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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
RETRATOS PREMONITÓRIOS


1.
 Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro ato "oficial" foi receber Hanna Schygulla, a atriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d'Image para um espetáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão ("Storia di Piera") e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos". A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos. É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as "burqas", para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. "Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala", para ser tão trivial quanto possível.


Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. "Mas nunca lhe viu a cara?" Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz. É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.


2.
 Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, atualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver "la mort au travail", o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.


Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse. 


Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do "jus imaginum", privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do "terceiro estado". Só quando se inventou a fotografia, "toda a gente" passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.


3.
 Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no "Là-Bas" de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou "épastrouillant", termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de "cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité".

Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em "Là-Bas", como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi "La Lutte avec l'Ange" de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado "Código Da Vinci", que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as "revelações" do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.


4.
 A eles volto. Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de "Doge e Dogoressa", ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto "Prophetic Pictures", que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um "guilty medium". A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.


Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: "Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem." Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. "Is this like Elinor?" "Compare a cara dela com a cara que eu pintei." E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exatamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. "That look! How come it there?" 


Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o "retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado". 

"Não haverá uma profunda moral neste conto?", termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. "Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas ações, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS." Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são "uns extraordinários olhos" e "uma estranha expressão". Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de "Prophetic Pictures") eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse "dom" era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E "todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos". 


Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do "Dorian Gray" de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor. Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, "Lucrezia Panciatichi", de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?


João Bénard da Costa

22 de outubro 2004, Público 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

7. “MORRER CATÓLICO, APESAR DE NÃO PODER VIVER COMO TAL”

OSCAR WILDE

 

“Eu acredito em tudo desde que seja incrível. É por isso que pretendo morrer católico, apesar de não poder viver como tal. O catolicismo é uma religião tão romântica. Tem santos e pecadores. A igreja anglicana só tem pessoas respeitáveis, que acreditam na respeitabilidade”.

 

É uma afirmação de Oscar Wilde, reproduzida e interpretada pelo ator Stephen Fry, no filme “Wilde”, de Brian Gilbert, numa adaptação biográfica e cinematográfica da vida do escritor irlandês. 

 

Nascido e criado numa família protestante, converteu-se ao catolicismo, em fim de vida, recebendo o batismo e a extrema unção.

 

Foi censurado por amigos e inimigos, desde logo por anglicanos, que viram nessa conversão um aproveitamento da “bondade” ou “hipocrisia” católica. Podemos pecar e mentir, mas se nos arrependermos e confessarmos, somos salvos, estamos absolvidos e vamos para o céu, o paraíso celeste. Quem pecou, mentiu, e se mostrou arrependido, confessando-se, tem o mesmo prémio de quem não pecou, nem mentiu, o que é inaceitável para a respeitabilidade purista. Esta cultura (também papista, em linguagem anglicana), é tida como influenciadora da nossa lei penal e processual penal, a nível do arguido, que tem o direito de mentir (e ao silêncio) em tribunal, exceto quanto à sua identidade e antecedentes criminais, ao invés das testemunhas.

 

Oscar Wilde era um esteta, um dândi, dandinando roupas excêntricas, coloridas, axadrezadas ou listadas, de tecidos raros, casacos de tweed, gravatas vistosas, chapéus chamativos. Vestia com elegância e requinte. Com uma preocupação permanente com a aparência pessoal. Via o pedantismo como sofisticação. A falta de respeitabilidade como inveja e desdém dos pouco talentosos. Estudava e pensava a beleza artística, investigando-a na sua função cognitiva particular, cuja perfeição consistia na captação da beleza e das formas artísticas, levando à conclusão que determinado objeto natural ou artístico desperta, intrínseca e universalmente, um sentimento de beleza e de sublimidade. Elogiava a nudez pública dos jogos olímpicos da antiga Grécia.

 

Esta permanente procura de novas emoções, excitações e sensações, conduziu-o a apetites incontroláveis, a uma vida dupla, que não escondia, casando e tendo filhos, e não ocultando a sua homossexualidade no decurso do seu casamento, acabando por ser preso e condenado a trabalhos forçados por dois anos.

 

Aos olhos da igreja católica era um pecador, numa amálgama de escândalos, costumes e práticas tidas como chocantes e impuras, dívidas vergonhosas, apetites hedonistas, insaciáveis, gostos luxuosos, entre cigarreiras gravadas doadas a rapazes jovens.

