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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO

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XXXI.  História longa – Memória rica…

 

Recordando António Alçada Baptista, termino o Folhetim de 2024 com uma dedicatória à língua portuguesa ou ao livro da nossa língua que maior projeção mundial tem. De facto, é uma obra pioneira na literatura mundial. Mais do que um livro de viagens, trata-se de um modo inteiramente novo e original de fazer uma narrativa. Com mil aventuras e mil personagens, estamos diante de uma mudança completa no mundo da literatura.

“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, como antes não existiu, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Se Alonso Quijano, de Cervantes, se rebela contra a personagem de D. Quixote, Fernão Mendes é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza e complexidade do relato. "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus".

Ao ler o sumário e a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Mas sentimos, a cada passo, a força da verdade. A escrita começou logo uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.

É memorável, a título de exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (quem é ele verdadeiramente?), numa situação, em que havia que saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande português, que agora é senhor de Malaca».

Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não fora ele o real protagonista de tudo, mas percebemos que tudo ocorreu de facto. E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!

 

Agostinho de Morais

 

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A VIDA DOS LIVROS

De 12 a 18 de fevereiro de 2024


«Istambul – A História de Três Cidades» de Bettany Hughes (Planeta, 2023) permite-nos compreender como uma cidade que se encontra na fronteira entre o Ocidente e o Oriente pode ajudar-nos a entender a importância do diálogo entre culturas diferentes e complementares.

TRÊS CIDADES APAIXONANTES
Bettany Hughes, historiadora e publicista, venceu em 2018 o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pela Europa Nostra, representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura. O prémio foi-lhe atribuído pelo trabalho que tem realizado em livros e documentários televisivos na defesa e divulgação do Património Cultural europeu e universal. Estava-se no ano europeu dedicado ao tema e a sua atribuição correspondeu à exigência de pôr a tónica na noção abrangente de Património, não como realidade do passado, mas como realidade viva, envolvendo a herança recebida das gerações anteriores, incluindo a criação contemporânea – numa ligação íntima entre património material e imaterial, monumentos e tradições, natureza e paisagem, arte e ciência, considerando a História como realidade de que somos todos protagonistas. Daí a importância do património comum da humanidade, enquanto fator de paz e desenvolvimento, como salienta a Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea. O livro de Bettany Hughes de que falamos (Istambul, A História de Três Cidades, Crítica - Planeta, 2023) data originalmente de 2017 e constitui um notável testemunho sobre a importância de uma urbe de referência, que envolve a história de três cidades, num ponto de encontro único entre o Oriente e o Ocidente. Se nos reportamos ao Mediterrâneo mítico, quando avistamos o Bósforo da cidade de Istambul, lembramo-nos da deslumbrante paisagem do estuário do Tejo, e percebemos que as duas cidades se relacionam numa relação mimética. Não espanta, por isso, que muitos testemunhos recordem como Calouste Gulbenkian, quando vivia em Lisboa, no alto do Monsanto, recordava embevecido, em tardes amenas, a sua terra natal, olhando o estuário do Tejo. Por isso, muitas gravuras de Constantinopla assemelham-na a Lisboa e os clássicos, ao elegerem Ulisses como mítico fundador da cidade, fizeram-no, por certo, a pensar nessa íntima ligação mediterrânica.

 

UMA HISTÓRIA INESGOTÁVEL. - Bizâncio, Constantinopla e Istambul são pontos de ligação entre o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul. Durante os seus mais de oito mil anos de história, estamos perante uma capital de Impérios, o romano, o bizantino e o otomano, onde se estabeleceram fenícios genoveses, venezianos, judeus e vikings. Há um movimento permanente de gente, de comércio, de transportes, de negócios – que constitui uma importante Economia-Mundo que nos leva a compreender a importância da cidade, para além das mil vicissitudes que acompanham a sua história. Quando lemos o retrato de Orhan Pamuk da sua cidade compreendemos bem que qualquer simplificação impede a compreensão das virtualidades desse encontro de culturas e de vontades. Centremo-nos em Santa Sofia – Haghia Sophia. Para Bettany Hughes tudo na cidade se desenrola e desenvolve em torno deste verdadeiro símbolo da humanidade. É um modelo de arte e de audácia. A cúpula dourada apresenta-se como suspensa no ar, representando a gravidade, a graça e a transcendência, servidas por uma construção exemplar que recorre a uma grande heterogeneidade das matérias-primas – tijolos de Rodes, pinturas, mosaicos, pilares, arquitraves, tetos revestidos a prata, mármore vindo de todo o império bizantino. Imagens poderosas representam uma espiritualidade pujante e serena. As memórias de Teodora e Justiniano (século VI) estão bem evidenciadas neste que foi durante cerca de mil anos o maior templo cristão da humanidade. E o fascínio da cidade corresponde à evidente complementaridade entre as diferentes fases históricas que a caracterizaram. Os vestígios bizantinos estão bem presentes no centro histórico, designadamente nas muralhas internas e externas construídas por Teodósio, avultando os complexos sistemas de cisternas subterrâneas para captação e fornecimento de águas. A magnífica Porta Dourada era o terminal da Estrada Romana, e quando hoje visitamos as ruas comerciais do centro histórico, na Sultanahmet, quase não nos apercebermos de que no dédalo complicado de vielas, pisamos o que foi outrora a via usada pelos Imperadores bizantinos nos grandes cerimoniais.

