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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


LITERATURA E MÚSICA
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro.  Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.


Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, /  vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.


Adeus Princesa!"


A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue

 

FALAMOS MUITO...

  


Falamos muito, e tememo-lo, nós os ocidentais, esse epifenómeno que dá pelo nome de "fundamentalismo islâmico". Para uma cultura da permissividade como prática de vida, é evidente que a cultura do culto da "lei" como norma de vida é incompreensível. Mais: é inaceitável. Isto é: em nome da liberdade de expressão e ação, lançamos um anátema sobre quem pensa que ela não é legítima ou, mais simplesmente, deve ser limitada. Até já se chamou, a este desentendimento, choque de civilizações... Mas também podemos evocar as cruzadas - com o que trouxeram de sofrimento imposto pelos cristãos do ocidente aos de Bizâncio - ou as guerras de religiões cristãs na Europa da reforma, os ódios entre chiitas e sunitas muçulmanos, o holocausto nazi a par do estalinista, as rivalidades entre cristãos além-mar, como as que alimentaram martírios de católicos no Japão dos sécs. XVI-XVII, ou o descalabro das missões jesuítas na América do Sul. Ou ainda as "bruxas de Salém", para não falar desse prenuncio de "técnicas científicas" nazis que foram as medições morfológicas de jesuítas e outros religiosos pela nossa 1ª República... E temos muito mais: Rwanda, Pol Pot no Cambodja, Sudão, Bósnia, eu sei lá! Somos, instintivamente, animais agressivos, quando tememos o outro. Ou quando o queremos comer. Quando nos fechamos no individualismo, de cada um ou do seu grupo, e esquecemos que a racionalidade que nos diferencia necessariamente nos obriga ao exercício crítico que S. Tomás de Aquino dizia ser "diferenciar (distinguir) para compreender." A diferença, ou a consciência dela, não é divisão (e muito menos guerra): é reconhecimento. Parafraseando Paul Claudel, para quem a "connaissance" - o conhecimento - é «nascer com»: o reconhecimento, neste sentido, é renascermos com os outros. Será a procura da harmonia, com a coragem que nos conduzirá ao encontro das raízes comuns a todos, que já o primeiro livro judeo-cristão assinalava dizendo que Deus nos criou, homem e mulher, à sua imagem e semelhança. A todos nós. A divisão, essa entre o bem e o mal, o belo e o feio, cada um de nós a traz em si, como o "visconde cortado ao meio" do Italo Calvino. "L’enfer c’est les autres" dizia Sartre. E assim existencialmente, demasiadas vezes, o entendemos. Mas o próprio sabia que o inferno está em nós e se propaga, como incêndio, na projeção da paixão de nós sobre os outros. "O pecado - escreveu um dominicano francês, Jean Cardonnel - é a paixão dos nossos limites". Os outros, os que não entendemos logo, são um apelo insistente a que sejamos mais firmes e fortes no que somos e mais abertos ao abraço dos outros, que é o que todos poderemos ser num mundo em globalização. Nesse mundo, que tão rapidamente nos cerca, só a fortaleza das nossas raízes nos ajudará a responder à nossa vocação do Outro. O diálogo só é possível com autenticidade. As rendições sempre começaram por traições.

 
Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.12 neste blogue.

A MÚSICA ENTRE MUITAS ROTAS

 

Num texto introdutório a "S. Francisco Xavier - A Rota do Oriente", produzido por Jordi Savall, escreveu Rui Vieira Néry: "Como reagiram todas essas diferentes culturas ao impacto da música ocidental, e como reagiram os músicos peninsulares aos sons desconhecidos das tradições locais? As vihuelas e as guitarras que iam a bordo estabeleceram contacto com outros instrumentos de corda dedilhada como o sarod indiano ou a biwa japonesa. Os tambores europeus encontraram-se com a ampla gama de virtuosísticas percussões africanas e a sofisticada tradição da tabla indiana. A flauta e a flauta doce, que podem ter acompanhado facilmente os marinheiros peninsulares, descobriram a atmosfera poética do shakuhachi japonês." Que resultou daqui?” - continua Néry: "Eis o desafio deste disco: seguir os passos de Francisco Xavier e visitar os diversos mundos musicais que ele atravessou: canto e polifonia sacra, canções e danças populares da Península, o reportório profano cosmopolita dos principais centros urbanos europeus, os sons da música africana, indiana, japonesa e chinesa, assim como o entrelaçamento musical de tudo isso, na base de um diálogo entre músicos de diferentes tradições culturais."


No seu "Tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente da Europa e esta província do Japão", o jesuíta Padre Luís Froes (séc.XVI) considera que a música japonesa "é a mais horrenda que se pode dar", mas também reconhece que "todos os nossos instrumentos lhes são insuaves e desgostosos"... Já o dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu "Tratado das cousas da China" que, publicado em Évora em 1570, é a primeira monografia sobre a China a ser impressa na Europa, escreve: "Os instrumentos que usam para tanger são umas violas como as nossas, ainda que não tão bem feitas, com as suas caravelhas para as temperarem, e há umas de feição de guitarras que são mais pequenas, e outras à feição de viola de arco que são menores. Usam também de doçairias e de rabecas, e de uma maneira de charamelas que quase arremedam as de nosso uso. Usam de uma maneira de cravos que têm muitas cordas de fio de latão; tangem-nos com as unhas que para isso criam; soam muito e fazem mui boa harmonia. Tangem muitas vezes muitos instrumentos juntos concertados em quatro vozes que fazem muito boa consonância." Um século depois da publicação do "Tratado" de Frei Gaspar, um jesuíta português, o Padre Tomás Pereira, era pessoa notável em Pequim, e muito estimado pelo imperador Kangxi. Um jesuíta belga, o Pe. Verbiest, escrevia em 1680: "Construímos um carrilhão numa torre da igreja e noutra colocámos um órgão fabricado com tubos de estanho conforme as regras da música. Todos querem visitá-lo e creio que, no Oriente inteiro, não há um de tamanha grandeza. Estas duas obras de arte, devidas à habilidade e engenho do Pe. Pereira, músico muito habilidoso, são de uma perfeição acabada"... E em 1735, o Pe. Du Halde escrevia: "A facilidade com que, por meio das notas, retemos uma ária logo à primeira audição, surpreendeu o falecido imperador Kangxi. No ano de 1679, mandou que viessem ao seu palácio os Padres Grimaldi e Pereira, para tocarem um órgão e um cravo que outrora lhe tinham oferecido. Saboreou as nossas árias da Europa e pareceu ter gosto nisso. Em seguida mandou que os seus músicos tocassem uma ária da China num dos seus instrumentos, e ele mesmo o tocou com muita graça. O Padre Pereira tomou nota da ária inteira enquanto os músicos a cantavam. Quando terminaram, o Padre repetiu-a sem falhar um tom, e como se há muito já conhecesse. O Imperador ficou muito surpreendido, custou-lhe a crer. Teceu grandes louvores à precisão, à beleza e à facilidade da música da Europa. Admirou sobretudo como o Padre em tão curto tempo aprendera uma ária que tanto lhe havia custado a ele e aos seus músicos..."


