de infelizes que não encontram, nas suas regiões de origem, nem a paz nem o trabalho e progresso que lhes proporcionem uma vida humana digna. E, à volta desta Europa cheia de novos problemas e desafios, agita-se um mundo em globalização acelerada, onde já se destacam, emergentes, novas potências políticas, económicas e financeiras, e muitas vezes se escondem conspirações e poderes do capital não controlado politicamente. Precisamos todos, Alemanha inclusive, de uma nova ordem internacional que permita e fomente um desenvolvimento económico e social mais distribuído e autónomo. O que, evidentemente, só será possível na medida em que, pacífica e construtivamente, soubermos mudar algumas regras das ortodoxias reinantes.


Camilo Martins de Oliveira


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25. POR DETRÁS DE DÍVIDAS...

 

Mesmo não sendo Cavaleiro Andante ou Prince Ardent, ficou-me dessas leituras juvenis um quase sentido do dever de sair à liça em defesa de injustiçados, sobretudo quando os perseguidores, juízes ou carrascos se reclamam só de virtudes e de isenção de culpas ou responsabilidades próprias, para atribuírem a outros a exclusiva responsabilidade do mal acontecido. E quando o desplante chega ao ponto de esquecerem que esses outros são efectivamente habitantes da mesma casa, participantes da mesma vida ou aventura, membros da mesma comunidade... Meu Deus! Já muitas vezes escrevi sobre os desvios que políticas económicas e governações têm consentido, ou mesmo promovido, do fim que lhes compete perseguir : o interesse geral, isto é, o bem comum. Tal como tenho apelado ao diálogo e à concórdia, não para apagar diferenças, mas para criar o espaço-tempo, e construir o modo em que essas possam conviver para benefício de todos. O propósito desta crónica continua o mesmo, mas vou procurar antes comentar textos de terceiros, que bastante se alinham com as minhas preocupações quando reflicto sobre as chamadas dívidas soberanas. Evitando aqui voltar a repetir o que, sobre tão complexa matéria, alhures já disse. A revista norte-americana Foreign Affairs publica, na sua edição deste Verão, uma estimulante resenha crítica ao livro de Martin Wolf, comentador económico principal do Financial Times, The Shifts and the Shocks: What We´ve Learned - and Have Still to Learn - From the Financial Crisis (Penguin Press, 2014). O autor do artigo é Athanasios Orphanides, cipriota grego, professor no MIT (EUA), que já foi Governador do Banco Central de Chipre e também pertenceu ao Conselho de Governadores do BCE. Admirando, concordando aqui, diferindo ali, o comentador revela, tal como o seu comentado, a preocupação em considerar factos e questões com lucidez e sem as excitações e partidarismos, políticos ou de escola, com que , infelizmente, se usa por aí tratar este assunto. Recordando Wolf, Orphanides começa por reconhecer que as crises são um inevitável rebento da economia capitalista moderna. Exemplificando, refere o declínio dos preços do imobiliário nos EUA, iniciado em 2006 e atingindo o auge em 2010. Após um período de preços excepcionalmente altos, era bem vinda tal queda, vista como natural correcção do próprio mercado, e quase ninguém pensou que seria possível acontecer o choque de uma crise com a dimensão que se verificou. Wolf aponta várias causas desse falhanço: antes de mais, falta de imaginação. Banqueiros, reguladores e políticos partiram do princípio de que um longo período de estabilidade tornara a economia invulnerável a choques: Porque caíram as economias líderes do mundo em tal baralhada? A resposta, em parte, está em que os responsáveis por elas não acreditaram que poderiam lá cair. Particularmente arguta, muito embora possa correr o risco de ser menosprezada, é outra observação de Wolf, que o seu comentador refere assim: Antes do pântano, a maioria dos economistas - incluindo o próprio Wolf - não concebiam a possibilidade de um derretimento financeiro global. Tal como ele escreve, foi «parcialmente porque os modelos económicos da corrente dominante tornavam a crise tão ostensivamente improvável em teoria, que acabaram por torná-la muito mais provável na prática». Reguladores e investidores assumiram alegremente, entre outras coisas, que as pessoas tendem a fazer opções económicas racionais e que os preços de mercado reflectem o verdadeiro valor dos activos. Este falso sentido de segurança torna-os descuidados, mais propensos a correr riscos e menos cuidadosos quando surgem sinais de alerta. «A estabilidade desestabiliza», escreve Wolf, parafraseando o economista americano Hyman Minsky. Pessoalmente, penso que, em pano de fundo da confusão em que mergulhámos, se desenha, não só tão insensata fé na justeza e justiça dos mercados, como essa "idolatria do dinheiro", de que fala o papa Francisco, quer pela ganância de posse e acumulação de riqueza, quer na vertente do despesismo em consumo. Isto é: criou-se um sistema económico próprio a uma cultura materialista e sôfrega. Simplificando - e com alguma brutalidade  - direi que o ponto de encontro de ricos e pobres, ou aquele sobre que todos estão de acordo, é que o dinheiro é bom por excelência, compra muitas coisas (praticamente quase tudo) e, para isso, todos o queremos. Mas voltando à boca da cena, atentemos em alguns efeitos práticos das teorias económicas dominantes. Martin Wolf, economista liberal, aponta todavia o dedo ao excesso de desregulação, corolário da tal crença no poder regulador dos mercados. (Antes de transcrever a citação feita por Orphanides, lembro que os acordos de Basileia (I, II e III) são, desde 1988, recomendações, relativas a critérios e regulamentos sobre riscos de crédito bancário e sua cobertura, emitidas pelo BCBS (Basel Committee on Banking Supervision) que reúne, hoje em dia, representantes de bancos centrais e entidades reguladoras de uma vintena das economias mais desenvolvidas do mundo).  