 

Esta busca incessante, também o aproximou da sensualidade litúrgica católica, sacra e solene, considerando o amor um sacramento que devia ser tomado de joelhos. Esta analogia exaltante, tida como incrível, a que acresce tudo o que viu e sentiu na sua viagem a Itália, incluindo Roma, sede do catolicismo, em termos de sensualidade  (tantas vezes sexualizada), na sublime beleza das esculturas e representação dos corpos, em louvação humana e a Deus, num misto de santidade e pecado, por oposição à respeitabilidade fria e seca da igreja anglicana, levaram-no, no fim da vida, a converter-se ao catolicismo, morrendo católico, apesar de não poder ter vivido como tal, como ele próprio reconheceu.

 

Que melhor exemplo de arrependimento e conversão interior, diremos nós, que o de Maria Madalena glorificada nas artes, desde a escultura à pintura, como a bela pecadora, tão atraente no pecado como na conversão?

 

“É a única religião em que os céticos estão no altar e em que São Tomé, o Duvidoso, é o príncipe dos apóstolos. Não, não poderia morrer como anglicano”, diria ainda.

 

Apesar de aceitar e defender “o amor que não ousa pronunciar o seu nome” e o amor “que enche o coração do rapaz e da rapariga com uma chama mútua”, de igual modo pensava que mesmo os pecadores têm salvação, mesmo que não tenham vivido segundo as regras da igreja, uma vez que todos, sem exceção, pecamos, mérito que reconhecia ao catolicismo, perdoando e salvando, mesmo que no leito da morte, não por aproveitamento por quem está fraco, inconsciente e moribundo, mas por piedade, humanidade e misericórdia. 

 

Errou quem pensou, à época, que o apelido Wilde seria abominado nos próximos milhares de anos, que qualquer pessoa que tivesse algo a ver com ele não voltaria a ser admitido na sociedade, o que foi recusado pela mulher Constance, enquanto viva, e pelas gerações futuras, sendo tido, até hoje, como um dos génios da literatura mundial, autor de obras como A Importância de ser Earnest, O Retrato de Dorian Gray e De Profundis.

 

Para quem gostava de ser famoso e dizia, com humor e ironia, perto do fim: “Como o querido São Francisco de Assis, estou casado com a pobreza, mas no meu caso o casamento não é um sucesso”, a fama perdura, como grande esteta e não só, por certo uma superestrela estética e mediática se vivesse no nosso tempo.

17.04.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Na cena segunda do segundo ato da sua peça The Judas Kiss (Londres, Faber&Faber, 1998), David Hare põe a sua personagem de Oscar Wilde a dizer: - Na prisão, tive oportunidade de ler a vida de Cristo. Repetidamente. Vi nela a maior história que alguma vez tinha lido. Todavia, tinha um defeito. Cristo é traído por Judas, que é um estranho. Judas é um homem que ele não conhece bem. A verdade artística seria maior se ele tivesse sido traído por João. Porque João é aquele que ele mais ama. Não te escrevo, Princesa, para te falar da peça que, aliás, não terá saído nem tão boa nem tão má como críticos e públicos a acolheram... mas se concentra nos amores e desavenças sobre estratégias processuais de Oscar Wilde e Lord Douglas, seu viciado amante e némesis. Quem traiu Wilde, acho eu, foi o próprio ou, se quiseres assim, sua fraqueza e paixão. Qualquer traição é cega, porque tem necessariamente de fechar os olhos; para ser suportável, poderá ser, ainda, mais ou menos cobarde. A cobardia é uma forma, repugnante ou vocativa de compaixão, de fraqueza. De fraqueza todos sofremos, com mais ou menos humildade, na razão inversa da coragem. Já a paixão tem um lado tenebroso e, nesse sentido, é o que define o pecado: este, tantas vezes o digo - até e sobretudo para comigo - é a paixão dos nossos limites, a obsessão do inultrapassável, a recusa de qualquer conversão. Se me deixares brincar um pouco, dir-te-ei, Princesa de mim, que não me confunde o que por aí se chama "estupidez natural": nenhum de nós nasce absoluta, brilhante ou superiormente inteligente. A estupidez que me incomoda tem mais a ver, isso sim, com a teimosia do preconceito, com a recusa a dar um passo e estender a mão a outra pessoa, a uma ideia diferente, a um desafio. 