Ocorrem-me duas reflexões: A primeira sobre o modo como, em tempos passados, de guerra conquista, ganância e exploração, sempre surgiram os que procuraram transmitir a ciência que tinham e também conhecer a dos outros. Houve, para além do proselitismo religioso, o desejo de dialogar: teriam esses missionários dos séculos XVI e XVII menos razões para crer, apesar da fé inabalável nas verdades da sua própria religião, na superioridade da sua cultura? Não seria, afinal, a vocação de comunicar mais forte do que a aparente necessidade de impor modelos? E, perante as sevícias impostas pelos senhores da guerra e do dinheiro a gentes estranhas, quantos missionários protestaram em defesa do valor divino do humano... A segunda sobre o valor universal e redentor da música: o "Quarteto para o fim do tempo", que Messiaen compôs em 1940 num campo de prisioneiros de guerra, onde foi estreado em instrumentos de fortuna, e que é ainda hoje tocado por violino, clarinete, violoncelo e piano, é um exemplo superior da arte do compositor francês; ou o concerto para a mão esquerda, que Ravel escreveu para o pianista austríaco Wittgenstein que, amputado da mão direita, o tocou em Viena em 1931; ou Lorin Maazel a dirigir a New York Philarmonic na Coreia do Norte; ou o concerto dado em Ramalah pela orquestra Divan, composta por palestinianos e israelitas, dirigida por Daniel Barenboim... Em 1975, José António Abreu, um luso-descendente, jesuíta, famoso professor de música e economia, ensaiou com jovens de bairros da lata da Venezuela, o primeiro concerto de uma nova orquestra, numa garagem abandonada de Caracas. Hoje, 370 mil crianças pobres da Venezuela já aprendem, tocam e ensinam música... Entre elas, já nasceram "estrelas" como a Orquestra Simon Bolivar e o seu maestro Gustavo Dudamel, que atuam nas mais afamadas salas do mundo!


A fechar este passeio por memórias, lembro a minha emoção quando, há 20 anos(?), vivi o silêncio de inúmeros japoneses que, no Suntory Hall, em Tóquio, escutavam Maria João Pires tocar Mozart, ou sinto ainda Carlos Paredes em Nova Iorque e Osaka, Fernando Alvim com Mário Pacheco ou Zina Torre do Valle em Tokyo e Seul. E nunca esquecerei o Coro Gregoriano de Lisboa, com a saudosa maestrina Maria Helena Pires de Matos, em Kobe, no bairro mais devastado pelo terramoto de 1995, e também num cântico pela paz, com monges da ordem Shingon, no mosteiro budista de Tere Dera... Tal como sempre guardarei no coração esse ceguinho desconhecido que tangia uma guitarra, na rua do Salitre, debaixo das janelas das salas de aula do Colégio de Clenardo». 


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 10.08.2012 neste blogue.

O CHINÊS SOLITÁRIO

 

Donde saiu o chinês? Filas deles balançam carris e constroem as grandes linhas férreas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chinês é uma multidão no cinema americano, longa fila apeada que antecede o primeiro comboio.

 

E não é! O chinês no cinema foi o “homem amarelo” de Griffith. David Wark Griffith, pai fundador do cinema, inventou o chinês no cinema, como já tinha inventado o homem negro, que pintou vicioso e insurgente em “The Birth of a Nation”.

 

Em 1919, no lírico “Broken Blossoms” que em português foi um “Lírio Quebrado”, o chinês era a corola opiácea a fechar os braços para proteger de abusos vitorianos a menina branca. A menina era Lilian Gish e Griffith desenhou-a a traços pré-rafaelitas.

 

É numa China a sépia que começa “Broken Blossoms”, uma China idílica, de chás e fumos, China contemplativa e mística. Desse fundo ronronante sai o yellow man que se arroga a missão de levar a mensagem de bondade budista aos bárbaros anglo-saxónicos.

 

Anos mais tarde, ainda não vimos Lilian Gish, reencontramo-lo num bairro sórdido de Londres, encolhido de frio à porta da sua encantada loja dos trezentos. A nuvem de ópio que o cerca ajudará, mas a verdade é que conserva a mesma gentileza nirvânica nesse rosto que Griffith pintou mais amarelo por ser o de Richard Barthelmess, actor branco que era tudo menos chinês.

 

Passaram 18 minutos de filme e da névoa azulada do rio surge Gish. O cinema mudo também tinha paciência de chinês e hão-de passar outros 18 até vermos que o homem amarelo viu Lilian Gish, a menina que não é capaz de sorrir. Ela tem uma boca de pena, uns olhos de medo. Sorri como quem chora e tem razão para isso: o pai é pugilista, bêbedo, mulherengo, e faz dela o saco de socos das suas frustrações.

 

Um dia, quase morta de pancada, foge. O corpo cansado leva-a para a loja do chinês. Nesse primeiro verdadeiro encontro deles há um bailado de olhares que se querem e se recusam. Mil preconceitos na loja dos trezentos.

 

O chinês cobre-a de sedas azuis e amarelas, lírios para os cabelos tristes de Gish. E a mão dela, sozinha, mais tolerante do que a sua tão bela cabeça de teias vitorianas, acaricia a face do homem amarelo. “What makes you so good to me, Chinky?” é o que bem vemos Gish dizer ao seu salvador. E vemos os olhos de Barthelmess, actor branco, a semicerrarem-se para serem mais chineses e gozarem a glória de estar o Oriente a abrir, em Gish, uma pequenina porta de Ocidente.

 

Mas nas ruas dessa deprimida Londres há punhos de rancor e vingança prontos a esmurrar qualquer pretensão de final feliz. “Broken Blossoms”, filme da entrada do Oriente pelas portas do Ocidente, termina em fúria e fria morte: um chinês solitário atravessa o nevoeiro ocidental com um inútil cadáver ao colo. Talvez Griffith fosse um profeta.