Vamos então ao comentário do professor cipriota da Sloan School of Management do MIT: Wolf destaca dois erros de regulação especialmente nocivos. Primeiro, na sequência dos Acordos de Basileia, os bancos foram autorizados a classificar as obrigações do tesouro como isentas de risco. Quando um banco adquire um activo de risco, deve ter capital suficiente para cobrir a possibilidade de não pagamento. As regras de Basileia significavam que os bancos detentores de dívida soberana não precisavam de acumular capital extra. Escreve Wolf : «Assumia-se que os governos não faltariam», crença que ia parecendo cada vez menos certa, pelo desenrolar da crise na zona euro. Em segundo lugar, os governos, designadamente nos EUA, encorajaram fortemente firmas a facilitar às pessoas os empréstimos para compra de casas, o que levou a um frenesim de crédito hipotecário - incluindo a quem pouca capacidade tinha para pagar dívidas - e contribuiu para a bolha do imobiliário. Orphanides insiste mais no factor político - a meu ver com razão - do que Wolf, que tende para atribuir mais à teoria económica as medidas de política económica. O cipriota define assim bem as consequências da decisão de permitir que os bancos possam considerar isentas de risco as dívidas soberanas: Os governos da zona euro beneficiaram dessa política, já que, chamar livre de risco à sua dívida, lhes tornou os empréstimos mais baratos e facilitou níveis mais altos de despesa estatal. Os bancos, desejosos de baixarem os seus quesitos de capital, entraram felizes no jogo. Eis um exemplo da simbiótica relação entre governos e bancos que infiltra a banca à volta do mundo. Concentrando-nos na Europa, surge-nos a incontornável questão da moeda única, ou da união monetária, desafio ainda tanto quanto realidade (em carta recente, eu recordava o dito de frei Ivo Congar sobre o Vaticano II: é fantástica a obra realizada, mas todavia tudo está ainda por fazer). Ou se reforça a União Europeia como um todo nas suas várias vertentes (económica, monetária, financeira, fiscal, etc. etc.), ou seja, como entidade política solidária em construção ou vamos rezar para outra freguesia... Wolf fala da zona euro como um casamento monetário polígamo, mal conhecido pelas pessoas que nele confluíram à pressa e insuficientemente avisadas, e sem qualquer mecanismo para divórcio. Orphanides  pega-lhe na palavra e acrescenta : Ao casamento seguiu-se uma lua de mel irresponsável: países devedores, como a Grécia e Portugal, pediram livremente emprestado e gastaram desalmadamente, enquanto a Alemanha, esposa credora, montou um sector exportador competitivo e um superavit externo «acompanhado de crescentes reclamações sobre os devedores». Quando a crise chegou, o matrimónio azedou: a Alemanha acusou os países devedores de esbanjarem o seu dinheiro, e eles a Alemanha por força-los à destituição. Ambos os autores, apesar de diferenças, concordarão em que a timidez ou fraqueza da construção europeia explica grande parte da crise na zona euro, tal como ainda o jeito tosco e míope com que se pretendeu arrumar com ela, designadamente através de medidas de "austeridade" mal conduzidas e atrofiadoras da necessária recuperação económica. E cita-se um passo do discurso do ex-chanceler alemão Helmuth Schmidt, pronunciado na sua língua materna e em Frankfurt, aquando da despedida de Jean-Claude Trichet de Governador do BCE: Toda a conversa sobre a chamada "eurocrise" não passa de vaga conversa fiada de políticos e jornalistas... O que temos, na realidade, é a crise da incapacidade de actuação dos corpos políticos da UE. A espantada fraqueza de acção é muito maior ameaça ao futuro da Europa do que os níveis excessivos de dívida de alguns países membros. Diz-se que tal discurso era dirigido a Sarkozy e a Merkel que, meses antes, em Outubro de 2010, na estância de Deauville, haviam juntamente decidido opor o seu veto a qualquer programa de assistência a países da zona euro, a menos que pudessem impor, primeiro, as perdas a credores privados desses estados. Comenta Orphanides: Tal política, conhecida por envolvimento do sector privado, foi um passo mal dado. A ideia de que franceses e alemães poderiam impor perdas a credores privados alarmou detentores de dívida soberana, e conduziu ao agravamento da crise pela eurozona, a começar pelo colapso da economia irlandesa. Claro que a Alemanha saiu por cima. Tornando a dívida soberana dos estados periféricos, denominada em euros, menos atraente, Merkel, com mestria, criou, para a Alemanha, um subsídio implícito, vindo da euro área periférica. Já no início desse ano de 2010, quando a Grécia recorreu ao FMI, a França, Alemanha e Holanda, cujos bancos estavam bastante expostos à dívida grega, tudo fizeram para os proteger de eventuais "write-offs". Concluindo, reafirmo a minha concordância com afirmações dos economistas que vimos acompanhando: numa economia global que se remenda e vai remediando, a eurozona empalidece e, tal como está, talvez já não possa durar muito. Wolf aponta para a separação que se cava entre o nível nacional de responsabilização e o nível de poder na eurozona, com a Alemanha a exercer um controlo exagerado sobre outros: Tal estrutura não poderá durar e, mesmo que possa, não deve. Assim diz, mas reconhece que a Alemanha já é suficientemente poderosa, para travar certas reformas que remendem o tal complicado casamento polígamo e que, na versão de Orphanides, incluem a criação de uma união bancária adequada, a conversão de alguma dívida pública existente em euro-obrigações, que poderiam ser um activo comum e seguro, e a concessão, ao BCE, de maior liberdade de intervenção nos mercados de títulos do tesouro. E eu acrescentaria - se essas obras começassem a fazer-se, e para já - também a moralização e regulação das bolsas de valores e mercados financeiros, bem como da publicidade ao crédito e ao consumo. Lembrado daquela máxima latina: Homo lupus hominis... 