 

   Também não venho falar-te da figura misteriosa de Judas Iscariotes, esse que ninguém pode provar exatamente quem foi, nem sequer Geza Vermes, sábio judeu que foi jesuíta e deixou a confissão católica, respeitado investigador e professor universitário (em Lovaina e Oxford, por exemplo) que, no seu Who´s Who in the Age of Jesus (2005), distingue quatro Judas desse tempo: o irmão de Jesus; o filho de Saforeu, este fariseu; o galileu, filho de Ezequias e revolucionário; e o Iscariotes, o tal. Há quem pretenda ainda que a personagem de Judas Iscariotes seja, afinal, uma ficção literária, uma espécie de bandido ou bode expiatório que a tradição oral que circulava nas primitivas igrejas cristãs (e, consequentemente, a redação dos evangelhos registou) teve de inventar para um episódio que ajudasse a construir a narrativa da Paixão, tornando-a mais aceitável pelos fiéis. Porque, na verdade, muitos seguidores de Cristo o abandonaram nessa hora, incluindo os mais próximos. Diz-nos São João que além do discípulo que ele amava, junto à cruz de Jesus estavam apenas sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena...Tal distância nos leva a consultar as referências evangélicas ao homem (apóstolo, discípulo) que traiu (?) - denunciou (?) - entregou (?) o Mestre. E então nos surge um Judas Iscariotes que, simultaneamente, é e não é, para Jesus, um estranho. Ocorreu-me tal paradoxo - que nos levará ao Judas - The troubling history of the renegade apostle (Houdder & Stoughton Ltd, 2015) de Peter Stanford - ao assistir, no canal Mezzo, a um Don Giovanni, do Mozart, com arrojada encenação e coreografia (houve quem lhe chamasse  pornografia) transmitida do De Munt (Théatre Royal de la Monnaie), em Bruxelas...  Lá iremos! Quanto à tenebrosa figura do Iscariotes nas narrativas evangélicas, sugiro, Princesa, que leias o Stanford, e me deixes ultrapassar várias considerações que ele adianta, para seguir o meu caminho. Sem todavia esquecer o interesse inegável daquele autor. Desde logo, e cabalmente, chama a atenção para o facto de Judas - figura que, ao longo da história, tem sido por todos conhecida e comentada - ser referido apenas vinte e duas vezes no conjunto dos quatro evangelhos... S. Marcos nomeia-o, primeiro, no versículo 19 do seu capítulo 3º, no relato do chamamento dos doze apóstolos por Jesus: E a Judas Iscariotes, o que o entregou.

 