 

Manuel S. Fonseca

EM REBUSCA DO JAPÃO VII

   

   A metamorfose de L’homme et son désir em La Femme et son Ombre, de que falam textos anteriores desta Rebusca do Japão, é um interessante exemplo de aculturação, que também nos faculta melhor compreensão da capacidade nipónica de se debruçar sobre outras culturas e lhes abrir os frutos que irá "digerindo" na sua própria cultura. Voltaremos a este e outros temas já oportunamente suscitados, bem como a um olhar mais atento sobre o teatro e a dança no Japão, designadamente o teatro Nô. Mas desta feita, falarei sobretudo das relações culturais e linguísticas dos japoneses com povos ocidentais, nomeadamente o português, referindo-me à abertura ao exterior assinalada pela Restauração Meiji - uma espécie de Iluminismo nipónico oitocentista - e anos seguintes.

 

   Os resquícios da língua portuguesa na fala japonesa atravessaram séculos, mas são poucos e quase irrelevantes: vocábulos próprios ao culto católico, cuja origem lusitana se confunde, aliás, com a latina, esta sendo utilizada na liturgia e na doutrina, e outros designando sobretudo produtos, artigos e bens de consumo trazidos pelo comércio português, entre os quais alguns que fizeram moda no sol Nascente. Para além da religião cristã - aliás forçada à clandestinidade - e de hábitos de vestuário e adornos, que ainda hoje vemos representados nos famosos biombos nambam e em inúmeras pinturas japonesas posteriores à expulsão dos portugueses e cristãos, por terem feito moda, pouco ficou como marca da presença portuguesa no século XVI/XVII, muito embora, por exemplo e para lembrança, se possa falar de receitas de higiene e alimentação, de técnicas de pintura ou de cartografia.

 

   Com o confinamento da presença comercial externa na ilha artificial de Deshima (literalmente "ilha de fora"), em Nagasaki, os únicos parceiros autorizados, além duns chineses, passaram a ser holandeses. E em língua holandesa chegavam notícias e algumas obras de índole científica e técnica, pelo que, aquando da Restauração Meiji, houve grande procura de conhecimento desse idioma, mas logo preterida pela aprendizagem do inglês. língua do comodoro americano Perry (que forçara a abertura dos portos nipónicos) e doutra potência comercial, militar e técnica ocidental na Ásia do tempo, o Reino Unido. O francês foi sendo divulgado pelos missionários católicos gauleses, inicialmente vindos das missões na China, mas tornou-se depois utilizado pelos juristas japoneses que pretendiam montar uma versão nipónica do direito napoleónico e ainda nos meios literários e artísticos, em virtude do prestígio de Paris nessas áreas. A ação de Claudel que viemos relatando inscreve-se nessa perspetiva, ainda no primeiro quartel do século XX. 

 

   Em traços largos, o panorama desenha-se com forte influência: britânica em matéria de administração e pertinentes regulamentos (a circulação pela esquerda, por exemplo), de engenharia, indústria e comércio; francesa no pensamento, quer filosófico, quer jurídico, nas artes e letras; alemã nas ciências naturais e médicas, e na organização militar sobretudo. E o inglês vai-se divulgando como língua franca e de comunicação internacional.

 

   A proeminência britânica ou anglosaxónica explica-se, quer pela crescente presença dos EUA no extremo oriente, quer, já antes, pela importância do próprio Império Britânico naquela zona e na Ásia do sul. Em carta do Japão, datada de 8 de Abril de 1902, escreve Wenceslau de Moraes: O que ultimamente mais tem ocupado o espírito deste bom povo é a aliança anglo-japonesa; festas, discursos elogiosos, largos comentários na imprensa, enfim todas manifestações do orgulho nacional, que neste país é supino, excitado pelo magno acontecimento de vir uma prestigiosíssima nação da Europa dar as mãos ao Japão, para em comum cuidarem dos seus mútuos interesses no Extremo-Oriente, tudo isto tem agitado o teatro de multíplices intrigas e cobiças. É, pois, bem justificável o entusiasmo japonês.

 

   Sobre a lucidez do nosso Cônsul em Hyogo (Kobe e Osaka) aqui voltaremos. Também para melhor entendermos a nossa quase insignificante posição no concerto internacional que então se iniciava no Extremo Asiático... Mas deixem-me traduzir-vos hoje um trecho do Tojin Orai, de Fukuzawa Yukichi (1835-1901), introdução ao seu celebrado Manifesto pela Modernidade, afinal a summa das suas obras completas, trabalho fundamental para o pensamento nipónico da Restauração Meiji, porfiado esforço de recolocação do Japão na cena e no concerto internacional. Diz-nos respeito:

 

   O país que se chama Portugal foi outrora bastante próspero, mas tem-se empobrecido cada vez mais nestes últimos anos, o seu exército apenas conta com vinte ou trinta mil homens, apenas possui quatro navios a vapor, e estão pouco desenvolvidos todos os outros equipamentos. Não se compara à Inglaterra ou à França, é um país fraco, mas como sempre conduziu uma política correta e cultiva relações sinceras com os outros países, sem que tal o prejudique, mesmo se, numa relação de forças, quer a França, quer a Inglaterra acabassem com ele, nada disso acontece. No seio da Europa mantém relações e igualdade com os outros países, sem se deixar distanciar, e além disso até possui um território ultramarino chamado Macau no longínquo continente asiático, e também tem um tratado com o Japão, é um país bastante escutado. Quando pensamos na sua situação, podemos imaginar que tão fraco país independente no seio da Europa seria objeto de cobiça de todos os lados, e ficaria em perigo, mas nenhum país respeitador do direito internacional arriscaria tal intervenção. Se algum deles, tomado de loucura, atacasse Portugal, logo outro surgiria para o salvar. Por exemplo: se a França o atacasse, a Inglaterra viria em seu socorro, se a Rússia lhe declarasse guerra, a França enviaria reforços. Assim, ninguém tenta seja o que for e tal país vive em paz já há uns tempos.

 

Camilo Martins de Oliveira

O CHINÊS QUE NOS FAZ FALTA

 

Falta um chi­nês ao “East of Eden” de Elia Kazan. A Europa sem­pre teve sonhos de Ori­ente e os poe­tas por­tu­gue­ses tam­bém, de Camões a Pes­sa­nha, Wen­ces­lau, o ópio de Pes­soa. Vol­tá­mos agora, paté­ti­cos, a sonhar com o chi­nês que nos falta.