 

Camilo Martins de Oliveira

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24. O ENCOBERTO

 

O Courrier International (na edição francesa original, nº 1275) ilustra vários artigos da imprensa europeia sobre o tema e as negociações da Parceria Transatlântica em Comércio e Investimento (ou TTIP, segundo o acrónimo inglês) com vários desenhos de Arend (Países Baixos). Logo o primeiro, muito sugestivo, nos mostra, sentados em torno de uma mesa - atrás da qual se afixa um mapa do mundo - vários bonecos debatendo, identificados como Captains of Industry. Debaixo dessa mesa, aparentando crianças, surgem outros tantos a brincar com as peças de um jogo de sala chamado Stratego. Identificam-se como sendo Politicians... Os vários textos ali publicados debruçam-se sobre as negociações de um acordo de livre câmbio alargado, que poderá fazer dos EUA e da UE, juntos, o maior mercado do mundo. Surgem entusiasmos, interrogações, dúvidas e receios... Em presença de um processo de mundialização da economia - e do declínio relativo do ocidente industrializado, face à emergência de novas potências económicas, em crescimento rápido - é tentadora a perspectiva de uma zona económica do atlântico norte, que conforte uma dinâmica de criação de riqueza e bem-estar. Mas com essa miragem também se levantam outras questões. Umas são endógenas ao próprio processo das negociações em curso (iniciadas em Julho de 2013) e ao espaço geopolítico e económico a que se circunscrevem, desde a harmonização possível de normas laborais, fiscais, financeiras, sanitárias, ecológicas, à definição de sectores e prazos de aplicação, sobretudo enquanto preocupação com os possíveis efeitos sobre vantagens concorrenciais e emprego.  Não é, contudo, nosso propósito, tratar agora dessas questões. O nosso objectivo é antes tentar colocar este, como qualquer outro debate internacional em matéria económica e financeira, no contexto da globalização em curso e da indissociável reflexão sobre as respectivas consequências para a democracia e sua definição de poderes. Aliás, o que a caricatura acima recordada diz é que os nossos políticos não estão a ser factores de decisão, mas serão crianças que brincam com simulações... Há, todos sabemos e ouvimos, um afrontamento mediático e quotidiano entre políticos e seus partidos - de esquerda e de direita - como entre dirigentes associativos, professores, estudiosos, curiosos, comentadores e jornalistas, opondo "neoliberalismo" e "Estado social" que, bem vistas as coisas e os argumentos das partes, quase nunca é um debate inteligente e construtivo, antes um ping-pong que se joga pelo lançamento alternado de teorias datadas e factos ponderados em função de pontos de vista e interesses já estabelecidos. Pode tudo isto passar-se publicamente nas cenas várias das nossas livres democracias, mas parece-me, todavia, que o essencial das questões - por falta de independência de juízo e de espírito crítico, e alguma ignorância da história e dos métodos científicos - vai ficando de fora, e, mesmo pensando seguir caminhos diferentes, quiçá opostos, todas as partes vão cair num barranco de cegos. Sobretudo, não surgem respostas nem propostas, que terão de ser necessariamente inovadoras, a questões de como poderá o poder político controlar o financeiro, e de como deverá fazê-lo por forma a promover e assegurar a participação democrática dos cidadãos de pátrias e do mundo no governo duma res publica crescentemente alargada e complexa. É confrangedor, para não dizer pungente, que numa civilização em que o progresso das tecnologias pode facilitar a informação, o diálogo e a participação, as pessoas sejam alheadas da consideração do bem comum e do interesse geral, para se concentrarem em clubes e meios restritos ou, simplesmente, se desinteressarem. Tem sido proclamado, aliás por sensibilidades e razões diferentes e nem sempre concordantes, que a actual globalização é neoliberal, obedece a um programa que o "grande capital" desenhou no princípio dos anos 70 do século passado, com o evidente objectivo de se ir apropriando, em benefício sobretudo da sua ganância de acumulação, da riqueza que a generalização de novos factores e relações de produção iria criando. Somos certamente sensíveis à gravidade de possíveis consequências de uma concentração, a nível mundial, não só local ou nacional, e cada vez menos regional, das capacidades de capitalizar, de inovar e desenvolver tecnologias, de concorrer invasivamente em múltiplos mercados... Sempre em prejuízo, claro está, das indústrias existentes e do tecido social em que foram assentando. Mas talvez não seja aconselhável esquecer a força determinista de certas inovações e novas relações de produção : ninguém com bom senso pretenderá ser possível regressarmos ao passado das técnicas e das organizações. Não é, pois, aí que se põe a questão fundamental da justiça e da democracia no controlo de um poder económico e financeiro que, tirando naturalmente as vantagens consequentes de um campo de acção mais vasto e sofisticado, deverá todavia fazê-lo para benefício de todos. Contrariamente a várias correntes de opinião, de esquerda como de direita, que concordam na necessidade de reforço da independência e soberania nacional, através de medidas protecionistas e isolacionistas, não prevejo que tal seja útil e benéfico, nem sequer já possível. Não só a "soberania nacional" é hoje, mais do que realidade, um conceito desacreditado, mas a integração de todos no processo de globalização é inevitável. Como diz Monique Chemillier-Gendreau, professora de direito público e ciência política na universidade de Paris-Diderot, na concepção jurídico-política prevalecente até hoje, o Estado soberano já não tem futuro como força de paz, de emancipação, ou de justiça social... ...Não, a soberania não é a "competência das competências", pois nenhum Estado dispõe da exclusividade das competências no seu território; não, não é a garantia da independência de um povo, como o prova a situação em países do terceiro mundo onde, contudo, as soberanias criaram tantas esperanças; não, não é um poder acima de todos os poderes; não, ela não é a expressão de um pacto político fundado na procura da justiça. E a democracia institucional, tal como a entendemos no Ocidente, e como foi exportada para todo o mundo, não basta, longe disso, para garantir a liberdade, porque, ao assimilar comunidade política nacional e soberania na figura política do Estado, matámos o projecto de liberdade. Sim, pela comunicação e as trocas, o mundo forma hoje uma "sociedade" que deve passar a outro nível de organização política, compatível com a liberdade de todos. Também o professor Daniele Archibugi, da universidade de Londres, Birkbeck College, tem vindo a defender a noção de cosmopolitismo, a caminho de uma democracia mundial a que chama democracia cosmopolítica. Nenhum destes autores é defensor de qualquer  nacionalismo político ou económico, como, por exemplo, o hispano-francês Ignatio Ramonet, também ele professor universitário, natural de Pontevedra, mas com muitos anos de trabalho e investigação em França, onde foi, durante anos, director de Le Monde Diplomatique. Muito embora não concorde com a sua tese de que a presente globalização é neoliberal - no sentido de ter necessariamente de ser um sistema em que o supremo regulador é "o mercado", ao serviço dos interesses dos mais fortes, que o controlam, pois  penso, como disse acima, que ela poderá ser outra coisa - aprecio a sua análise de que ela nos imerge em três revoluções simultâneas. E, para apresentá-la, reproduzo um trecho do artigo que frei Rui Manuel Grácio das Neves, O.P., publicou no caderno nº 30 do Instituto São Tomás de Aquino, de Lisboa, sobre o tema A Globalização Neoliberal e os Caminhos para o Diálogo nter-Religioso, que aliás me parece abrir outra nova pista para a reflexão sobre o processo que temos aqui presente:

1. A revolução tecnológica é sobretudo uma revolução ao nível da comunicação-informação. E isto num duplo aspecto: a cerebrização generalizada das máquinas e a revolução numérica ou digital. Através da digitalização generalizada foi possível identificar três sistemas de sinais que eram, até agora, independentes: o som, o desenho  e o texto. Desta forma, qualquer som, imagem ou texto pode ser reproduzido e difundido mediante a sua transformação em impulsos electrónicos, que se movimentam à velocidade da luz (que se converte agora num absoluto, no "real time", recordando aqui a revolução física e epistémica de Albert Einstein).

2. A revolução económica actual refere-se ao predomínio das actividades financeiras. Encontramo-nos imersos numa economia do imaterial (intercâmbio, venda e comércio de valores e moedas) e num intercâmbio planetário da economia financeira (afirma-se que aproximadamente umas 50 vezes superior ao intercâmbio da economia real ou intercâmbio de produtos concretos). A economia do imaterial inclui a economia da comunicação, da informação e da cultura, sendo todas elas susceptíveis de ser digitalizadas e transmitidas planetariamente. Em definitivo, estamos perante a dupla característica da revolução económica: financialização e imaterialização. Tudo isto aponta para a globalização da economia.

3. Finalmente, a revolução sociológica, que aqui deveria ser melhor classificada como revolução política. Ou seja, o conceito de Poder está hoje em crise. A pergunta básica é: quem possui hoje, realmente, o Poder? Tradicionalmente, tem sido o Poder vertical, hierárquico, autoritário. Hoje, procura-se melhor um poder que seja horizontal, em forma de rede de teia de aranha. Daí a importância da categoria de consensualidade. Para isto é decisiva a ajuda da tecnologia comunicativa ou comunicacional.

Curiosamente, quem já se distraiu, ou mesmo ainda se distraia, com aqueles romances policiais e bandas desenhadas em que teimosamente se vão escondendo e camuflando detentores ou ambiciosos de poderes secretos, entenderá melhor o sentido do título desta crónica do que tantas, muitas, das nossas personalidades mediáticas que por aí discutem candidatos a "soberanias" e "democracias" fora de prazo de validade. Estarão à espera do Poder encoberto?

 

Camilo Martins de Oliveira

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Anna Netrebko e Piotr Bekzala em «Iolanta» de Tchaikovsky no Met.
 