 

SETE COLINAS – COMO ROMA E LISBOA. - A cidade é antiga, plena de recantos e segredos, a que não faltam as Sete Colinas, que unem nas suas raízes a antiga Roma à cidade de Constantino e até a Lisboa. Quando percorremos um compêndio de História sobre a cidade, encontramos mil relatos de batalhas e combates. Não é estranho imaginá-lo, já que hoje mesmo estamos paredes meias com o tremendo conflito ucraniano e a evocação renascida da Guerra da Crimeia. O Bósforo é a fronteira da Europa e da Ásia, mas apenas foi aberto como o conhecemos 5500 anos antes da nossa Era. Foi o resultado de um gigantesco e dramático movimento de águas, que elevou o nível do Mar em cerca de 70 metros… E o certo é que o Bósforo hoje ainda esconde um curso de águas doces. Contudo esta ligação do Mar Negro ao Mediterrâneo encerra um potencial de espanto, de riqueza e de risco para a cidade, já que se permite o acesso da Rússia aos mares quentes do Sul e garante à Turquia a influência no Levante Mediterrânico.

 

Quando Constantino escolheu Bizâncio para sua capital ponderou seriamente as vantagens nas rotas do Oriente, preferindo a cidade do Bósforo à hipótese mítica de regresso ao que teria sido a antiga cidade de Tróia, onde quer que a mesma se tivesse situado verdadeiramente. Em 28 de outubro de 312 a vitória de Constantino sobre Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia abriria caminho a um período novo da história romana. Pouco antes da batalha teria mandado que pintassem nos escudos dos soldados uma cruz, tendo ainda avistado nos céus o milagroso lema “In Hoc Signo Vinces” (também invocado pelo nosso D. Afonso Henriques na mítica batalha de Ourique). Constantinopla seria capital do Império Romano de 330 a 395 e depois do Império Romano do Oriente (395-1204 e 1261-1453) e ainda do Império Latino (1204-1261). Mas foram os efeitos dramáticos da Quarta Cruzada que deixaram uma onda irreversível de destruição em Constantinopla, de que a cidade nunca recuperaria, sobretudo em razão de uma governação frágil e caótica no período do chamado Império Latino. O Império Bizantino seria reduzido à cidade, que se tornou um enclave dentro do Império Otomano, até que o sultão Maomé II tomou Bizâncio após um cerco de cerca de um mês em 1453, tornando-se a cidade capital otomana, em lugar da antiga Adrianópolis (Edirne). E foi o acontecimento de 1204 que contribuiu decisivamente para a destruição de Bizâncio e do Império Romano do Oriente. Bettany Hughes não tem dúvidas, porém, sobre o facto de Istambul ser ainda a capital não oficial da Turquia – “com muita da energia e vibração cosmopolita de que desfrutou ao longo da História”. Eis como o património cultural vivo marca o tempo.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

PORTUGUESES NO JAPÃO

  


Luís Filipe Thomaz apresentou no Museu de Arte Antiga o seu livro Nanban-Jin – Os Portugueses no Japão. A curiosidade está no olhar de muitos. Simbolicamente junto da mesa onde se vai falar do livro, estão reproduzidos dois biombos Nanban do Museu onde se encontram imagens cheias de humor e realismo, nas quais os portugueses, acabados de chegar ao país do sol nascente, são representados de um modo caricatural, com os narizes longos, ora em exercícios rocambolescos, ora em equilíbrios impossíveis, algumas pessoas de cor negra, indumentárias largas e circunspectas, óculos para o sol, um burro, um elefante… Os recém-chegados causam espanto nas atitudes, nos costumes e nas artes de que são capazes. E Luís Filipe Thomaz diz-nos: “os Portugueses de Quinhentos nem eram, como por vezes se tem dito, candidamente admirativos de tudo quanto achavam, por esse mundão de Cristo, como se fossem desprovidos de qualquer escala de valores; nem, como em contrapartida se tem insinuado, etnocêntricos, fechados às demais civilizações e fanaticamente alérgicos, fechados a quanto não fosse cristão. Do Brasil, ainda neolítico, à China de civilização requintada e milenar, passando pela África bárbara e pela Índia mística, foram, aliás, tantos e tão diversos os povos com que lidaram que dificilmente poderiam deles colher uma impressão uniforme. De uma maneira geral, admiraram nas outras gentes os traços que mais os surpreenderam e as qualidades que mais em sintonia lhes pareceram com os seus próprios ideais e valores: no Brasil e na África a simplicidade ingénua dos nativos, na Pérsia a formosura das mulheres na Ásia do Sul e Sueste a piedade dos ascetas búdicos, na China a perfeição da máquina administrativa. Foram sem dúvida os japões o povo que globalmente considerado, lhes mereceu maior admiração”. E, em contrapartida, temos de lembrar, como o faz o prefaciador da obra João Paulo Oliveira e Costa, “no Japão, os portugueses são famosos e queridos porque os seus antepassados foram responsáveis pela descoberta do mundo pelos nipónicos”. E num mundo de pequenas singularidades luso-nipónicas – a introdução da espingarda pelos portugueses resolveu uma longa guerra civil e possibilitou a centralização política, enquanto foram os portugueses que introduziram a religião cristã no país, sob o impulso de S. Francisco Xavier, merecendo destaque a experiência dos cristãos escondidos, exemplo raro de permanência na fé.