   Tal referência, tão precoce, deixa suspeitar que, na tradição oral das primeiras igrejas cristãs, a personagem do traidor era geralmente conversada, como aliás testemunham os evangelhos de Mateus (10, 4) e de Lucas (6, 16) que, tal como o de Marcos, desde logo o incluem na lista dos doze chamados: ...e Judas Iscariotes, aquele que o traiu...  ... E Judas, o filho de Tiago; e Judas Iscariotes, que foi o traidor. Nota, Princesa, que tal labéu é atributo do Iscariotes, em qualquer dos sinópticos, logo desde o início da vocação apostólica. Na última citação acima, a de S. Lucas, o apelido parece explicar-se pela necessária distinção entre ele e o outro Judas, o santo, filho de Tiago. O Iscariotes é o único distinguido por nome e apelido. Em S. João - o quarto evangelho, de "família" não sinóptica - não há momento único, um episódio, ou uma listagem de nomes, para o chamamento dos doze, e a primeira referência a Judas Iscariotes dá-se em 6, 70-71: "Não vos escolhi a vós, os doze? E um de vós é um diabo". E isto dizia Ele de Judas Iscariotes, filho de Simão; porque este o havia de entregar, sendo um dos doze. Essa menção do apelido e filiação de Judas, e à sua traição, retoma-se no episódio da unção dos pés de Jesus por Maria de Betânia (João, 12) e ainda na narrativa do lava-pés (Jo. 13, 2), em que o diabo volta a ser lembrado, tal como na última ceia (Jo. 13, 26-27): "Aquele a quem eu der o bocado molhado". E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão. E após o bocado, entrou nele Satanás. Disse pois Jesus: "O que tens de fazer, -lo depressa". Acho curioso observar, Princesa de mim, que o Iscariotes participou, com os outros apóstolos, na instituição da eucaristia, e que o bocado de pão que Jesus molhou e lhe ofereceu era, provavelmente, pedaço do seu corpo eucarístico. Se, por outro lado, considerarmos como o apelido Iscariotes e a filiação deste Judas poderão indicar que, diferentemente dos outros onze, ele não é galileu, mas judeu (da cidade de Queriote?), seremos tentados a concluir que se pretende aí sugerir que o diabo, Satanás ou o Mal, aquele que divide, é simultaneamente nosso e alheio, participante familiar e estranho. É sobre esse "nós e o nosso monstro" que agora me debruço. Judas, portanto, passa de protagonista a pretexto. E não me demoro na consideração das circunstâncias, motivos e pulsões que têm sido adiantadas para tornar plausível o comportamento de Judas. Nem tampouco no aproveitamento desse comportamento, ligado ao nome do traidor e à sua origem judaica, por vagas sucessivas de propaganda antissemítica ou tão só para fazer do povo judeu o culpado, o bode expiatório da morte de Jesus. Talvez por me ter chocado a história de uma denúncia, traição, entrega desnecessária e inútil do Filho de Deus por um seu muito próximo, quando, afinal, Jesus Cristo era conhecido de todos e já reconhecidamente fora acusado e perseguido pelos seus inimigos. Mais: a vítima traída sabia desde sempre o que lhe aconteceria, quando, em que circunstâncias e por quem, como se ela própria fosse comandante dos acontecimentos: o que tens a fazer, fá-lo depressa. Como se dissesse "não enganas ninguém, mas só a ti". Aquela história não é narração de factos reais, antes me parece ser uma chamada de atenção para o inesperado que nos habita, para essa divisão da alma que nos leva à autossuficiência e arrasta à infidelidade. Obra do diabo, dizia-se dantes. Nesse sentido, a observação de Oscar Wilde na peça de Hare sublinha como é no íntimo de nós que a traição acontece, quando amamos (?) e, por a nós nos preferirmos, ao amor nos negamos.

 

   O apego a si mesmo, essa tal grandeza que, diria Pascal, é a miséria do homem, também levou Don Juan a cair no inferno. Mas com ele, de certo modo, podem cair todas as outras personagens, se ninguém finalmente se desembaraçar do apego próprio que faz, de cada um de nós, um burlador com propensão a Judas. A arrojada, quiçá violenta, encenação e coreografia da ópera Don Giovanni, realizada para De Munt por Krzysztof Warlikowski, em 2014, insiste, precisamente, em mostrar que o protagonista pode não ser a exceção.


   Aliás, ocorre-me agora o início do prefácio que Claude Roy escreveu para a edição, que conservo, de Le Spleen de Paris (Le Livre de Poche, Paris, 1964) : «Encontrareis, neste livro, a história do homem enamorado de uma mulher perfeita, tão perfeita, tão incapaz de cometer um erro de sentimento ou de cálculo», que o seu amante a admirou durante muitos anos, com o coração cheio de ódio. No fim, mata-a, para acabar com essa insuportável perfeição. Como se ecoasse em Charles Baudelaire aquele trecho do evangelho de S. João (1, 9-11): Ali estava a luz verdadeira que alumia a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo e o mundo foi feito por Ele e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam. Nesta tarde tão chuvosa dum primeiro domingo de primavera, ponho a tocar e escuto a versão do mozartiano Don Giovanni (Praga/Viena 1787-88) dirigida por René Jacobs em 2006.

 

  Lembrei-me de que a tinha na minha discoteca, ali pretendendo marcar diferença relativamente ao tratamento que lhe tem sido dado, desde E.T.A. Hoffmann, no século XIX: para este, diz Jacobs em entrevista, Don Giovanni é um herói trágico, sempre em busca da mulher que pudesse facultar-lhe a demanda de uma união com o infinito. Donna Anna é elevada tanto acima das outras personagens que a sua "personalidade luminosa" faz dela a verdadeira adversária de Don Giovanni. A demanda do infinito, do inacessível, a redenção pelo sentimento, pelo amor, que aqui se cumpre por morte trágica... - eis certamente uma bela invenção, mas que nada tem a ver com a peça: é, de facto, uma falsificação muito sedutora. Se deve haver um adversário à altura de Don Giovanni, não será Donna Anna, mas Donna Elvira, a "donna abbandonata" da ópera barroca, como já Ariana o tinha sido por Teseu, em Monteverdi. É, de longe, o papel mais comovente de toda a ópera. O seu amor por Don Giovanni é totalmente irracional e profundamente autodestrutivo. 