23. IOLANTA
 

Numa destas tardes, colhido por algum cansaço da vista ou do cérebro, pousei o "meu" Le Monde, para cerrar os olhos e escutar a transmissão, directamente do MET, da Iolanta, do Tchaikovsky. Já conhecia o libreto, fui seguindo cegamente o enredo musical - não somente a música, quiçá por me lembrar de, em dia já remoto, ter achado graça a que um compositor russo do séc. XIX (mais ainda, autor das óperas Eugénio Oneguin, e, valha-nos Deus!, Dama de Espadas) se tenha metido com essa história da filha do bom René, rei de Anjou, que, penso, só terá o mesmo nome e título de quem liquidou, por conta de Luís XI, os sonhos e a pessoa de Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, filho de Isabel de Lencastre e Portugal e de seu marido Filipe, o Bom... Em resumo, Iolanta, a ópera, conta esta história: a princesa, cega de nascença, ignora o mal de que padece, sendo, portanto uma invisual feliz e contente. Ibn-Hakia, médico mouro, observa-a e diz a el-rei seu pai que a poderá curar, desde que ela ganhe consciência da sua condição e deseje curar-se: " é insensato considerar o mundo da carne à parte do mundo do espírito, e Iolanta só poderá ver se o seu espírito tiver a ideia de luz e preparar os seus olhos para a receberem..." René recusa-se a revelar à filha o que poderá ser causa de perturbação e dor, mas um nobre visitante cai inesperadamente apaixonado por Iolanta, fala-lhe de flores que esta não vê... E ela deseja tanto vê-las que se cura. O artigo que eu lia em Le Monde intitulava-se Les vertiges du transhumanisme. A expressão trans-humanismo foi criada por Julian Huxley, biólogo evolucionista - e irmão de Aldous Huxley, o autor de Brave New World - que escreveu I believe in transhumanism: once there are enough people who can truly say that, the human species will be on the threshold of a new kind of existence, as diferent from ours as ours is from that of the Peking man. It will  at last be conciously fulfilling its real destiny. (New Bottles for new Wine, Londres, Chatto and Windus, 1957). Este novo tipo de existência - que ainda não sabemos bem, bem, o que é, será, ou poderá ser - tem sido explosivamente projectado, de forma ficcional, previsional e hipotética, por diversos cientistas e investigadores, nas mais diferentes áreas do pensar e saber humano... Mas, no princípio, está sempre a convicção de que o ser humano se pode transcender, tem a capacidade necessária e suficiente para ultrapassar a sua condição. O título do longo artigo publicado no suplemento Culture&Idées do Monde de 14 de fevereiro é provocador: Fabriquer l´humain de demain. Em subtítulo explica que «o transhumanismo promete o advento de um homem "aumentado", designadamente graças à inteligência artificial »... E, em caixa, destaca que «a Califórnia (Silicon Valley) está mergulhada na convicção de que o homem vai melhorar a máquina, e a máquina melhorar o homem.» E Corine Lesnes, a autora do artigo, começa-o assim: Se tivéssemos de resumir a filosofia transhumanista numa só ideia, que fosse a mais extrema mas também a mais cativante, seria esta: um dia, o homem já não será um mamífero. Libertar-se-á do seu corpo, será apenas um com o computador e, graças à inteligência artificial, terá acesso à imortalidade. Subjacente a esta utopia, está a presunção de que a conservação indefinida da vida humana é, afinal, tão somente um problema de manutenção, cuja solução ficará ao alcance dos novos métodos de detecção de defeitos e doenças, dos implantes de órgãos artificiais, das modificações genéticas. Quanto a estas últimas, recordo que, recentemente, surgiu um debate público, no Reino Unido (cf. The Spectator de 2/2/2015 e The Economist  de 7/2) sobre a proposta legislativa de se autorizar a fecundação in vitro com três ADN, sendo objectivo de tal técnica introduzir uma modificação no  genoma da descendência, por exemplo, de uma mulher com mitocôndrias afectadas, retirando o núcleo dum seu ovócito saudável para o colocar no ovócito de outra com mitocôndrias saudáveis. A proposta foi aprovada, na Câmara dos Comuns, por 382 votos a favor e 128 contra. Nesta, como em muitas outras questões que hoje se põem à consciência humana, o nosso juízo ético é desafiado pela confrontação com realidades e referências novas, de fora, portanto, da cultura em que fomos criados. Pela nossa sabedoria tradicional podemos discutir e pronunciar-nos sobre o aborto e a eutanásia, por exemplo, cada um de nós tem, sobre a matéria, uma posição claramente definida e até matizada por conceitos, referências e interpretações que, mesmo quando divergem, partem de um conhecimento comum. Todavia, parece-me que, perante possibilidades novas, quiçá inesperadas, a nossa consciência deve seguir o conselho do médico de Iolanta, isto é, não cair na tentação da cegueira, para continuar ignorantemente feliz e contente, mas compreender que ao nosso espírito cumpre procurar a luz. E nem só no campo da bioética se levantam ou colocam questões. A presunção de imortalidade ou, simplesmente, a eventualidade de serem cada vez mais possivelmente longas as nossas vidas trazem também interrogações sobre a igualdade e justiça relativa das condições e oportunidades de acesso ao benefício das novas circunstâncias científicas e tecnológicas, num mundo onde ainda são infelizmente numerosos os exemplos e casos de miséria e doença entre os menos favorecidos, isto é, de populações inteiras vitimadas por maleitas e epidemias a que o outro mundo (o nosso) já escapa. E isto em tempos de afrontamentos de culturas e civilizações, de preconceitos e atitudes de ignorância ou esquecimento dos outros. É necessário e urgente desenvolver-se uma cultura de responsabilidade num processo de globalização com polos de progresso distintos e desiguais, de modo a evitar-se um calamitoso crescimento das desigualdades, a submissão injusta e cega de multidões a elites de poderosos ou o privilégio do isolamento destes em circunstâncias onde a substituição do homem pela máquina produzirá mais desemprego e pobreza para muitos. Essa indispensável cultura da responsabilidade não se refere apenas a reflexões éticas (e jurídicas) sobre o caminhar da investigação científica e suas aplicações consequentes. Ela radica numa preocupação mais humana e funda com o esteio das nossas atitudes, uns para com os outros : a crise de valores, de que tanto se fala por aí, mais não é do que a inadequação de preconceitos antigos às realidades adventícias, não só da inovação científica e tecnológica, como dos desafios ao convívio humano, desde o plano familiar até à proximidade crescente de povos e culturas, no espaço e no tempo. Abordei esta questão nas minhas crónicas sobre "preconceito e pluralidade". Sublinho agora a extrema perigosidade de insistirmos em atitudes e comportamentos de cegueira ao outro e afrontamento, como infelizmente alguns dos nossos gurus vão repetidamente insistindo, quando se pronunciam, incondicionalmente e sem procura ousada de diálogo, sobre as dívidas ditas soberanas, o Islão, islamismo e terrorismo, etc... A persistência arrogante na afirmação da superioridade de conceitos (e preconceitos) culturais, religiosos, políticos ou ideológicos - que quase sempre surgem como elementos de identificação e diferenciação - está mais próxima de arriscadas ameaças "`a la Poutine", do que da sensatez sábia do papa Francisco. O que abriu os olhos a Iolanta - e lhe deu luz - foi o amor.  

