Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A «Revista Ocidental» dirigida por Antero de Quental, Jaime Batalha Reis e Oliveira Martins teve uma existência fugaz, de fevereiro a julho de 1875, mas constitui uma referência essencial para a compreensão da chamada Geração de 1870.
VINDO DE SANTA EUFÉMIA Regressado à pátria, vindo das minas de Santa Eufémia, em Espanha, Oliveira Martins vai para o Porto em 1874, para dirigir as obras de construção da linha de caminho-de-ferro do Porto à Póvoa de Varzim, “levantando plantas, traçando perfis, fazendo planos de estações de caminho-de-ferro, estudando pontes, dirigindo e executando trabalhos, tanto de campo como de gabinete, ao lado de dois engenheiros”. Está em contacto estreito com Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, com quem participa ativamente no lançamento em 15 de fevereiro de 1875 da “Revista Ocidental” (com o editor Rovere). Antero avisara um ano antes: “O Batalha lhe escreverá, para lhe comunicar o plano de uma empresa minha e dele, para a qual contamos com a sua coadjuvação. É uma Revista que vamos fundar, cujo projeto o Batalha fica encarregado de compor” (13.4.1873). Havia que continuar o combate social e político, que se exprimira nas Conferências Democráticas e na intervenção política, que deveria assumir uma dimensão ibérica. Importava, por isso, “provocar a reunião de elementos de renascença intelectual da Península e a formação de novas escolas espanhola e portuguesa”. Assim, a nova revista, que teve existência fugaz (de fevereiro a julho de 1875), afirma-se com o objetivo audacioso de suscitar uma reflexão que não se ativesse apenas à dimensão nacional. “Provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas espanhola e portuguesa, é o fim da ‘Revista Ocidental’”. Esta era a justificação constante do programa da nova publicação. E nessa linha, Oliveira Martins escreve de modo eloquente, sob o título de Introdução, o ensaio programático “Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”, a abrir a revista. É um texto entusiástico e militante, com preocupação histórica, que antecipa a História da Civilização Ibérica. Estava em causa a criação de “um campo ao mesmo tempo vasto e livre, onde todos os homens que mais ou menos proeminentemente representam uma face, um lado, um aspeto, do génio peninsular, hão de vir com a pena arar os fundos sulcos da lavoura intelectual; onde todas as opiniões têm uma voz, todas as tendências um lugar, quando entrem no sistema de opiniões e de tendências, que formam o edifício do Progresso neste século”. E assim segundo o autor, só uma revista como a que se fundara, poderia "representar perante a Europa o génio dos povos que habitam a península ibérica, e dos que, filhos dela, foram acampar na América meridional”. Para tanto, haveria que definir o “génio peninsular ibérico”. Seria escrita nas duas línguas peninsulares, o que lhe asseguraria leitura em Espanha e na América do Sul.
O INCIDENTE COMO EÇÃ DE QUEIROZ Antero, em carta a Oliveira Martins, exprime algum ceticismo: “Quanto ao Socialismo, o Batalha mostra-se receoso um pouco, e recomenda-lhe prudência: V. por certo saberá combinar convenientemente as tintas com que escrever. Eu receio muito mais do Padre Amaro (que é Pigault—Lebrun forrado de Flaubert, como V. irá vendo e pasmando) do que do Socialismo mas o Batalha tem ideias fixas, e algumas bem singulares: diz que o Padre Amaro é uma revolução e não sai daqui” (março 1875). Havia, de facto, razões para preocupação, mas diferentes das que Antero julgava. Eça vai, agastado, proibir a continuação da publicação do Padre Amaro na revista, porque o “borrão” não está revisto e não reconhece a Antero qualquer legitimidade para os reparos feitos (“O Antero é o maior crítico da península mas entende tanto de arte – como eu de mecânica” – 26.2.1875). Mas regressemos ao texto programático de Oliveira Martins. Para definir o génio peninsular ibérico, haveria que salientar a importância de um “sentimento de independência”. E o traço elementar orgânico desse génio peninsular seria o heroísmo. Seria este a dar unidade ao sistema de caracteres nacionais dos “povos espanhóis”. E a “invasão árabe” teria sido a maior fortuna histórica da Península, por lhe ter dado a renovação literária, o sentimento do infinito, que vem do deserto, mas também Córdova e Granada, os eirados da Andaluzia, os frutos de mármore da Alhambra, uma arquitetura, e a compreensão de como o heroísmo cristão que “era ainda sanhudo, feroz, infantil” se pôde tornar tolerante. Mas não estava em causa apenas a arte: também havia Averróis, Ibn-Tophail,, Maimonides e Avicebron, árabes e judeus transmitindo a medicina e a álgebra, mas igualmente Afonso, o Sábio a receber os ensinamentos de alquimia. “A França é uma abelha, a Espanha é uma águia. Tem desta o voo largo, a garra firme e a alvura das penas; a alvura, porque é à Itália misteriosa e fatídica que cabem as negras cores, cores terríveis que obumbram a imaginação medonha do etrusco: a águia negra é imperial e italiana”. Eram, pois, indiscutíveis as qualidades peninsulares, que tinham de ser reconhecidas.