O livro inclui duas partes, uma primeira, de Sagres a Tanegaxima, e uma segunda sobre os portugueses no Japão. Na primeira, temos a lenta aproximação de dois extremos, começando pela pré-história da expansão lusitana, juntando os ingredientes da Reconquista e da Cruzada, incluindo os primeiros passos da aventura expansionista, a política ultramarina de pendor mercantilista de D. João II, a dobragem do Cabo, o imperialismo messiânico manuelino, a criação do Estado Português da Índia, a queda de Albuquerque, o governo frouxo de Soares de Albergaria abriram campo  à mercancia, o golpe de 1518 e a nomeação de Diogo Lopes Sequeira ainda deram esperanças ao imperialismo, mas a consideração da China determinou o canto do cisne do imperialismo manuelino, antecipando as mudanças do reinado de D. João III. Estamos, assim, perante um processo complexo e longuíssimo da história da Humanidade, que na expressão do autor não deve ser confundida com a história do colonialismo. De facto, desde o século XVI, o império evoluiu de acordo com os estímulos locais e regionais mais do que por via de um planeamento central. Luís Filipe Tomaz assume um modelo interpretativo moderno de cariz globalizante, assente na complexidade, livre das amarras de quem não se dá conta de que o mundo não se explica apenas por uma visão eurocêntrica baseada na lógica colonialista dos descobrimentos. Um apaixonante modo de compreender a História sem preconceito.   


GOM

ANTOLOGIA

  


LITERATURA E MÚSICA
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro.  Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.


Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, /  vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.


Adeus Princesa!"


A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue

 

FALAMOS MUITO...

  


Falamos muito, e tememo-lo, nós os ocidentais, esse epifenómeno que dá pelo nome de "fundamentalismo islâmico". Para uma cultura da permissividade como prática de vida, é evidente que a cultura do culto da "lei" como norma de vida é incompreensível. Mais: é inaceitável. Isto é: em nome da liberdade de expressão e ação, lançamos um anátema sobre quem pensa que ela não é legítima ou, mais simplesmente, deve ser limitada. Até já se chamou, a este desentendimento, choque de civilizações... Mas também podemos evocar as cruzadas - com o que trouxeram de sofrimento imposto pelos cristãos do ocidente aos de Bizâncio - ou as guerras de religiões cristãs na Europa da reforma, os ódios entre chiitas e sunitas muçulmanos, o holocausto nazi a par do estalinista, as rivalidades entre cristãos além-mar, como as que alimentaram martírios de católicos no Japão dos sécs. XVI-XVII, ou o descalabro das missões jesuítas na América do Sul. Ou ainda as "bruxas de Salém", para não falar desse prenuncio de "técnicas científicas" nazis que foram as medições morfológicas de jesuítas e outros religiosos pela nossa 1ª República... E temos muito mais: Rwanda, Pol Pot no Cambodja, Sudão, Bósnia, eu sei lá! Somos, instintivamente, animais agressivos, quando tememos o outro. Ou quando o queremos comer. Quando nos fechamos no individualismo, de cada um ou do seu grupo, e esquecemos que a racionalidade que nos diferencia necessariamente nos obriga ao exercício crítico que S. Tomás de Aquino dizia ser "diferenciar (distinguir) para compreender." A diferença, ou a consciência dela, não é divisão (e muito menos guerra): é reconhecimento. Parafraseando Paul Claudel, para quem a "connaissance" - o conhecimento - é «nascer com»: o reconhecimento, neste sentido, é renascermos com os outros. Será a procura da harmonia, com a coragem que nos conduzirá ao encontro das raízes comuns a todos, que já o primeiro livro judeo-cristão assinalava dizendo que Deus nos criou, homem e mulher, à sua imagem e semelhança. A todos nós. A divisão, essa entre o bem e o mal, o belo e o feio, cada um de nós a traz em si, como o "visconde cortado ao meio" do Italo Calvino. "L’enfer c’est les autres" dizia Sartre. E assim existencialmente, demasiadas vezes, o entendemos. Mas o próprio sabia que o inferno está em nós e se propaga, como incêndio, na projeção da paixão de nós sobre os outros. "O pecado - escreveu um dominicano francês, Jean Cardonnel - é a paixão dos nossos limites". Os outros, os que não entendemos logo, são um apelo insistente a que sejamos mais firmes e fortes no que somos e mais abertos ao abraço dos outros, que é o que todos poderemos ser num mundo em globalização. Nesse mundo, que tão rapidamente nos cerca, só a fortaleza das nossas raízes nos ajudará a responder à nossa vocação do Outro. O diálogo só é possível com autenticidade. As rendições sempre começaram por traições.

 
Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.12 neste blogue.