  

Camilo Martins de Oliveira

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Capa do Livro "Quand l’Histoire Commence", Bertrand Badie

  1. UMA NOVA HISTÓRIA?

Nas CNRS Editions, do Centre National de la Recherche Scientifique, Bertrand Badie publicou, em 2012, um opúsculo intitulado Quand l´Histoire commence, pequeno ensaio sobre o desafio da globalização: E se o fim das relações internacionais clássicas, as dos diplomatas e soldados de antanho, fosse na realidade o princípio de uma nova história? Se então começasse a História, essa já não só dos Estados rivais, mas a verdadeira, a total, a da humanidade inteira e das sociedades compenetradas?
Esta ideia de nova História, de uma História que começa, surge em antítese à teoria do "fim da História", tal como o franco-russo Alexandre Kojéve (1902-1968) a desenhou, coroando uma análise do processo histórico europeu que é, afinal, uma leitura hegeliana de Thomas Hobbes. Diz Badie que a tese (de Kojéve) é sobretudo brilhante pela sua pertinência histórica: ela descreve bem e lindamente o modelo de desenvolvimento europeu. Aí encontramos as raízes feudais da guerra e os modos de invenção da alteridade que então se impuseram. Ali descobrimos a sociogénese dos Estados europeus que efectivamente se desenharam opondo-se uns aos outros...  
... Ali se adivinha uma história da nação, uma construção social da alteridade, o sentido profundo do estrangeiro que remete, na sua história semântica, para o incompreensível, para o outro que nunca será o próprio, que não poderá nem deverá jamais ser o equivalente de si...
Mas em que é que esta lógica e esta história são fatais, marcas forçadas do destino, ao ponto de virem abolir a História se deixarem de ser seguidas? No plano lógico, porque será a política a arte de gerir a confrontação, mais do que a de organizar a coexistência? E porque é que esta visão alternativa, que também tem os seus defensores, e em todas as culturas, não se estenderia a todo o espaço mundial?

Assim, ao arrepio dos teóricos do afrontamento - e deste enquanto motor da História, seja na dialéctica hegeliano-marxista do senhor e do escravo, ou em pensadores vários do concerto das nações (incluindo, claro fica, o nazi Carl Schmitt), ou ainda nos arautos do choque das civilizações, para não falarmos em teorias da natural regulação dos mercados pela concorrência - há quem proponha uma nova História, dinamizada pela utopia da organização da inevitável coexistência, pela procura do respeito da diferença e das singularidades, por um lado, e da harmonização de regras universais que sustenham o reconhecimento essencial da prioridade da paz que assenta na justiça...
Será certamente muito difícil. Mas será possível. Na sequência do abominável e assassino ataque terrorista ao semanário Charlie e a uma loja cacher, falou-se e escreveu-se muito, levantaram-se publicamente manifestações e protestos vários. Reparei que, mais do que a profunda mágoa humana, de cada um e de todos nós, com que nos fere a destruição violenta de uma vida - que, pela sua natureza e pela nossa condição comum, é também a nossa vida - se considerou o crime contra a liberdade de expressão.
Esqueceu-se muitas vezes, em tantos discursos, que crime bem maior é atentar contra a vida humana. Sobre este, todos podem sentir da mesma maneira, pelo que denunciá-lo, chorá-lo e puni-lo, nos reunirá num valor comungado. E era sobre este ponto de encontro que se deveria ter mais chamado a atenção e o coração de todos. Mas preferiu-se, quase sempre, insistir na revolta contra a violação de um direito de expressão que, para nós, é universal e deve ser ilimitado, mas para outros (e são muitos) não pode nem deve ser ofensivo.
Bem sei que, pelo seu lado subjectivo - a ofensa sente-se - é praticamente e juridicamente impossível definir-lhe limites ou contornos universalmente aceitáveis: o que magoa uns, é motivo de risota para outros, e a verdade de uns pode ser razão de contestação para outros. Por isso mesmo, a cada um de nós deve ser reconhecido o direito inalienável de se exprimir sem restrições externas.
Isto dito, reafirmo que não me parece sensato, e muito menos de boa política, ter-se continuado a impor à atenção universal a nossa firme condenação daqueles assassinatos por considerá-los atentados contra a liberdade de expressão, mais insistentemente do que a nossa repugnância face a tão sórdida violação do mais fundamental de todos os direitos, do qual aliás decorre o necessário respeito pela dignidade igual de todos: o direito à vida.
Essoutra mensagem nossa teria vindo em apoio aos milhões e milhões de muçulmanos - e tantos, nesta circunstância, voltaram a manifestar-se - que veem no Corão a revelação do amor misericordioso de Deus, e incansavelmente vão pondo em causa a tradição, sobretudo sunita, dos ditos do Profeta (hadith), que tantos ulemas ou teólogos islâmicos foram, durante séculos, preferindo ao ensino do próprio texto do livro revelado, inicialmente, aliás, sob comando de califas da expansão omíada e abássida. E teria dado a muitos outros - que vivem e trabalham (até nas forças de defesa e segurança, como nos serviços de saúde) nos nossos países, e são nossos concidadãos, como tantos que conheci na Guiné, leais servidores de Portugal - mais necessária confiança nos valores da nossa cultura e na sua contribuição para a construção de um mundo que seja, para todos igualmente, mais justo e mais pacífico.


Camilo Martins de Oliveira

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Mustafá Akyol

 

21. BENEVOLÊNCIA E UMBIGO

 

Gosto da palavra benevolência, tanto ela diz: querer bem, querer o bem, bem-querer... A vontade de amar assume a beleza da vida, e dá-lhe mais um esplendor. Menos bem me sabe quando pretende desculpar, dar desconto, por especial favor de alguma magnanimidade. Ou, pior ainda, ao lembrar-me de que, baixando a cabeça, olho para mim...  E, com ela baixa, mirando-me o umbigo, me descubro - e às minha crenças e preconceitos - mais acima e mais adiante dos outros! Vem esta reflexão a talho de outras que, no calor das manifestações "Je Suis Charlie", fiz e enviei a alguns amigos, sem insistir em publicá-las logo, pois que nem era minha intenção irritar fosse quem fosse. Agora, acho que as posso deixar aí mais abaixo, talvez nos ajudem a reflectir. Mustafá Akyol é um escritor muçulmano, de naturalidade turca, que recentemente publicou no New York Times um artigo intitulado Islam´s problem with blasphemy, onde escreve: o Corão disse, aos primeiros Muçulmanos que rotineiramente enfrentavam a troça da sua fé por pagãos, que «Deus vos disse, no Livro, que quando ouvirdes as revelações de Deus desacreditadas e troçadas, não vos senteis com eles até que eles comecem com outra conversa»...  ...Apenas «não vos senteis com eles» -  eis a resposta que o Corão sugere para a troça. Violência, não. Nem sequer censura. Os sensatos líderes religiosos muçulmanos de todo o mundo farão ao Islão um grande favor se pregarem e reiterarem tal atitude, não violenta nem opressora, face aos insultos contra o Islão. Essa instrução também poderia ajudar os seus correligionários mais intolerantes a perceber que a raiva não é sinal de nada mais senão imaturidade. O poder de qualquer fé não provém da sua coacção sobre críticos ou discordantes. Antes vem da integridade moral e da fortaleza intelectual dos seus crentes. O presidente da república do Níger, Yussufu Mamadu, participou, com a intenção de testemunhar a solidariedade do seu povo com o povo francês, na grande manifestação de 11 de Janeiro em Paris. Infelizmente, desencadeou uma onda de protestos violentíssimos, que atingiram cristãos, no seu país, pelo que se viu obrigado a proferir, a 17, um discurso em que apelava à calma: Peço-vos que continuem o exercício da vossa fé na tolerância, isto é, no respeito da dos outros, tal como peço aos outros que respeitem a nossa fé. E foi precisamente nesse espírito que ordenei a proibição da venda e difusão do semanário Charlie Hebdo. Peço-vos que vos mobilizeis em redor do governo e das forças de defesa e segurança contra o terrorismo que desfigura a nossa religião. Antes de reproduzir algumas das minhas anteriores reflexões, acima referidas, quero formular umas perguntas, sugeridas pelas declarações de Mustafá Akyol e Yussufu Mamadu:

 1 - Será que, num mundo global, onde necessariamente se cruzam e encontram  -  com sérios riscos de afrontamento  -  civilizações e culturas diferentes, com diversas regras de comportamento e divergentes critérios de moralidade e convívio, será que, neste universo em conjuntura incerta, é legítimo, ou simplesmente inteligente, alguém pretender  - quiçá com alguma intolerância  -  que o seu modo próprio de olhar e ver deve ser imposto erga omnes?

 2 - Admitindo que sim, isto é, por exemplo, que o nosso princípio de ilimitada liberdade de expressão é, ou deve ser, universalmente aplicável, sem qualquer restrição nem sequer contenção, será acertado pretender-se que apenas a agressão física é ofensa, e de modo nenhum o assalto verbal, gestual ou gráfico a terceiros? Recordo aqui uma capa da revista de que tanto se fala, em que se apresentam "os três pais de Monsenhor Vingt-Trois, arcebispo de Paris: o Pai Eterno, a ser sodomizado por Cristo coroado de espinhos, por sua vez sodomizado pelo Espírito Santo, este representado como símbolo trinitário"... Liberdade de expressão de uma imagem de pai, ou ofensa? E recordo ainda uma declaração de Jean-Christophe Boudet, "historiador e crítico de banda desenhada", que a imprensa vai por aí divulgando, por ocasião da abertura do Festival de Angoulême: Os desenhos humorísticos do Charlie Hebdo troçam de todos os sistemas e estruturas (Como, aliás, foi televisivamente demonstrado pelo Prof. Marcelo Rebelo de Sousa...). São imagens de imagens e, por isso, incompreensíveis para quem olha para uma imagem apenas como representação. Ora, se assim for, temos de admitir que haja quem não as compreenda, do mesmo modo que temos basicamente exigido que outros tirem admirativamente o chapéu aos produtores de imagens que eles não entendem.

 O que considero gravíssimo, nesta história trágica - que um massacre repugnante trouxe à ribalta - é ,antes e primeiro do que tudo mais, a barbárie do acto terrorista, inadmissível, condenável e punível. Mas ainda, a leviandade política e mediática com que se transformou o assassínio de pessoas humanas (e não esqueçamos os pacíficos judeus que faziam as suas compras...) num simples atentado contra outro maomé que dá pelo conceito de liberdade de expressão. Pessoalmente, penso que a liberdade de expressão tem um limite, sim: o da consciência de cada um, enquanto pessoa responsável, também, pela necessária harmonia do convívio humano. Não temos de estar todos de acordo, muito menos temos de pensar o mesmo; temos de saber aceitar a discordância, e de aprender a rir até da troça que possam fazer de nós... Mas nada nos dispensa de esquecer o nosso umbigo e usarmos de benevolência mútua. Sugiro que meditemos e apliquemos para nós os conselhos que os dois muçulmanos que acima citei deram aos seus irmãos na fé islâmica : não temos de pensar como os outros, nem pretender que pensem como nós, mas o respeito que a nós mesmos devemos passa também pelo respeito dos outros, isto é, quando os desrespeitamos faltamo-nos ao respeito. E aqui ficam três passos das mensagens que anteriormente enviei a amigos:

 Quem me conhece melhor sabe que, tal como não leio, nem sequer na sala de espera do dentista, jornais ou revistas de coscuvilhice social - essas publicações de efemérides das vidas de gente política, principesca, televisível ou jet-sética, também ignoro jornais pretensamente satíricos, sobretudo aqueles que se arrogam o direito de se pronunciarem sobre seja o que ou quem for, pelo simples gosto de gozar os outros, sem qualquer contenção própria, isto é, sem sequer considerarem se podem ser ofensivos de sentimentos ou crenças humanas e legítimas de terceiros, até de alguns cujo desamparo humano e moral, no exílio e na pobreza, talvez nem sequer lhes surja no horizonte engraçadinho e raivoso ... Isto dito  -  e deixando claro que esses não me incomodam nem incomodarão -  não reclamo para eles qualquer castigo nem vindicta. Muito pelo contrário, reconheço-lhes o direito de se exprimirem como melhor entenderem e sobre as questões que escolherem. Mas também me reconheço o direito  de me interrogar - e a eles também, e a outros - sobre se aquilo que dizem, escrevem ou desenham - e que, sinceramente, vezes demais me parece ser desrespeito de outrem, provocação, embirração ou, mesmo, ódio destilado, será um exercício lúcido e construtivo do direito à livre expressão. Na verdade, penso que este é uma grande conquista da nossa cultura, precisamente em razão do reconhecimento da dignidade humana e da igualdade essencial de todos os dialogantes. Assim, a todos e cada um de nós, caberá reflectir, sem preconceito algum, muito menos de superioridade civilizacional, na enorme responsabilidade do exercício dessa liberdade, bem como, neste caso concreto, se a desenfreada propaganda do Charlie Hebdo será o modo melhor de despertarmos , em clima de liberdade e benevolência, o respeito mútuo e o diálogo. Vivemos num tempo em que o umbigo satisfeito não tem o menor direito de recusar a mão estendida para o diálogo.