 

Mas, enter­ne­cido com James Dean, Elia Kazan eli­diu o chi­nês do seu “East of Eden”. Não admira que tenha ficado ligei­ra­mente a leste do paraíso. No romance de John Stein­beck, que o filme adap­tou, havia um chi­nês. Lee não é só o cozi­nheiro e fiel secre­tá­rio de Adam Trask, o pai da per­so­na­gem de James Dean. Falando pid­gin, dizendo “amé­lica” em vez de “amé­rica” ou “pol­tu­gal” se no romance tivesse de dizer “por­tu­gal”, Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é o sopro de vida que rea­nima Adam quando a mulher em fuga o deixa à morte. No romance de Stein­beck, o chi­nês Lee é a res­sur­rei­ção e a vida. Sub­til, subli­mi­nar, mas a segura âncora que evita a deriva e o nau­frá­gio do pai de James Dean.

 

Mais do que a impor­tan­tís­sima dis­cri­ção com que marca a trama do romance, Lee cons­ti­tui o seu cen­tro filo­só­fico. Num romance com uma tão forte carga de fata­li­dade, em que os pares de irmãos pare­cem nas­cer só para repe­tir o mito de Caim e Abel, Lee, obs­ti­nado lei­tor do “Gene­sis”, repete-lhes uma pala­vra que é pala­vra de reden­ção, “timshel”.

 

Somos os des­cen­den­tes de Caim, irmão assas­sino do seu irmão. Mas con­vém não esque­cer que no libelo acu­sa­tó­rio do velho Jeová con­tra Caim não res­soam ape­nas os tro­vões da culpa e da expi­a­ção. Esse Deus, que ainda traz nos lar­gos ouvi­dos o cla­mor do san­gue de Abel, parece pro­me­ter ou orde­nar que o assas­sino triunfe sobre o mal. Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é um mineiro da pala­vra. Escava e revela, pri­meiro a Adam, o pai, depois a Caleb, o filho que no filme é James Dean, que Deus nem pro­me­teu, nem orde­nou. Deus diz “timshel” a esse homem que vai ser um fugi­tivo errante sobre a terra. O que quer dizer que ele pode, ou não, triun­far sobre o mal, con­forme queira e saiba a sua humana von­tade. “Timshel” é a pala­vra que, posta nas mãos do homem, lhe con­fere a esta­tura de um deus.

 

Tu podes. James Dean deve­ria no filme, como acon­tece a Caleb no livro, ouvir “tu podes” da boca do seu cozi­nheiro chi­nês. Sabe­ria assim que, desde o “Gene­sis”, nos é con­ce­dido esco­lher e deci­dir. O Caleb que James Dean é no filme de Kazan tortura-se, supondo que her­dou da mãe o mal que o cor­rói, o res­sen­ti­mento con­tra o pai, o ódio ao irmão. A fata­li­dade é a mais velha teo­ria da conspiração.

 

Tam­bém hoje, náu­fra­gos da crise, em pleno olho do fura­cão, somos ten­ta­dos a agarrar-nos ao des­tino, a velhas e novas teo­rias da cons­pi­ra­ção. Como ao James Dean de Kazan, falta-nos o cozi­nheiro chi­nês, exe­geta da Bíblia dos oci­den­tais, para nos vir dizer “tu podes”, devolvendo-nos a res­pon­sa­bi­li­dade da esco­lha que, sendo só humana, nos con­verte nos únicos deu­ses desta terra.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 3 a 9 de dezembro de 2018.

 

A “Suma Oriental” de Tomé Pires (c. 1465-1540) é uma preciosa obra escrita em 1515 a pedido de Afonso de Albuquerque e destinada a ser lida pelo Rei D. Manuel sobre a presença portuguesa na Malásia, no Índico e na Ásia. Merece ser lembrada, a propósito da Exposição do Museu do Oriente sobre “Três Embaixadas Europeias à China” coordenada por Jorge Santos Alves.

 

 

 

AS TRÊS EMBAIXADAS
A Exposição do Museu do Oriente sobre “Três Embaixadas Europeias à China” é um dos repositórios históricos mais importantes no nosso panorama expositivo atual, documentado de modo exemplar – permitindo a compreensão de um relacionamento pioneiro dos portugueses com o Grande Império do Meio. E permito-me destacar o excelente trabalho do Comissário Jorge Santos Alves – bem como a justíssima dedicatória ao Embaixador João de Deus Ramos, diplomata e estudioso, que há pouco nos deixou, e que certamente teria o maior gosto em ver documentados três momentos fundamentais da nossa História. De facto, para quem tenha interesse em conhecer melhor a nossa presença no grande continente asiático, torna-se indispensável ir ao Museu do Oriente – pelo rigor e requinte da exposição aí patente. De que Embaixadas falamos? Da missão papal dirigida por Frei Lourenço de Portugal, embaixador do Papa Inocêncio IV, nomeado em 1245, para ir aos Mongóis e à Ásia, passando pelo próximo e médio Oriente. Infelizmente, não chegou a partir, mas contribuiu decisivamente para a importante Pax Mongólica. Os mongóis tinham chegado a Viena e se é verdade que Genghis Khan morrera em 1227, o certo é que as conquistas dos seus descendentes continuaram, ameaçadoras e imprevisíveis. O que conseguiria essa gente? Havia, pois, que dominar os acontecimentos, prevenindo males maiores. Lembre-se que a partida de Marco Polo só se verificaria em 1271. Contudo, havia na Respublica Christiana a consciência de que haveria que contrariar o expansionismo asiático dos Mongóis. A segunda Embaixada é a de Tomé Pires, em 1517, realizada por esse boticário, quadro administrativo e diplomata – autor célebre da “Suma Oriental” e que se tornaria o primeiro Embaixador de um Estado europeu à dinastia Ming, que governava a China desde 1368. A “Suma Oriental” é uma descrição de tudo o que existia de relevante em política, geoestratégia, religião, antropologia e etnografia. Afonso de Albuquerque enviou essa informação preciosa ao Rei de Portugal. Afinal, Tomé Pires fora enviado para Malaca para fiscalizar os gastos do Erário Público – e por isso vai ocupar-se de um grande inquérito que tem como resultado a “Suma”. Depois é chamado a Goa e informam-no que foi escolhido para formar uma embaixada ao Imperador da China, que leva presentes, como capacetes, espadas, armaduras, mas também coral encarnado… As referências à importância de Malaca e o lançamento de um entendimento duradouro no extremo oriente são elementos fundamentais desse encontro.