AINDA A CIVILIZAÇÃO IBÉRICA Como acontecerá em História da Civilização Ibérica, estamos perante uma crítica severa relativamente à obra de Henry Thomas Buckle, History of Civilization in England (1857-1865), em especial no tocante à “lenda negra” sobre a civilização peninsular. “Negar redondamente a hombridade peninsular, não surpreende num inglês incapaz de a compreender”. Em lugar do fatalismo e paganismo ultramontanos, havia que reconhecer que a religião conservava em Espanha um carácter humano – Santa Teresa humaniza Jesus “nos delírios do seu amor místico” e as Virgens de Murillo ou de Morales “são belas raparigas que brotam com as flores sob o céu azul da Andaluzia, os santos de Ribera são titãs ou prometeus roídos pelo abutre, não profetas ou sibilas como os de Miguel Ângelo”. O heroísmo ativo que gera o amor da liberdade é, assim, uma característica peninsular por contraponto a um qualquer frio estoico. E “à raça hispano-portuguesa coube o papel grandioso de explorar o mundo”, ao invés da construção do génio saxónio. “Os sentimentos produzidos pelos atos livres do homem não têm aplicação para fenómenos coletivos que estão imediatamente no domínio da necessidade que os determina”. Deste modo, para os povos ibéricos não haveria nem motivo para vergonha nem para exultar de orgulho. Importaria, sim, compreender a realidade, comparando, pesando e avaliando, para aprender a lição… Daí o historiador lembrar que o primitivo sistema colonial dos hispano-portugueses se moldava nas tradições antigas. “Uma esquadra conduzia um exército que, depois duma batalha ganha, impunha um tributo e construía uma fortaleza para manter o senhorio e cobrar o tributo. À sombra da fortaleza comerciavam os conquistadores, e aos lucros da guerra, receita do Estado, juntava-se o lucro comercial, receita privada. Este sistema distinguia-se do das colonizações fenícias ou gregas, no facto de os conquistadores prescindirem do domínio público, sem prescindirem do domínio religioso”. Não se tratava de iberismo (Antero insistia também aí), mas da consideração de uma complementaridade necessária de realidades independentes. O génio peninsular ibérico, como marca de “Revista Ocidental”, era, pois, uma exigência cultural, social e política…
O Seminário Internacional “Oliveira Martins e o seu tempo (1845-1894)”, coordenado pelos Professores Hipólito de la Torre, Angeles Lario e Paula Borges teve lugar em Madrid a 24 e 25 de outubro, na Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED).
BIBLIOTECA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Quando Oliveira Martins iniciou, em 1879, a Biblioteca das Ciências Sociais, projeto a um tempo de reflexão histórica e de sentido pedagógico, começou, significativamente por publicar História da Civilização Ibérica, antes da História de Portugal, para marcar com clareza a necessidade de integrar a realidade portuguesa no contexto geográfico e político da Península Ibérica. A Biblioteca pretendia "preencher uma lacuna" e "uma necessidade das mais graves" - a de "generalizar entre as classes médias portuguesas uma ordem de conhecimentos que sem ofensa dos nossos brios se pode dizer ignorarem". Tratava-se de usar termos inteiramente novos e atrativos, sem concessão às "insonsas biografias de reis, de tratados de ontologia bolorenta, de fardos de retórica piegas, de lendas milagreiras e histórias que já são sagradas apenas para os imbecis". Na História da Civilização Ibérica, o autor sustenta que Portugal e Espanha fazem parte de um mesmo corpo, animado por um espírito comum. Na prática, prossegue-se, por caminhos próprios, a reflexão de Antero de Quental na segunda conferência do Casino - sobre as causas da decadência dos povos peninsulares. O individualismo, o jesuitismo e as conquistas seriam as razões de decaimento, que conviria recordar, para que no futuro não se repetissem os erros. A Península Ibérica deveria, assim, agir como um todo, afinando as suas complementaridades no contexto europeu. E a "sociedade portuguesa" constituía uma "molécula" do organismo social "ibérico, peninsular ou espanhol". Contra a tentação hegemónica, o que o escritor defende é que a história peninsular permita compreender que os dois povos precisam um do outro. Aliás, no texto incompleto, publicado postumamente, sobre o Príncipe Perfeito, ao tratar da batalha de Toro, com D. Afonso V pretendente ao trono de Castela, o historiador enfatiza as qualidades de D. João II, que participa brilhantemente na batalha em que seu pai é vencido. Está em causa um pensamento de complementaridade estratégica com o que virá a ser o reinado dos Reis Católicos. Só uma Península coordenada poderia ser cabeça eficaz de um império universal.