A MÚSICA ENTRE MUITAS ROTAS

 

Num texto introdutório a "S. Francisco Xavier - A Rota do Oriente", produzido por Jordi Savall, escreveu Rui Vieira Néry: "Como reagiram todas essas diferentes culturas ao impacto da música ocidental, e como reagiram os músicos peninsulares aos sons desconhecidos das tradições locais? As vihuelas e as guitarras que iam a bordo estabeleceram contacto com outros instrumentos de corda dedilhada como o sarod indiano ou a biwa japonesa. Os tambores europeus encontraram-se com a ampla gama de virtuosísticas percussões africanas e a sofisticada tradição da tabla indiana. A flauta e a flauta doce, que podem ter acompanhado facilmente os marinheiros peninsulares, descobriram a atmosfera poética do shakuhachi japonês." Que resultou daqui?” - continua Néry: "Eis o desafio deste disco: seguir os passos de Francisco Xavier e visitar os diversos mundos musicais que ele atravessou: canto e polifonia sacra, canções e danças populares da Península, o reportório profano cosmopolita dos principais centros urbanos europeus, os sons da música africana, indiana, japonesa e chinesa, assim como o entrelaçamento musical de tudo isso, na base de um diálogo entre músicos de diferentes tradições culturais."


No seu "Tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente da Europa e esta província do Japão", o jesuíta Padre Luís Froes (séc.XVI) considera que a música japonesa "é a mais horrenda que se pode dar", mas também reconhece que "todos os nossos instrumentos lhes são insuaves e desgostosos"... Já o dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu "Tratado das cousas da China" que, publicado em Évora em 1570, é a primeira monografia sobre a China a ser impressa na Europa, escreve: "Os instrumentos que usam para tanger são umas violas como as nossas, ainda que não tão bem feitas, com as suas caravelhas para as temperarem, e há umas de feição de guitarras que são mais pequenas, e outras à feição de viola de arco que são menores. Usam também de doçairias e de rabecas, e de uma maneira de charamelas que quase arremedam as de nosso uso. Usam de uma maneira de cravos que têm muitas cordas de fio de latão; tangem-nos com as unhas que para isso criam; soam muito e fazem mui boa harmonia. Tangem muitas vezes muitos instrumentos juntos concertados em quatro vozes que fazem muito boa consonância." Um século depois da publicação do "Tratado" de Frei Gaspar, um jesuíta português, o Padre Tomás Pereira, era pessoa notável em Pequim, e muito estimado pelo imperador Kangxi. Um jesuíta belga, o Pe. Verbiest, escrevia em 1680: "Construímos um carrilhão numa torre da igreja e noutra colocámos um órgão fabricado com tubos de estanho conforme as regras da música. Todos querem visitá-lo e creio que, no Oriente inteiro, não há um de tamanha grandeza. Estas duas obras de arte, devidas à habilidade e engenho do Pe. Pereira, músico muito habilidoso, são de uma perfeição acabada"... E em 1735, o Pe. Du Halde escrevia: "A facilidade com que, por meio das notas, retemos uma ária logo à primeira audição, surpreendeu o falecido imperador Kangxi. No ano de 1679, mandou que viessem ao seu palácio os Padres Grimaldi e Pereira, para tocarem um órgão e um cravo que outrora lhe tinham oferecido. Saboreou as nossas árias da Europa e pareceu ter gosto nisso. Em seguida mandou que os seus músicos tocassem uma ária da China num dos seus instrumentos, e ele mesmo o tocou com muita graça. O Padre Pereira tomou nota da ária inteira enquanto os músicos a cantavam. Quando terminaram, o Padre repetiu-a sem falhar um tom, e como se há muito já conhecesse. O Imperador ficou muito surpreendido, custou-lhe a crer. Teceu grandes louvores à precisão, à beleza e à facilidade da música da Europa. Admirou sobretudo como o Padre em tão curto tempo aprendera uma ária que tanto lhe havia custado a ele e aos seus músicos..."


Ocorrem-me duas reflexões: A primeira sobre o modo como, em tempos passados, de guerra conquista, ganância e exploração, sempre surgiram os que procuraram transmitir a ciência que tinham e também conhecer a dos outros. Houve, para além do proselitismo religioso, o desejo de dialogar: teriam esses missionários dos séculos XVI e XVII menos razões para crer, apesar da fé inabalável nas verdades da sua própria religião, na superioridade da sua cultura? Não seria, afinal, a vocação de comunicar mais forte do que a aparente necessidade de impor modelos? E, perante as sevícias impostas pelos senhores da guerra e do dinheiro a gentes estranhas, quantos missionários protestaram em defesa do valor divino do humano... A segunda sobre o valor universal e redentor da música: o "Quarteto para o fim do tempo", que Messiaen compôs em 1940 num campo de prisioneiros de guerra, onde foi estreado em instrumentos de fortuna, e que é ainda hoje tocado por violino, clarinete, violoncelo e piano, é um exemplo superior da arte do compositor francês; ou o concerto para a mão esquerda, que Ravel escreveu para o pianista austríaco Wittgenstein que, amputado da mão direita, o tocou em Viena em 1931; ou Lorin Maazel a dirigir a New York Philarmonic na Coreia do Norte; ou o concerto dado em Ramalah pela orquestra Divan, composta por palestinianos e israelitas, dirigida por Daniel Barenboim... Em 1975, José António Abreu, um luso-descendente, jesuíta, famoso professor de música e economia, ensaiou com jovens de bairros da lata da Venezuela, o primeiro concerto de uma nova orquestra, numa garagem abandonada de Caracas. Hoje, 370 mil crianças pobres da Venezuela já aprendem, tocam e ensinam música... Entre elas, já nasceram "estrelas" como a Orquestra Simon Bolivar e o seu maestro Gustavo Dudamel, que atuam nas mais afamadas salas do mundo!