 

AQUÉM DAS EXPECTATIVAS
Diz-se muitas vezes que a Embaixada não teve o resultado esperado. Diz-se que teria sido cometido um erro diplomático. D. Manuel trataria o Imperador como seu irmão. Ora, o Imperador da China não tem irmãos, muito menos de um povo distante e bárbaro. O certo, porém, é que a Embaixada de Tomé Pires permitiu uma aproximação entre culturas e contribuiu decisivamente para um melhor conhecimento mútuo. Por fim, falamos da embaixada de Francisco Pacheco de Sampaio, em pleno século XVIII no reinado de D. José, num mundo muito diferente dos dois primeiros, em que a América começa a ser relevante e a África tem de ser referida, nas rotas marítimas para o Índico. Os elementos que encontramos ao longo da exposição são muitas vezes surpreendentes – obrigando a uma visita atenta e circunstanciada. Como disse o saudoso Embaixador João de Deus Ramos no belo catálogo. “Frei Lourenço de Portugal merecia ser melhor conhecido e estudado por ter vivido numa época de profundas convulsões sócio-políticas e por ter estado envolvido em alguns acontecimentos que as determinaram”. O conflito entre o Papa e o Sacro-Império, as tensões entre a Cristandade ocidental e oriental, o fim da dinastia e do califado Abássida em Bagdad – eis o pano de fundo de um momento rico e multifacetado. Apesar de Freio Lourenço de Portugal não ter partido, a verdade é que contribuiu decisivamente para a aproximação em relação à Ásia, e em especial à China. Para Inocêncio IV haveria que compreender as potencialidades de novas culturas e novos povos, para a expansão da mensagem de Cristo.

 

UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA
As peças expostas são todas de grande interesse histórico e documental, permitindo-me referir a célebre carta, nunca antes mostrada ao público, do Imperador da China Quianlong para o Rei D. José e que se encontra na Biblioteca da Ajuda. É de 1763 e está escrita sobre seda amarela com decoração polícroma em três línguas: manchu, chinês e português. A carta diz-nos que o Imperador interpreta o gesto cortês do embaixador do Rei de Portugal como uma prova de que há monarcas em terras distantes desejosos de prestar vassalagem periódica a Imperadores do Centro do Mundo. O Embaixador lera tudo o que havia no arquivo real sobre a China. De facto, a Livraria de Mafra estava muito bem apetrechada nesse domínio. A embaixada era composta por 70 pessoas – e foi recebida pelo Imperador três vezes, o que é absolutamente excecional. O Imperador simpatizou, de facto, com Pacheco de Sampaio e pediu que ficasse mais tempo. A carta de seda amarela é um marco extraordinário. Há ainda outros presentes como tecidos, porcelanas, chás e objetos de laca… É verdade que D. José não teria ficado muito agradado ao ser tratado como vassalo, no entanto, o reconhecimento, nos termos em que ocorreu, significa um ato de respeito, que permitiria desenvolver uma relação pacífica. Em suma a Exposição sobre as três embaixadas é uma oportunidade única, para compreendermos a importância do relacionamento pioneiro de Portugal com o Império do Meio. A História faz-se no contacto com a vida quotidiana e com o espírito de aventura!    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Começo esta, reproduzindo dois versos de Angelus Silesius, citados e traduzidos noutra carta:

 

              Sem querer saber de si

              nem vontade de ser vista

 

   O que, afinal, aí fica dito é, segundo François Cheng, que o porquê de uma rosa sendo ser plenamente uma rosa, o instante da sua plenitude de ser coincide com o próprio Ser. Dito de outro modo: o desejo da beleza absorve-se na beleza e esta já não tem que se justificar. E, agora, com o poeta-filósofo sino-francês recordo o que ele disse das três aceções da palavra sentido: sensação, direção, significado, aqui pela rosa enumeradas como sendo três estados essenciais do Ser. Mas presta atenção, Princesa: a sensação não poderá limitar-se ao seu nível sensorial, e a beleza é mesmo essa potencialidade e essa virtualidade para que tende qualquer ser. Eis que, quase inevitavelmente ainda, deslizamos da palavra portuguesa «sentido» (du mot français «sens», no texto original de Cheng) para um caracter chinês que lhe é equivalente, talvez mais rico, o caracter yi.

 

   Vou falar-te muito dele, levar-nos-á longe -  esmo até à tianxiá - só tenho pena de não poder (saber) reproduzi-lo, para ti, na escrita deste computador, pois tal nos ajudaria a acertar o passo com um discurso bem chinês. Confio, contudo, a François Cheng, a explicação do respetivo desenho (13 traços) ou significado, cada caracter sínico sendo, não uma letra, nem necessariamente uma palavra, mas, sim, a representação gráfica da formação de um conceito:

 

   Basicamente, o ideograma yi designa o que vem da profundeza de um ser, o impulso, o desejo, a intenção, a inclinação; o conjunto desses sentidos pode ser aproximadamente englobado pela ideia de «intencionalidade». Combinado com outros caracteres, dá uma série de palavras compostas e de variados sentidos, mas tendo entre elas laços orgânicos: grosso modo, podemos arrumá-las em duas categorias. A das que relevam do espírito: ideia, consciência, desígnio, vontade, orientação, significação. E a das que pertencem à alma: encanto, saber, desejo, sentimento, aspiração, impulso do coração. Finalmente, a encimá-las todas, a expressão yi-jing, «estado superior do espírito, dimensão suprema da alma».

 

   Essa noção, yi-jing, deve ser sublinhada. Tornou-se, para os chineses, no critério mais importante para ajuizar o valor duma obra poética ou pictórica. Pela sua definição, vemos que ela se atém tanto ao espírito como à alma. Quer aos do artista que cria a obra, mas igualmente aos do universo vivo, um universo que se faz, que se cria, que a língua designa por Zao-wu, «Criação», ou ainda Zao-wu-zhe, «Criador». Dum modo geral, diz-se muitas vezes que o pensamento chinês não teve a ideia da «Criação», no sentido bíblico do termo. É verdade que esse pensamento não foi assombrado pela ideia dum Deus pessoal; mas em contrapartida tem eminentemente o sentido da proveniência e da geração, como atestam as afirmações de Laozi: «O que há provém do que não há»; «O Tao original gera o Um, o Um gera o Dois, o Dois gera o Três, o Três gera os Dez mil seres». [Terá sido ao Taoísmo que o António Victorino d´Almeida foi buscar aquela, bem achada, do nascimento da música? «O dó conheceu o ré, e simpatizaram; dessa simpatia nasceu o mi, e assim se fez música»... Ele tinha graça, a explicar isto ao piano!]