 

Camilo Martins de Oliveira

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20. EPIFANIAS

 

A palavra religião é plurívoca, lembra-nos realidades diversas, ou diferentes facetas da mesma conformes às perspectiivas por que a olharmos: teológica, filosófica, psicológica, sociológica, política, etc. ... Geralmente, por aí, na linguagem corrente e comum, religião quer dizer um corpo de crenças e ritos mais ou menos definidos, e que são apanágio de comunidades ou igrejas que os confessam ou praticam. Em regra, quanto mais rigorosos forem os respectivos contornos e formulações, e mais normalizadas e sancionáveis as suas práticas, tanto mais conservadoras e exclusivas tenderão a ser as suas instituições. Daí o risco de se cair em proselitismo agressivo ou em sectarismo defensivo, numa qualquer forma de fanatismo inimigo do diálogo e da revisão, num mundo que, todavia, é naturalmente plural. Depois de séculos de recorrentes guerras religiosas, assistimos hoje à epifania de uma nova consciência religiosa  - ou de ser religioso - que acima de tudo valoriza a busca do encontro da pessoa com Deus como o mais íntimo da nossa própria intimidade e, por isso mesmo, como o amor que a todos nos une, porque em todos nós está. Neste sentido, até se poderá dizer que também um ateu é religioso, não porque se desminta, mas porque, sem qualquer referência ao Outro transcendente, também comunga na dignidade igual que habita o íntimo de todos os seres humanos. Recordo agora um passo esclarecedor duma carta do padre Serge de Laugier de Beaurecueil - frade dominicano que viveu, cristão e europeu solitário, 20 anos em Cabul, onde era professor de mística persa na universidade muçulmana, e se desdobrava por várias obras de solidariedade e assistência - a um amigo: No liceu, um professor de patchu, a cuja aula eu assistia na minha qualidade de inspector do ensino, disse-me no fim: «Tudo o que fizeste no liceu é formidável! Vale uma religião inteira. Tu é que és um verdadeiro muçulmano... Aquilo que aqui fazes pelas crianças, também eu pensei nisso, também o queria fazer, mas tu é que nos ensinaste como agir!» Olha, se queres saber, não lhes dei grandes explicações, apenas alguns conselhos pedagógicos. Simplesmente, há sem dúvida uma espécie de amizade, de presença, que eles perceberam. E também o facto de levarmos as crianças ao hospital quando estão doentes, de cuidarmos dos que não têm de comer, de tentarmos facilitar as tarefas dos professores, de lhes darmos métodos pedagógicos que não os irritem mas os ajudem a desenvolver as crianças... Vêem isso e isso então irradia. É contagioso. Há uma espécie de contágio do amor. Sim, é isso. É o contágio do Reino de Deus. No outro dia, às pessoas que vinham ver a minha casa, disse-lhes: «Ides ver a minha capela, mas ficai sabendo que até nem vou lá muitas vezes. Mesmo correndo o risco de chocar-vos, digo-vos: se não tivesse capela poucas coisas mudariam. Vou todos os dias para o liceu como se fosse ao local da Epifania de Deus e, no fundo, talvez o liceu seja, mais do que a minha capela, o meu templo». E disse-lhes ainda: «olhai e vede bem como em todas essas crianças que nos rodeiam, de cada vez que cuido de uma, é Deus que eu vejo, e que encontro. São para mim uma Epifania de Deus. Foram igualmente, para mim, epifanias de Deus a participação de líderes muçulmanos na oração feita pelas vítimas judias do atentado extremista numa mercearia kosher de Paris, como o facto de a mesma empregar um muçulmano (que, aliás, naquela trágica ocasião, salvou vidas), como os encontros e abraços inter-religiosos a que vamos assistindo, como os fados que aquela enfermeira canta, no IPO, aos doentes que trata, para os distrair com a sua linda voz, como tantos gestos quotidianos de solidariedade e conforto que pessoas de todas as confissões religiosas, ou sem alguma, levam aos mais necessitados. Deus é pobre, mas é essa pobreza que desperta e anima este amor tão frágil em cada um e tão forte na união de todos. A glória de Deus irradia nos homens de boa vontade.

 

Camilo Martins de Oliveira

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Papa Francisco
 

19. PRECONCEITO E PLURALIDADE - III
 

Mas se tanto falo na Igreja católica é sobretudo pelo facto de, hoje em dia, ela surgir, com a lucidez franca do seu Papa, como convite à conversão, à saída dos casulos em que estamos teimosamente metidos para o ar mais livre em que poderemos encontrarmo-nos e convivermos. Na verdade, também, e muito, nos deveremos libertar de preconceitos  no que se refere à confrontação com a nossa sociedade, economia e política, que insistimos em perspectivar, analisar e debater, em modos obsoletos, de "esquerdas" ou "direitas" ideológicas, sem nos darmos conta de que, de um como de outro lado, os manifestantes não olham para o porvir, mas se entrincheiram no que, para cada um deles, já foi... Pior ainda: nem se dão conta de que começam a ter de viver noutra circunstância. Imaginemos, por exemplo, o horror que resultaria de um regresso reforçado das nações europeias a preconceitos raciais e religiosos de antanho; ou, simplesmente, observemos os impasses económico e político (até à crise do próprio regime democrático, de que o abstencionismo crescente e a multiplicação de manifestações de rua são sintomas) a que nos conduziu a teimosia preconceituosa de discursos, à "esquerda" como à "direita", de um "marketing" político também já ultrapassado, e de políticas económicas cegas à globalização da nossa circunstância e sensibilidade social, porque obcecadas por teorias, quer de pretensa benevolência omnipotente dos mercados, quer de acumulação imponderada dos chamados direitos adquiridos. Entre os que esquecem ou escondem o flagelo do desemprego, a fuga de jovens e o consequente empobrecimento da sociedade em talentos e iniciativas, a injusta distribuição de rendimentos e o aumento de misérias, e os que reivindicam soluções incomportáveis num sistema que, precisamente, foi configurado por objectivos não humanistas de crescimento económico, de lucros e de salários, quantas propostas vão surgindo para correcção ou substituição do mesmo? A Europa em que hoje vivemos, por exemplo, não é a do sec.XIX, nem a de entre duas guerras, nem a do Plano Marshal ou a da guerra fria... Já não tem colónias, nem responde por impérios e, no seu próprio território, coabitam etnias e tradições diversas, culturas e religiões que dantes estavam lá fora... Para que essa coexistência seja pacífica e justa - e, porque não?, enriquecedora para todos -, teremos de nos interpelar pelos diálogos da nossa pluralidade, cada um fiel à essência da sua cultura própria e à verdade dos seus princípios, mas livre de preconceitos que excluam ou afastem os outros, e antes aberto ao acolhimento enquadrado por novas regras de convívio social. Talvez caiba lembrar aqui que também já passámos pela abolição da escravatura, pela instauração, por fases, do sufrágio universal, pela implantação de repúblicas, pela separação das Igrejas e do Estado, etc., etc. ... E que tudo isso foi permitido pela adopção de regras que os povos julgaram mais justas e adaptadas à descoberta mútua das diferenças e comum da dignidade. O nosso mundo está cada vez mais multipolar e, simultaneamente, mais interligado: por aí vão surgindo movimentos secessionistas, contestatários, transnacionais (basta percorrer o panorama político mundial, da Escócia ao "Podemos", da Catalunha à Jihad, das "primaveras árabes" às migrações de multidões). Mas também se acabou a "guerra fria" e a "pax americana", o chamado triunfo do capitalismo liberal engendrou novas potências e regimes económicos e financeiros muito mais claramente inspirados por objectivos de preponderância do que pelas vantagens da livre concorrência, e o poder da grande finança é cada vez mais incontrolável, ubíquo e determinante. Impõe-se urgentemente, para bem de todos, a necessidade de uma revisão da organização e funcionamento das organizações internacionais, tal como a de uma normalização crescente das normas de direito económico e financeiro, do trabalho, e das relações internacionais. Só a partir de tal esforço de actualização-política e jurídica - das instituições e regimes em que vivemos será possível garantirmos a devida protecção da dignidade e dos direitos das pessoas humanas, todos os dias ofendidos. Mas chego eu assim ao ponto da minha questão: será que  o corajoso esforço da Igreja impulsionada pelo papa Francisco, no sentido de se discutir o preconceito, e de se abrir diálogo e debate com o povo, considerando-o e responsabilizando-o, conseguirá singrar e, também, não ficar só? Ou será que andamos a promover aparências e proteger interesses estabelecidos e medrosos, isto é - e peço desculpa do neologismo - conservâncias? Sempre tive pena dos árbitros do ténis, virando a cabeça para a esquerda e a direita, julgando se a bola caía dentro ou fora das linhas, nunca sonhando com um percurso invisível de vitória... O público estava ali e lá fora, eram múltiplos e enormes os sonhos. Batesse a bola fora ou dentro, batia onde batia, no chão, sempre. E, de modo diferente, sempre também, em cada coração. Não deixemos que desencantos e incertezas nos conduzam ao desespero e à submissão da razão e do direito a algo que não seja racional e justo.