A fechar este passeio por memórias, lembro a minha emoção quando, há 20 anos(?), vivi o silêncio de inúmeros japoneses que, no Suntory Hall, em Tóquio, escutavam Maria João Pires tocar Mozart, ou sinto ainda Carlos Paredes em Nova Iorque e Osaka, Fernando Alvim com Mário Pacheco ou Zina Torre do Valle em Tokyo e Seul. E nunca esquecerei o Coro Gregoriano de Lisboa, com a saudosa maestrina Maria Helena Pires de Matos, em Kobe, no bairro mais devastado pelo terramoto de 1995, e também num cântico pela paz, com monges da ordem Shingon, no mosteiro budista de Tere Dera... Tal como sempre guardarei no coração esse ceguinho desconhecido que tangia uma guitarra, na rua do Salitre, debaixo das janelas das salas de aula do Colégio de Clenardo». 


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 10.08.2012 neste blogue.

O CHINÊS SOLITÁRIO

 

Donde saiu o chinês? Filas deles balançam carris e constroem as grandes linhas férreas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chinês é uma multidão no cinema americano, longa fila apeada que antecede o primeiro comboio.

 

E não é! O chinês no cinema foi o “homem amarelo” de Griffith. David Wark Griffith, pai fundador do cinema, inventou o chinês no cinema, como já tinha inventado o homem negro, que pintou vicioso e insurgente em “The Birth of a Nation”.

 

Em 1919, no lírico “Broken Blossoms” que em português foi um “Lírio Quebrado”, o chinês era a corola opiácea a fechar os braços para proteger de abusos vitorianos a menina branca. A menina era Lilian Gish e Griffith desenhou-a a traços pré-rafaelitas.

 

É numa China a sépia que começa “Broken Blossoms”, uma China idílica, de chás e fumos, China contemplativa e mística. Desse fundo ronronante sai o yellow man que se arroga a missão de levar a mensagem de bondade budista aos bárbaros anglo-saxónicos.

 

Anos mais tarde, ainda não vimos Lilian Gish, reencontramo-lo num bairro sórdido de Londres, encolhido de frio à porta da sua encantada loja dos trezentos. A nuvem de ópio que o cerca ajudará, mas a verdade é que conserva a mesma gentileza nirvânica nesse rosto que Griffith pintou mais amarelo por ser o de Richard Barthelmess, actor branco que era tudo menos chinês.

 

Passaram 18 minutos de filme e da névoa azulada do rio surge Gish. O cinema mudo também tinha paciência de chinês e hão-de passar outros 18 até vermos que o homem amarelo viu Lilian Gish, a menina que não é capaz de sorrir. Ela tem uma boca de pena, uns olhos de medo. Sorri como quem chora e tem razão para isso: o pai é pugilista, bêbedo, mulherengo, e faz dela o saco de socos das suas frustrações.

 

Um dia, quase morta de pancada, foge. O corpo cansado leva-a para a loja do chinês. Nesse primeiro verdadeiro encontro deles há um bailado de olhares que se querem e se recusam. Mil preconceitos na loja dos trezentos.

 

O chinês cobre-a de sedas azuis e amarelas, lírios para os cabelos tristes de Gish. E a mão dela, sozinha, mais tolerante do que a sua tão bela cabeça de teias vitorianas, acaricia a face do homem amarelo. “What makes you so good to me, Chinky?” é o que bem vemos Gish dizer ao seu salvador. E vemos os olhos de Barthelmess, actor branco, a semicerrarem-se para serem mais chineses e gozarem a glória de estar o Oriente a abrir, em Gish, uma pequenina porta de Ocidente.

 

Mas nas ruas dessa deprimida Londres há punhos de rancor e vingança prontos a esmurrar qualquer pretensão de final feliz. “Broken Blossoms”, filme da entrada do Oriente pelas portas do Ocidente, termina em fúria e fria morte: um chinês solitário atravessa o nevoeiro ocidental com um inútil cadáver ao colo. Talvez Griffith fosse um profeta.

 

Manuel S. Fonseca

EM REBUSCA DO JAPÃO VII

   

   A metamorfose de L’homme et son désir em La Femme et son Ombre, de que falam textos anteriores desta Rebusca do Japão, é um interessante exemplo de aculturação, que também nos faculta melhor compreensão da capacidade nipónica de se debruçar sobre outras culturas e lhes abrir os frutos que irá "digerindo" na sua própria cultura. Voltaremos a este e outros temas já oportunamente suscitados, bem como a um olhar mais atento sobre o teatro e a dança no Japão, designadamente o teatro Nô. Mas desta feita, falarei sobretudo das relações culturais e linguísticas dos japoneses com povos ocidentais, nomeadamente o português, referindo-me à abertura ao exterior assinalada pela Restauração Meiji - uma espécie de Iluminismo nipónico oitocentista - e anos seguintes.