 

   A grisalha desta tarde parece perguntar-me: como foi Dona Elvira capaz de desejar a morte, pior, a condenação do seu amor? Seria Judas Iscariotes fadado para demandar o sacrifício do seu Cristo? Poderá qualquer de nós ser tão magoado pela bela claridade do amor - como abertura de portas e caminho de liberdade e entrega - ao ponto de se afogar com um tesouro que quer só para si? Don Giovanni colhe a mão gelada do Comendador (ou do seu fantasma) e cai no inferno, depois de ter recusado arrepender-se. Fica preso pelo seu apego a si, recusa o amor que liberta. Mas o epílogo acrescentado a esse final também soa postiço, moralizador à força: nessa cena última, Don Ottavio exprime bem o sentimento egoísta de todos, quando canta "já agora, depois de todos nós termos sido vingados pelo Céu, dá-me, ó meu tesouro, o teu conforto, não me deixes mais à espera"... E os circunstantes vão todos à vida, em busca do conforto próprio. A menos que, com ironia, se insinue aí que, uma vez achado e castigado o bode expiatório, nos possamos, afinal, render ao nosso agrado... O sacrifício de Don Giovanni é assim comentado, em coro (Donna Anna, Donna Elvira, Zerlina, Don Ottavio, Masetto, Leporello): Questo è il fin di qui fa mal! / E de´perfidi la morte / Alla vita è sempre ugual. Cai o pano. Mas eu quedo-me a pensarsentir qual será o lugar do Iscariotes no amor misericordioso de Deus. Quiçá Judas, consumado o sacrifício de Jesus Cristo, tenha finalmente percebido que nisto está o amor: não em termos amado a Deus, mas em Ele nos ter amado primeiro e ter enviado seu Filho para remissão dos nossos pecados. Se Deus assim nos amou, também nos devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós e em nós é perfeito o seu amor (1ª Carta de S. João, 4, 10-12).

 

   Perdoa-me, Princesa, escrever-te a fazer perguntas, ainda por cima bem diferentes daquelas que, em tempos, abriam tantas cartas que pelo mundo se escreviam: Minha Querida Mãe: Como está de saúde, como estão todos? Eu por cá bem, graças a Deus! Vi há pouco uma reportagem sobre essa guerra que vai matando centenas de milhares de civis, a maioria por estarem apenas em suas casas. Para além do horror, a que assistimos, desta visão infernal do mal, onde está a culpa? Será que Deus se esconde para nos pôr à prova? Silencio-me para conseguir entrar nessa oração suprema que é a contemplação da misericórdia. Neste momento, há em mim um Judas que quer, com todo o coração, acreditar que Deus nos amou primeiro. Para também eu amar, até no insuportável. 

   
Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

RETRATOS PREMONITÓRIOS

 

1. Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro ato "oficial" foi receber Hanna Schygulla, a atriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d'Image para um espetáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão ("Storia di Piera") e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos". A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos. É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as "burqas", para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. "Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala", para ser tão trivial quanto possível.

 

Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. "Mas nunca lhe viu a cara?" Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz. É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.

 

2. Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, atualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver "la mort au travail", o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.


Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse. 


Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do "jus imaginum", privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do "terceiro estado". Só quando se inventou a fotografia, "toda a gente" passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.

 

3. Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no "Là-Bas" de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou "épastrouillant", termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de "cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité".


Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em "Là-Bas", como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi "La Lutte avec l'Ange" de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado "Código Da Vinci", que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as "revelações" do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.

 

4. A eles volto. Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de "Doge e Dogoressa", ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto "Prophetic Pictures", que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um "guilty medium". A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.


Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: "Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem." Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. "Is this like Elinor?" "Compare a cara dela com a cara que eu pintei." E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exatamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. "That look! How come it there?" 


Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o "retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado". 