QUE CIVILIZAÇÃO IBÉRICA? No Seminário Internacional “Oliveira Martins e o seu tempo (1845-1894)”, coordenado pelos Professores Hipólito de la Torre, Angeles Lario e Paula Borges, que teve lugar em Madrid a 24 e 25 de outubro, na Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED), houve um importante debate sobre a obra do historiador português no contexto da Geração de 1870. Sérgio Campos Matos interrogou-se sobre o significado do conceito de “civilização ibérica” e desenvolveu-o não apenas em termos comparados, mas também sobre o seu significado para a compreensão da realidade peninsular. E o certo é que há uma crítica clara relativamente à obra clássica de Henry Thomas Buckle, History of Civilization in England (1857-1865), em especial quanto à “lenda negra” sobre a civilização peninsular. “Negar redondamente a hombridade peninsular, não surpreende num inglês incapaz de a compreender”. Demarcando-se da ideia de que os povos peninsulares corresponderiam ao paradigma do atraso, Oliveira Martins faz uma análise certeira, abrindo o caminho para a necessidade de aprofundar a capacidade de emancipação de corrente do carácter ibérico – e neste ponto associa o sentido crítico à exigência de uma vontade de liberdade e progresso, prosseguindo a célebre conferência de Antero de Quental. Leia-se, assim, o texto de Oliveira Martins na “Revista Ocidental”, “Os Povos Peninsulares e a Civilização moderna” (1875) que constitui o esboço da obra que abre a Biblioteca das Ciências Sociais. Em traços gerais, há uma clara recusa das simplificações do anacronismo e do patriotismo, na linha de Alexandre Herculano ou de Eça, bem como o enaltecimento do sentimento de independências (hombridade), que se prolonga numa perspetiva universalista (que Jaime Cortesão desenvolverá). Emílio Castelar (1832-1899), Juan Valera (1824-1905), Menendez Pelayo (1856-1912), Angel Ganivet (1865-1898) (mesmo sem citar) e Miguel de Unamuno (1864-1936) revelam a leitura de Oliveira Martins – numa perspetiva de compreender a dualidade política, pressupondo um patriotismo ideal ibérico ou hispânico e um patriotismo real das nações peninsulares. E assim a persistência do historiador português é a de uma aliança prioritária ibérica e não de uma união uniformizadora. Assim, temos como subjacente à História da Civilização Ibérica (HCI) não a ideia de nação étnica, como queria Teófilo Braga, mas de uma nação moral, centrada na vontade, na linha de Alexandre Herculano ou de Antero. Não por acaso, o primeiro livro de Oliveira Martins é Febo Moniz (1867), obra crítica do iberismo político uniformizador, de Sinibaldo de Mas (1809-1868). O conceito integrador, mais rico, assente na consciência moral e no carácter dos povos ibéricos leva-nos ao conceito de civilização ibérica e ao seu sentido crítico e positivo: “A deplorável confusão que se faz da história e da política, levando para a primeira as preocupações da segunda; vendo um tirano em toda a parte onde se encontra um rei, um salteador sempre que se encontra um nobre, um charlatão sempre que se topa com um padre: essa deplorável paixão confunde, baralha tudo e torna impossível a compreensão das coisas” (HCI, I,3). Assim se põe a causa a “tese” de Buckle – afirmando um carácter peninsular baseado em atos voluntários e livres, não explicáveis por simplificações. A civilização ibérica tem uma história e uma evolução – e Oliveira Martins pensa criticamente, mas não aceita um qualquer fatalismo de atraso ou de medo. “Em vez de condenar, expliquemos” (Ibidem).
IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA POLÍTICA Se na compreensão da noção complexa de “civilização ibérica”, designadamente na sua projeção extraeuropeia, temos de entender o autor na sua preocupação de integrar a diversidade e a complexidade, o mesmo devemos fazer quando ao organicismo e ao “cesarismo”. Não devem ser feitas projeções lineares ou tentativas de criar uma história presuntiva – procurando projetar depois da morte de um autor o que teria feito ou pensado se ainda vivesse noutro tempo. Urge compreender e explicar – afirma o historiador. Leia-se, por isso, com atenção a perspetiva orgânica de “As Eleições” (1878), num momento em o autor procurou pensar em coerência com o socialismo que preconizava, do mesmo modo que o “cesarismo” tem de ser visto no âmbito de um pensamento crítico complexo. Não são os textos circunstanciais que explicam essa perspetiva, mas sim a História da República Romana (1885), escrita a pensar na tentativa de salvamento da República, através de uma solução provisória e dúbia, entre a imitação da realeza e o simulacro republicano. E sobre as virtudes do pensamento crítico, Antero fala do ceticismo – “em que tudo tem de se dissolver provisoriamente”. Não devemos, porém, cometer anacronismo na consideração do pensamento político. Como aconteceu, no célebre diálogo com Alexandre Herculano, o velho mestre insiste em que é liberal mas não democrata. E o jovem responde que não pode haver liberdade sem igualdade, nem igualdade sem liberdade. Não falamos, no entanto, da democracia na aceção atual, e recordamos a experiência nas minas de Santa Eufémia em Espanha, lembrada por Eloy Fernandez Clemente, onde descobrimos a relação humana com os operários, a preocupação com as suas condições sociais e económicas e com a educação dos seus filhos. E é aí que se nota, nas diferenças, uma evidente coerência.