 

   Os resquícios da língua portuguesa na fala japonesa atravessaram séculos, mas são poucos e quase irrelevantes: vocábulos próprios ao culto católico, cuja origem lusitana se confunde, aliás, com a latina, esta sendo utilizada na liturgia e na doutrina, e outros designando sobretudo produtos, artigos e bens de consumo trazidos pelo comércio português, entre os quais alguns que fizeram moda no sol Nascente. Para além da religião cristã - aliás forçada à clandestinidade - e de hábitos de vestuário e adornos, que ainda hoje vemos representados nos famosos biombos nambam e em inúmeras pinturas japonesas posteriores à expulsão dos portugueses e cristãos, por terem feito moda, pouco ficou como marca da presença portuguesa no século XVI/XVII, muito embora, por exemplo e para lembrança, se possa falar de receitas de higiene e alimentação, de técnicas de pintura ou de cartografia.

 

   Com o confinamento da presença comercial externa na ilha artificial de Deshima (literalmente "ilha de fora"), em Nagasaki, os únicos parceiros autorizados, além duns chineses, passaram a ser holandeses. E em língua holandesa chegavam notícias e algumas obras de índole científica e técnica, pelo que, aquando da Restauração Meiji, houve grande procura de conhecimento desse idioma, mas logo preterida pela aprendizagem do inglês. língua do comodoro americano Perry (que forçara a abertura dos portos nipónicos) e doutra potência comercial, militar e técnica ocidental na Ásia do tempo, o Reino Unido. O francês foi sendo divulgado pelos missionários católicos gauleses, inicialmente vindos das missões na China, mas tornou-se depois utilizado pelos juristas japoneses que pretendiam montar uma versão nipónica do direito napoleónico e ainda nos meios literários e artísticos, em virtude do prestígio de Paris nessas áreas. A ação de Claudel que viemos relatando inscreve-se nessa perspetiva, ainda no primeiro quartel do século XX. 

 

   Em traços largos, o panorama desenha-se com forte influência: britânica em matéria de administração e pertinentes regulamentos (a circulação pela esquerda, por exemplo), de engenharia, indústria e comércio; francesa no pensamento, quer filosófico, quer jurídico, nas artes e letras; alemã nas ciências naturais e médicas, e na organização militar sobretudo. E o inglês vai-se divulgando como língua franca e de comunicação internacional.

 

   A proeminência britânica ou anglosaxónica explica-se, quer pela crescente presença dos EUA no extremo oriente, quer, já antes, pela importância do próprio Império Britânico naquela zona e na Ásia do sul. Em carta do Japão, datada de 8 de Abril de 1902, escreve Wenceslau de Moraes: O que ultimamente mais tem ocupado o espírito deste bom povo é a aliança anglo-japonesa; festas, discursos elogiosos, largos comentários na imprensa, enfim todas manifestações do orgulho nacional, que neste país é supino, excitado pelo magno acontecimento de vir uma prestigiosíssima nação da Europa dar as mãos ao Japão, para em comum cuidarem dos seus mútuos interesses no Extremo-Oriente, tudo isto tem agitado o teatro de multíplices intrigas e cobiças. É, pois, bem justificável o entusiasmo japonês.

 

   Sobre a lucidez do nosso Cônsul em Hyogo (Kobe e Osaka) aqui voltaremos. Também para melhor entendermos a nossa quase insignificante posição no concerto internacional que então se iniciava no Extremo Asiático... Mas deixem-me traduzir-vos hoje um trecho do Tojin Orai, de Fukuzawa Yukichi (1835-1901), introdução ao seu celebrado Manifesto pela Modernidade, afinal a summa das suas obras completas, trabalho fundamental para o pensamento nipónico da Restauração Meiji, porfiado esforço de recolocação do Japão na cena e no concerto internacional. Diz-nos respeito:

 

   O país que se chama Portugal foi outrora bastante próspero, mas tem-se empobrecido cada vez mais nestes últimos anos, o seu exército apenas conta com vinte ou trinta mil homens, apenas possui quatro navios a vapor, e estão pouco desenvolvidos todos os outros equipamentos. Não se compara à Inglaterra ou à França, é um país fraco, mas como sempre conduziu uma política correta e cultiva relações sinceras com os outros países, sem que tal o prejudique, mesmo se, numa relação de forças, quer a França, quer a Inglaterra acabassem com ele, nada disso acontece. No seio da Europa mantém relações e igualdade com os outros países, sem se deixar distanciar, e além disso até possui um território ultramarino chamado Macau no longínquo continente asiático, e também tem um tratado com o Japão, é um país bastante escutado. Quando pensamos na sua situação, podemos imaginar que tão fraco país independente no seio da Europa seria objeto de cobiça de todos os lados, e ficaria em perigo, mas nenhum país respeitador do direito internacional arriscaria tal intervenção. Se algum deles, tomado de loucura, atacasse Portugal, logo outro surgiria para o salvar. Por exemplo: se a França o atacasse, a Inglaterra viria em seu socorro, se a Rússia lhe declarasse guerra, a França enviaria reforços. Assim, ninguém tenta seja o que for e tal país vive em paz já há uns tempos.