 

   Ora a escrita sínica e o seu pensamento desenvolve-se precisamente por processo de encontro e geração. Procurando não te dar sono nem, menos ainda!, aborrecimento, explicarei o que quero dizer através da génese e constituição de um caracter chinês. Antes, e a título de apontamento sugestivo, lembro-te de que, quando se aprende a caligrafar tais caracteres, se começa pelos primeiros: um traço horizontal para escrever um, outro horizontal abaixo dele e ambos nos dizem dois, e o terceiro, debaixo desses vem anunciar três. E se evocarmos o Tao original, perceberemos o modo linear e simplíssimo como se inicia a ordem do universo todo, já que do três se parte para a geração dos Dez mil seres. Leio nos Sinais Celestes (Tianwen) do Huainan zi, uma "Summa" taoista com mais de dois mil anos: O Dao começou pelo Um. O Um não engendrou, mas, dividindo-se gerou o yin e o yang. O yin e o yang uniram-se harmoniosamente e assim foram engendrados os dez mil seres. Por isso dizemos: Um engendrou dois, dois engendrou três, três engendrou os dez mil seres. [[Dita assim, ou assim traduzida, como faz François Cheng na citação acima, esta última frase reproduz a de Laodan ou Laozi no Daode jing (século IV a.C.)]] O um representa assim a unidade primordial, e é o primeiro radical de todos os outros caracteres. Nesta função, se for traçado no topo de um composto, por exemplo, sobre os três traços que dizem homem, tal nova composição significará o céu, tian, isto é, o espaço infinito que está acima do ser humano, que é a mais alta das criaturas, e o governa. Mas se for traçado por baixo do caracter que designa o dia, ou o sol, irá compor o ideograma que diz madrugada, o princípio do dia... Espero ter conseguido dar-te uma ideia aproximada da formação de um discurso de perceção e representação, pegando num caracter primitivo e acenando o seu papel de radical, embora não entrando por qualquer possível (e real) função fonética.

 

   Nota bem que os caracteres sínicos existentes são aos milhares, o aumento do seu número, aliás, tendo acontecido por impulso ou necessidade de expressão... Só as autoridades e as escolas, afinal, foram impondo limitações canónicas. Indo a regras de facto, desde 1716 (dicionário de Kang-hsi), contam-se 40 mil caracteres, dos quais 4 mil são de uso corrente, 2 mil para nomes próprios ou raros, e 34 mil sem utilidade. E, se a arte da caligrafia pode permitir liberdades de estilo, há regras obrigatórias, tal como as que ordenam a sequência e a direção de cada traço : de cima para baixo; da esquerda para a direita; quando um vertical e um horizontal se cruzam, este risca-se primeiro, embora haja exceções; três verticais na mesma linha traçam-se ao centro, logo à esquerda, depois à direita; mas o traço que corte um central é o último; e os diagonais da direita para a esquerda (a partir de cima) precedem os da esquerda para a direita. Estas foram as regras que primeiro aprendi, tentando entender um método de ligação do pensarsentir com a mão que desenha e a representação traçada. Neste instante, conversando contigo, Princesa, olho para o caracter yi - que François Cheng diz designar o que vem da profundeza de um ser, impulso, desejo, intenção, inclinação, podendo o conjunto destes sentidos ser aproximada e globalmente definido pela ideia de «intencionalidade» - e nele encontro três caracteresjá meus conhecidosque o compõem : em cima está, como leio pelo meu dicionário japonês de 1850 kanji essenciais, ritsu (5 traços), que quer dizer levantar, erguer, estar de pé ; no centro, nichi, jitsu ou hi (4 traços), isto é, o dia, o sol; em baixo, shin (4 traços), a dizer espírito, coração, mente. Posso assim sentir que yi designa a ascensão ou o erguer do espírito esclarecido, iluminado. Ou, seguindo a ideia de «intencionalidade», pensá-lo como esse íntimo impulso do espírito humano com destino às coisas superiores, algo quase como essa definição do grego Plotino (270aC): A inteligência é o pensamento que se desvia das coisas inferiores, para elevar a alma ao que é superior.

 

   A escrita chinesa é só ideográfica, nem sequer dispõe de silabários fonéticos, como os hiragana katakana com que o japonês socorre as próprias carências, visto que os kanji (caracteres chineses, com que começou a ser escrito) não o traduziam totalmente enquanto língua falada, que já era. De facto, o chinês falado ou, se assim preferires, Princesa, o chinês fonético vive em diversos dialetos, dos quais são mais conhecidos o mandarim e o cantonês, sendo o primeiro praticado nas escolas, com o objetivo de normalizar uma fonética oficial que também cimente a união de vastíssimo e populosíssimo império. O chinês escrito, ou literário, é como que uma língua à parte, só se escreve e lê, por isso tem uma autonomia que lhe permite ser utilizado por várias línguas e dialetos.

 

   Cada sinal, ou caracter, é uma palavra, um ideograma traduzindo um conceito linguístico. Durante a escolaridade elementar, as crianças já devem memorizar centenas de caracteres e, no decurso das suas vidas, os chineses (e, noutra medida, os japoneses) irão estudando e aprendendo, pelo menos, mais um ou dois milhares. Ser letrado, na cultura sínica, mais do que erudito, é ser sempre aprendiz. Assim podemos afirmar que a consciência de devir inspira e informa o ser chinês, o yi é isso mesmo, como vimos, o yi-jing sendo o estado superior da alma. Conto-te tudo isto, Princesa de mim, para pensarsentires como o "aprender a ler e a escrever" é, no caso do Império do Meio, simultaneamente a construção de um caminho e de uma identidade em que as pessoas e a nação estão intimamente ligadas pela inspiração e pela formação.