 

Camilo Martins de Oliveira

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João XXIII
 

18. PRECONCEITO E PLURALIDADE - II

 

Os dois últimos concílios católicos - um em cada um dos dois últimos séculos - trataram de modo diferente o "preconceito". O Vaticano I insistiu na reafirmação dogmática de formulações de princípios e juízos de valor, numa atitude de receio e oposição ao modernismo e a um mundo que se ia crescentemente movendo fora dos enquadramentos que antes lhe balizavam o percurso. Repetiu fórmulas, como se elas fossem tão eternas como verdades. O Vaticano II respondeu ao apelo de João XXIII para o aggiornamento, essa abertura do espírito a um mundo plural que desafia a Igreja a pensar e sentir mais em consonância com o palpitar das vidas que a rodeiam. O primeiro pretendia que o mundo regressasse à cerca onde imaginara encerrá-lo, na normalidade assegurada por um comando único, uma língua, as mesmas formulações e ritos, na imobilidade impeditiva de reexames e revisões, na abstracção da pluralidade real das pessoas, grupos e movimentos. O segundo interrogou-se sobre a relação com a diferença como procura da harmonia, como se os homens, com instrumentos, vozes e registos diversos, formassem o coro e orquestra de Deus. Para tanto, olhou para si e seus preconceitos, fez-lhes exame e revisão, lavou-se e arranjou-se para sair e ir ter com os outros. E o papa Francisco não se cansa de chamar a Igreja para o encontro com o mundo plural, e à própria cúria romana lembrou as doenças que  a sectarizam, entre as quais mencionou o bloqueamento mental, a indiferença ao mundo exterior, os círculos fechados, a divinização dos chefes... Vai experimentando, na coragem de todos os dias, aquelas reformas que já Paulo VI vira malogradas pelo poder interno de uma "Cúria" que,  apesar de, e depois, do Vaticano II, ia procurando assegurar o governo da Igreja à imagem e semelhança dos Estados Pontifícios - essa herança de inspiração constantiniana que se foi desfazendo pela própria história, se cindiu com a Reforma e foi reduzida à mínima expressão territorial durante o risorgimento e, finalmente, pelos acordos de Latrão. Talvez descubramos agora a consciência necessária de que o Reino de Deus não é deste mundo enquanto forma fixa ou paradigmática de poderes e instituições : pode revestir-se delas, mas não as pereniza na história, tem outra vocação. O Reino de Deus é profético, está agora e depois, escuta e anuncia, é o clamor da voz dos homens, contra si e consigo mesmos e o Deus connosco até ao cumprimento da história... Nesta perspectiva escatológica, o Reino de Deus vai crescendo em nós e por nós: porque todos somos feitos à imagem divina, somos inerentemente bons, chamados a ser santos como o Pai. São Paulo - que influenciará a teologia de tradição ortodoxa oriental no sentido de não considerar o pecado original, muito menos como estigma transmissível (pecado sendo, então, "apenas" o afastamento da relação com Deus, de que cada um é responsável)  -  é muito claro sobre esse ponto: Nada é impuro em si, todas as coisas são puras (Romanos 14, 14 e 20) ; Tudo o que Deus criou é bom (I Timóteo 4,4) Diferentemente da tese agostiniana do pecado original - e dois séculos antes dela ser formulada e declarada dogma católico no concílio de Cartago (418)  - Santo Ireneu comentava que, em Génesis 3, é a serpente que é maldita, não Adão. Este e Eva apenas são crianças, pelo que muito embora Deus pudesse dar a perfeição ao homem, desde o princípio, o homem teria sido incapaz de a receber logo, porque era ainda criancinha... Não sou, nem por nem contra a ordenação de mulheres: mas desafio a recusa da revisão das normas canónicas que a pretendem negar, como a recusa de uma reflexão sobre os fundamentos teológicos que as suportam; e mais sugiro que abertamente se estudem as análises sérias e bem feitas das origens e progressos da ideologia misógina que, a partir de Fílon de Alexandria, judeu helenístico, influenciou a patrística cristã e determinou a tradição católica de exclusão das mulheres do ministério ordenado... E também pergunto (perguntar não ofende) se fará sentido, para muitos, essa excepção, num tempo do mundo em que mulheres são chefes de Estado e de governo, médicas, militares, polícias, etc.... Não creio que, como por aí se tem dito, a consagração episcopal de mulheres na Igreja Anglicana seja antiecuménica: numa tradição cristã próxima mas exterior à Igreja Católica, ela acontece sem que a comunhão de ambas na fé cristã seja afectada... Se assim não for, mais uma vez estaremos a pôr o secundário acima do essencial. O papa Francisco, em Istambul, pediu ao patriarca ortodoxo Bartolomeu que abençoasse a Igreja de Roma... Eles não são hereges, muito menos infiéis, são cristãos como nós, na sucessão apostólica... Na sua tradição, o celibato dos padres não é exigível, tal como nem sempre o foi na Igreja romana ocidental... É tão preconceituoso, quer defender-se o celibato como a ínclita via da santidade (todos somos chamados a esta), ou como condição indispensável ao exercício de um ministério eclesial, quer, por outro lado, afirmar-se que o voto de castidade é motivo de pedofilia (esta até será mais frequente e secreta em grupos sociais estranhos a estabelecimentos religiosos e, infelizmente, no seio de famílias). Ou ainda, pretender-se que acabar com esse voto ou abrir o sacerdócio a mulheres iria aumentar o número de vocações ministeriais... A questão que se levanta não deve ser tanto a escassez de clérigos, mas bem mais a da decrescência de praticantes e crentes... Aliás, tenho imenso respeito e admiração pelas vidas consagradas, de homens e mulheres que Deus chama a serem, pela pobreza e pela castidade, por via eremítica ou cenobítica, corações proféticos. Mas tais vocações não são necessariamente ministeriais, servem de modos diversos a Igreja. Insistindo-se numa igreja sectária - que, indiferente a dramas familiares, por exemplo, excomunga de facto pessoas divorciadas que refizeram as suas vidas, quando, afinal, noutros casos se reserva o direito de declarar a nulidade de matrimónios que, por vezes, pelos argumentos invocados, nenhum tribunal civil decretaria - será provável que muita gente vá buscar a outra fonte a água da vida...

 

Camilo Martins de Oliveira