 

Camilo Martins de Oliveira

O CHINÊS QUE NOS FAZ FALTA

 

Falta um chi­nês ao “East of Eden” de Elia Kazan. A Europa sem­pre teve sonhos de Ori­ente e os poe­tas por­tu­gue­ses tam­bém, de Camões a Pes­sa­nha, Wen­ces­lau, o ópio de Pes­soa. Vol­tá­mos agora, paté­ti­cos, a sonhar com o chi­nês que nos falta.

 

Mas, enter­ne­cido com James Dean, Elia Kazan eli­diu o chi­nês do seu “East of Eden”. Não admira que tenha ficado ligei­ra­mente a leste do paraíso. No romance de John Stein­beck, que o filme adap­tou, havia um chi­nês. Lee não é só o cozi­nheiro e fiel secre­tá­rio de Adam Trask, o pai da per­so­na­gem de James Dean. Falando pid­gin, dizendo “amé­lica” em vez de “amé­rica” ou “pol­tu­gal” se no romance tivesse de dizer “por­tu­gal”, Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é o sopro de vida que rea­nima Adam quando a mulher em fuga o deixa à morte. No romance de Stein­beck, o chi­nês Lee é a res­sur­rei­ção e a vida. Sub­til, subli­mi­nar, mas a segura âncora que evita a deriva e o nau­frá­gio do pai de James Dean.

 

Mais do que a impor­tan­tís­sima dis­cri­ção com que marca a trama do romance, Lee cons­ti­tui o seu cen­tro filo­só­fico. Num romance com uma tão forte carga de fata­li­dade, em que os pares de irmãos pare­cem nas­cer só para repe­tir o mito de Caim e Abel, Lee, obs­ti­nado lei­tor do “Gene­sis”, repete-lhes uma pala­vra que é pala­vra de reden­ção, “timshel”.

 

Somos os des­cen­den­tes de Caim, irmão assas­sino do seu irmão. Mas con­vém não esque­cer que no libelo acu­sa­tó­rio do velho Jeová con­tra Caim não res­soam ape­nas os tro­vões da culpa e da expi­a­ção. Esse Deus, que ainda traz nos lar­gos ouvi­dos o cla­mor do san­gue de Abel, parece pro­me­ter ou orde­nar que o assas­sino triunfe sobre o mal. Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é um mineiro da pala­vra. Escava e revela, pri­meiro a Adam, o pai, depois a Caleb, o filho que no filme é James Dean, que Deus nem pro­me­teu, nem orde­nou. Deus diz “timshel” a esse homem que vai ser um fugi­tivo errante sobre a terra. O que quer dizer que ele pode, ou não, triun­far sobre o mal, con­forme queira e saiba a sua humana von­tade. “Timshel” é a pala­vra que, posta nas mãos do homem, lhe con­fere a esta­tura de um deus.

 

Tu podes. James Dean deve­ria no filme, como acon­tece a Caleb no livro, ouvir “tu podes” da boca do seu cozi­nheiro chi­nês. Sabe­ria assim que, desde o “Gene­sis”, nos é con­ce­dido esco­lher e deci­dir. O Caleb que James Dean é no filme de Kazan tortura-se, supondo que her­dou da mãe o mal que o cor­rói, o res­sen­ti­mento con­tra o pai, o ódio ao irmão. A fata­li­dade é a mais velha teo­ria da conspiração.

 

Tam­bém hoje, náu­fra­gos da crise, em pleno olho do fura­cão, somos ten­ta­dos a agarrar-nos ao des­tino, a velhas e novas teo­rias da cons­pi­ra­ção. Como ao James Dean de Kazan, falta-nos o cozi­nheiro chi­nês, exe­geta da Bíblia dos oci­den­tais, para nos vir dizer “tu podes”, devolvendo-nos a res­pon­sa­bi­li­dade da esco­lha que, sendo só humana, nos con­verte nos únicos deu­ses desta terra.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 3 a 9 de dezembro de 2018.

 

A “Suma Oriental” de Tomé Pires (c. 1465-1540) é uma preciosa obra escrita em 1515 a pedido de Afonso de Albuquerque e destinada a ser lida pelo Rei D. Manuel sobre a presença portuguesa na Malásia, no Índico e na Ásia. Merece ser lembrada, a propósito da Exposição do Museu do Oriente sobre “Três Embaixadas Europeias à China” coordenada por Jorge Santos Alves.