 

   Não sou antropólogo nem linguista, e tenho mais curiosidade e apreço pelas culturas do Extremo Oriente - sobretudo numa época em que ressurge e se vai afirmando, já não como império recluso cuja capital é cidade interdita, mas no concerto internacional, uma China gigantesca, progressista e aberta ao mundo todo - do que conhecimento profundo delas. Mas gosto de ir aprendendo e partilhando contigo, Princesa. Pouco mais posso ou sei fazer, na minha idade. Não te ensino nada. Apenas partilho contigo, repito, a minha própria aprendizagem, com os seus-meus erros e percalços, mas também com os horizontes que se me abrem ao olhar da alma e me ajudam a ver e rever o mundo.

 

   Podia ter-te falado do Um, não só como imagem do Todo inicial, do Dao que não é a causa primeira em sentido aristotélico, nem o Deus pessoal e criador das três religiões monoteístas, o Deus de Abraão, mas do sem forma definida, cuja natureza é dada a tudo o que existe, que é o Céu e o conhecimento perfeito, o onde habita o homem verdadeiro, qua aí tem o coração ligado, e onde serão reconduzidas todas as dez mil diferenças. O Yuandao, ou Dao original, diz-nos, logo no começo, o Huainan zi, o Dao ...

               

cobre o Céu e carrega a Terra.
Estende-se pelas quatro direções e abre-se até às oito extremidades.
A sua altura é inacessível, insondável a sua profundeza; abraça o Céu e a Terra e, do
sem forma, faz advir os seres.
Nascente jorrando do côncavo, a pouco e pouco tudo enche; fluxo lamacento e turvo, a pouco e pouco se aclara. 
Erguido, enche o espaço entre o Céu e a Terra, vertido cobre os quatro mares.
Posto a laborar, nunca se esgota, nem conhece aurora nem crepúsculo.

 

Desenrolado, envolve as seis conjunções do mundo, enrolado nem chega a encher a cova da mão.
Concentrado, pode desdobrar-se; obscuro, pode brilhar; fraco, pode ser vigoroso; flexível, pode ser rígido.
Estende as quatro amarras e contém o yin e o yang; coordena o espaço-tempo e faz luzir as três luminárias. 

 

Ora lamacento e lodoso, ora fino e subtil! 
Por ele se elevam as montanhas, e os abismos se cavam,
os quadrúpedes correm e as aves voam,
brilham o sol e a lua,
seguem sua rota planetas e estrelas,
pulam os licórnios e planam as fénixes.

 

   Traduzo-te este poema inicial do Huainan zi, da versão francesa de Charles Le Blanc, publicada na Bibliothèque de la Pléiade (Gallimard, Paris, 2003). Em cartas por seguir te envio outras traduções de trechos desse, tão belo como antigo, texto poético e místico do Império do Meio.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   A filosofia, etimologicamente significando amor ou amizade da sabedoria ou, se quiseres, a persistência na busca do entendimento, vai tendo, ao longo dos percursos humanos na cultura do espírito, duas faces unas e distintas: por um lado, a sabedoria é o conhecimento, por outro será o juízo prudente. Assim, é savoir e é sagesse, mesmo em português poderemos falar em sabedoria e sageza, esta palavra tendo há muito sido autorizada pelo cronista medievo Fernão Lopes. Como conhecimento, o que inquirimos e aprendemos é sempre filosofia, mas esta finalmente se constrói refletindo sobre aquela aquisição. Aí, já se vai tornando juízo, cuja prudência avalia, sistematiza e nos dispõe. E a partir daí lá se vai formando, pela cultura do espírito, algo que intimamente sempre nos acompanha, e a que muitas vezes também chamamos filosofia: a nossa weltanschaung ou visão do mundo, o nosso modo de olhar os seres e as suas relações.

 

   Os iluminados europeus do século XVII/XVIII, os filósofos das Luzes, descobriram o pensamento em modo chinês pelos relatos que lhes iam chegando da missão jesuíta em Pequim, e assim se tornou Confúcio um deles, penso eu, Princesa, que por sobretudo se tratar de uma reflexão moral à margem dos ditames de qualquer igreja ou religião. Ainda hoje, por aí, se fala de Confúcio como sage. Curiosamente, como muito bem entendeu Anne Cheng no seu Les tribulations de la "philosophie chinoise" en Chine, (in La pensée en Chine aujourd´hui, Folio Essais, Gallimard, Paris, 2007), o novo género de «histórias da filosofia» que proliferam na Alemanha e em França na orla do século XIX tende, pelo contrário, a delimitar o território da filosofia como propriamente europeu, rejeitando para um lá fora não filosófico tudo o que não releve da herança grega e cristã, em nome de uma nova definição da filosofia caracterizada como ciência e não já como reflexão moral.

 

   Antes de retomar uma extensa e esclarecedora citação da filha de François Cheng (do qual já muito te falei noutras cartas), deixa-me, Princesa de mim, recordar-te passos das minhas memórias do Japão, que há muito tempo já também te referi. A autorreclusão do Império do Sol Nascente, durante os 250 anos do shogunato Tokugawa termina oficialmente em 1867, sob a pressão americana do comodoro Perry, e afirma-se pela restauração do poder imperial efetivo conhecida pela designação do próprio imperador: Meiji. A partir daí, o Japão torna-se no pioneiro da modernização ocidentalizada do Extremo Oriente, muito voluntarista, procurando importar tudo o que de melhor se produzia na Europa e nos EUA, desde o direito à organização política, administrativa, e militar, do armamento aos caminhos de ferro e equipamentos públicos, da filosofia a todas as formas da atividade científica, literária e artística, incluindo, é claro, o ensino universitário. Naturalmente, a primeira tradução do conceito filosofia em caracteres chineses surge em japonês: tetsu gaku, que posso traduzir, literalmente, por estudo (gaku) da sabedoria. Deve-se a um intelectual importante da era Meiji, Nishi Amane, introdutor do positivismo de Comte na escola japonesa, que pela primeira vez o usa em 1874. De acordo com Anne Cheng, só 23 anos mais tarde, a palavra será usada na China, escrita com os mesmos kanji, ou caracteres sínicos, mas pronunciando-se zhexue, num relatório sobre o Japão publicado em 1897 por Huang Zungxian, em que se decreve a organização da universidade imperial de Tokyo, fundada em 1877, no espírito Meiji, e composta de três grandes faculdades: direito, física e literatura, desta dependendo um departamento de «filosofia». Volto então àquela citação de Anne Cheng:

 