 

 

 

AS TRÊS EMBAIXADAS
A Exposição do Museu do Oriente sobre “Três Embaixadas Europeias à China” é um dos repositórios históricos mais importantes no nosso panorama expositivo atual, documentado de modo exemplar – permitindo a compreensão de um relacionamento pioneiro dos portugueses com o Grande Império do Meio. E permito-me destacar o excelente trabalho do Comissário Jorge Santos Alves – bem como a justíssima dedicatória ao Embaixador João de Deus Ramos, diplomata e estudioso, que há pouco nos deixou, e que certamente teria o maior gosto em ver documentados três momentos fundamentais da nossa História. De facto, para quem tenha interesse em conhecer melhor a nossa presença no grande continente asiático, torna-se indispensável ir ao Museu do Oriente – pelo rigor e requinte da exposição aí patente. De que Embaixadas falamos? Da missão papal dirigida por Frei Lourenço de Portugal, embaixador do Papa Inocêncio IV, nomeado em 1245, para ir aos Mongóis e à Ásia, passando pelo próximo e médio Oriente. Infelizmente, não chegou a partir, mas contribuiu decisivamente para a importante Pax Mongólica. Os mongóis tinham chegado a Viena e se é verdade que Genghis Khan morrera em 1227, o certo é que as conquistas dos seus descendentes continuaram, ameaçadoras e imprevisíveis. O que conseguiria essa gente? Havia, pois, que dominar os acontecimentos, prevenindo males maiores. Lembre-se que a partida de Marco Polo só se verificaria em 1271. Contudo, havia na Respublica Christiana a consciência de que haveria que contrariar o expansionismo asiático dos Mongóis. A segunda Embaixada é a de Tomé Pires, em 1517, realizada por esse boticário, quadro administrativo e diplomata – autor célebre da “Suma Oriental” e que se tornaria o primeiro Embaixador de um Estado europeu à dinastia Ming, que governava a China desde 1368. A “Suma Oriental” é uma descrição de tudo o que existia de relevante em política, geoestratégia, religião, antropologia e etnografia. Afonso de Albuquerque enviou essa informação preciosa ao Rei de Portugal. Afinal, Tomé Pires fora enviado para Malaca para fiscalizar os gastos do Erário Público – e por isso vai ocupar-se de um grande inquérito que tem como resultado a “Suma”. Depois é chamado a Goa e informam-no que foi escolhido para formar uma embaixada ao Imperador da China, que leva presentes, como capacetes, espadas, armaduras, mas também coral encarnado… As referências à importância de Malaca e o lançamento de um entendimento duradouro no extremo oriente são elementos fundamentais desse encontro.

 

AQUÉM DAS EXPECTATIVAS
Diz-se muitas vezes que a Embaixada não teve o resultado esperado. Diz-se que teria sido cometido um erro diplomático. D. Manuel trataria o Imperador como seu irmão. Ora, o Imperador da China não tem irmãos, muito menos de um povo distante e bárbaro. O certo, porém, é que a Embaixada de Tomé Pires permitiu uma aproximação entre culturas e contribuiu decisivamente para um melhor conhecimento mútuo. Por fim, falamos da embaixada de Francisco Pacheco de Sampaio, em pleno século XVIII no reinado de D. José, num mundo muito diferente dos dois primeiros, em que a América começa a ser relevante e a África tem de ser referida, nas rotas marítimas para o Índico. Os elementos que encontramos ao longo da exposição são muitas vezes surpreendentes – obrigando a uma visita atenta e circunstanciada. Como disse o saudoso Embaixador João de Deus Ramos no belo catálogo. “Frei Lourenço de Portugal merecia ser melhor conhecido e estudado por ter vivido numa época de profundas convulsões sócio-políticas e por ter estado envolvido em alguns acontecimentos que as determinaram”. O conflito entre o Papa e o Sacro-Império, as tensões entre a Cristandade ocidental e oriental, o fim da dinastia e do califado Abássida em Bagdad – eis o pano de fundo de um momento rico e multifacetado. Apesar de Freio Lourenço de Portugal não ter partido, a verdade é que contribuiu decisivamente para a aproximação em relação à Ásia, e em especial à China. Para Inocêncio IV haveria que compreender as potencialidades de novas culturas e novos povos, para a expansão da mensagem de Cristo.

 

UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA
As peças expostas são todas de grande interesse histórico e documental, permitindo-me referir a célebre carta, nunca antes mostrada ao público, do Imperador da China Quianlong para o Rei D. José e que se encontra na Biblioteca da Ajuda. É de 1763 e está escrita sobre seda amarela com decoração polícroma em três línguas: manchu, chinês e português. A carta diz-nos que o Imperador interpreta o gesto cortês do embaixador do Rei de Portugal como uma prova de que há monarcas em terras distantes desejosos de prestar vassalagem periódica a Imperadores do Centro do Mundo. O Embaixador lera tudo o que havia no arquivo real sobre a China. De facto, a Livraria de Mafra estava muito bem apetrechada nesse domínio. A embaixada era composta por 70 pessoas – e foi recebida pelo Imperador três vezes, o que é absolutamente excecional. O Imperador simpatizou, de facto, com Pacheco de Sampaio e pediu que ficasse mais tempo. A carta de seda amarela é um marco extraordinário. Há ainda outros presentes como tecidos, porcelanas, chás e objetos de laca… É verdade que D. José não teria ficado muito agradado ao ser tratado como vassalo, no entanto, o reconhecimento, nos termos em que ocorreu, significa um ato de respeito, que permitiria desenvolver uma relação pacífica. Em suma a Exposição sobre as três embaixadas é uma oportunidade única, para compreendermos a importância do relacionamento pioneiro de Portugal com o Império do Meio. A História faz-se no contacto com a vida quotidiana e com o espírito de aventura!    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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