   É à ideia hegeliana de que «não há filosofia chinesa» (entretanto ainda vivaz no "establishment" filosófico europeu, designadamente em França) que a modernidade chinesa procurou responder. Entre as Guerras do Ópio dos anos 1860 e a Revolução Cultural dos anos 1960, decorreu um século pautado por acontecimentos mais ou menos traumatizantes : 1895 (grande derrota das tropas imperiais face ao Japão); 1898 (os «Cem Dias», em que se tentou a primeira reforma das instituições imperiais, que resultou em lamentável fiasco); 1911 (descalabro definitivo da dinastia manchu e, com ela, do regime imperial que durara dois milénios, seguida da instauração da República em 1912); 1919 (movimento iconoclasta de 4 de Maio); 1949 (instauração da República Popular da China, após mais de uma década de conflitos armados: guerra de resistência à ocupação japonesa, guerra civil entre nacionalistas e comunistas). Nas nossas referências a esse «século das revoluções», que também poderíamos chamar século das tentativas de modernidade, devemos ter presente um feixe de fatores que vão desde a influência das ideias ocidentais aos esforços de mobilização de recursos tradicionais, à mutação do letrado tradicional em intelectual moderno, à instalação de novas estruturas educacionais, tais como universidades de modelo ocidental, sem esquecer o papel da mediação japonesa. Seremos pois levados a insistir no papel complexo desempenhado, durante este período, pelo Japão, simultaneamente modelo e repulsa para a China, percebido quer como potência colonizadora a exemplo do Ocidente, quer como aliado contra este.

 

   As raízes chinesas (e, aliás, sino-coreanas) da escrita, do budismo e de muitos aspetos da cultura e tecnologia nipónicas, além da própria configuração política da instituição imperial japonesa foram abordadas no meu Fomos em Busca do Japão (VERBO/BABEL, Lisboa, 2016) e outros escritos, designadamente publicados no blogue do CNC. Em finais do século XIX, e tempos seguintes, verificam-se movimentos de influência em sentido inverso, ainda que penalizados pela amargura e ofensa impostas pela agressão nipónica à China, o Império do Meio, (de que até Le Lotus Bleu, aventura do Tintin, traça um retrato arguto e sentido) e a colonização da Coreia pelo Japão, na primeira metade do século XX. Três povos com muitas parecenças e algumas afinidades e pertencentes a três famílias linguísticas distintas, ainda que todos três se sirvam todavia, total, quase ou parcialmente (o coreano apenas para nomes, visto dispor de escrita própria desde o século XVI, o japonês acrescentando dois silabários fonéticos derivados) de caracteres chineses. Quanto à expressão tetsu gaku, criada no Japão com caracteres sínicos e, nestes sendo depois incorporada na língua chinesa, deixa-me acrescentar outra curiosidade: foi na universidade de Tokyo que se começou a ensinar «filosofia chinesa» e, pela primeira vez, em 1900, se depara com o título Shina Tetsugaku Shi, utilizado pelo professor Endo Ryukichi. Traduz-se por Nova Filosofia da China, mas a surpresa está na substituição de Chuoku (País do Meio), na leitura japonesa dos dois carateres chineses, pela fonética Shina, em dois caracteres silábicos nipónicos. Afinal, talvez lhes parecesse que, com a modernização Meiji, o "centro" do mundo passasse mais para leste, onde nasce o sol... para o Império do Sol Nascente... Nihon ou Nippon significando a raíz, a origem do sol.

 

   Porque a filosofia é cultura - quiçá a cultura do espírito por excelência - ela só pode exercer-se em circunstância e na história. Assim, passa de interrogação a busca, de procura, e reflexão, a explicação, que mais não é do que um olhar proposto. Mas este, como qualquer visão do mundo, comunica-se e enraíza-se, alarga-se como árvore que cresce e se abre em ramos, a cuja sombra se abrigarão muitas gerações. A sua história é distiladora de essências a que chamamos valores ou princípios. A universalidade destes não tem dono, antes é, por definição, de todos: só pela entrega e comunicação se fixa, como raíz fasciculada, que vai beber, buscar e dar vida até onde puder. O valor do universalismo cristão, por exemplo, que afirma a igual dignidade de todos os seres humanos, pode ter sido esquecido - e muitas vezes o foi e é -  no seio de comunidades ditas cristãs, até por impulsos sectários de distinção entre bons e maus. Mas pode, por essa tal cultura (subterrânea também) do solo que a todos nos sustenta, florescer em comunidades heterogéneas. Dou-te, Princesa de mim, uma ilustração que hoje traduzo de The Economist, notícia e comentário que não inventei, cinquenta anos depois do célebre discurso - conhecido por Rios de Sangue - proferido por Enoch Powell para uma plateia de militantes e eleitores tories no Midland Hotel, em Birmingham, "profetizando" o advento de conflitos sangrentos entre brancos e gente de cor se continuasse a permitir-se imigração no Reino Unido:

 

   Atualmente, metade dos habitantes não brancos do RU vivem nas três maiores cidades do país: Londres, Birmingham e Manchester. A segunda incarna o que os universitários apelidam de "superdiversidade". Outrora, as minorias étnicas tinham tendência a fechar-se em grupos. Hoje, a mistura de populações de diversas origens étnicas é sem precedentes. Nenhuma circunscrição de Birmingham conta menos de 32 etnias, segundo Jenny Phillimore, da Universidade de Birmingham. O distrito recordista é o de Handsworth, cujos 31.000 residentes procedem de 170 países diferentes: ali, diz a investigadora, "todos têm um lugar".

 

   Esta demografia retrata-se na vida política da região. A antiga circunscrição de Enoch Powell, Wolverhampton South West, foi representada, até 2015, por Paul Uppal, um sikh (conservador), sendo hoje o mesmo assento parlamentar ocupado por Eleanor Smith, uma deputada trabalhista cuja mãe deixara Barbados para vir para o RU em 1954, a fim de trabalhar para o National Health Service. Esta mulher política lembra-se do desapontamento de sua mãe ao ouvir o discurso de Enoch Powell, que apelava ao repatriamento voluntário - linha oficial do partido conservador naquela altura. Fora encorajada a vir para o RU quando este país precisava de mão de obra e, agora, intimavam-na a voltar para casa..."

 

   Em carta próxima, Princesa de mim, voltarei à filosofia chinesa, como reflexão moral e política. Sempre vamos aprendendo uns com os outros... Falar-te-ei do conceito milenário de tianxia, ou seja, de tudo o que está sob o céu...

 

Camilo Maria     


Camilo Martins de Oliveira