"Não haverá uma profunda moral neste conto?", termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. "Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas ações, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS." Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são "uns extraordinários olhos" e "uma estranha expressão". Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de "Prophetic Pictures") eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse "dom" era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E "todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos". 


Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do "Dorian Gray" de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor. Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, "Lucrezia Panciatichi", de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?

 

por João Bénard da Costa
22 de outubro 2004, Público 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

  

   Minha Princesa de mim:

 

   A cabeça degolada de João Baptista, ninguém sabe, ao certo, onde está. Mas há muitas por aí, as relíquias são, umas mais, outras menos, como quadros de grandes mestres e seus falsários: a ânsia de as possuir relega para secundário plano a elementar prudência de as verificar. Seja como for, o facto dessa devoção ser muito antiga e, hoje ainda, se estender do oriente ao ocidente cristão - todas as igrejas celebram, além da festa do nascimento do santo (a 24 de Julho) o martírio da sua decapitação (em 29 de Agosto do calendário gregoriano nas católica, anglicana e luterana, ou do calendário juliano nas igrejas orientais) - diz muito sobre a importância de São João na vida e revelação de Jesus e na memória e no culto do cristianismo. 

 

   Mais adiante te contarei o registo de frei Tiago Voragino, a que eu tanto gosto de recorrer, por considerar que é uma bela súmula das devoções cristãs tradicionais, desde a Igreja dos primórdios às vésperas da Renascença... Por enquanto, apenas recordo que, em 29 de Agosto de 2012, o papa Bento XVI celebrava, numa audiência em Castel Gandolfo, a 2ª descoberta (no século V?) da cabeça do santo, então finalmente levada para Constantinopla (?), finalmente depositada na basílica romana de São Silvestre (San Silvestro in Capite), onde se encontra exposta à veneração dos fiéis. Conta-se que a primeira descoberta se dera no século IV, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, onde Santa Joana a enterrara, para a conservar, depois de a retirar do esterco em que a própria Herodíade, a companheira adúltera de Herodes Antipas, a pusera. Se era a mesma cabeça, ou a que se expõe na catedral de Amiens, ou na Residenz de Munique, ou noutras paragens ainda, não sei. Concluo apenas que é extensa a respetiva devoção, aliás muitas vezes efabulada e cabalizada, como em lendas acerca dos Templários, ou simplesmente inventada, como no caso dos chamados cátaros que, na verdade, tinham horror à tradição joanista do batismo por imersão ou simplesmente pela água. Para esses hereges - em seu tempo chamados Bons Homens e Boas Mulheres, praticantes de uma espiritualidade despojada e ascética, possivelmente de origem gnóstica - o batismo cristão já não é na água, mas em espírito, tal como, aliás, o próprio João ensinava quando se referia a Jesus Cristo dizendo "só vos batizo em água, mas no meio de vós está Aquele que batiza em espírito". Os cátaros praticavam tal batismo, por imposição das mãos, como já relatavam os registos apostólicos.

 

   Mas outra figura surge e se destaca, a par e em contraponto a João Baptista. Trata-se de Salomé, a filha de Herodíade, dançarina feiticeira que, em nome de sua mãe, pede a Herodes, para prémio do encanto do seu bailado, a cabeça do primo de Jesus. Por  agora, surge-me a lembrança da ópera Salomé, de Richard Strauss, que, nos anos 90, vi em Savonlinna, no nordeste da Finlândia, no interior de um poderoso e austero castelo medievo. Impressionante! O libreto, como sabes, Princesa, é de Hedwig Lachmann, mas praticamente uma tradução da peça Salomé do Oscar Wilde, escrita em Paris (1891), curiosamente, em francês. O dramaturgo irlandês queixava-se da docilidade obediente de Salomé a sua mãe, como parece resultar do texto evangélico. Para ele, a bailadeira melhor incarnaria outra coisa, bem longe da inocência: Por causa disso, acumularam-se e depuseram-se a seus pés, durante séculos, sonhos e visões, ajudando a fazer dela a flor cardeal de um jardim de perversão.

 

   Tenho diante dos olhos imagens de pinturas de Filippo Lippi e Peter Paul Rubens representando a festa de aniversário de Herodes e Salomé levando ao rei a cabeça do Baptista, numa salva. Na cena da decapitação, por Caravaggio, o prato é seguro por uma criada, uma velhota leva desesperadamente as mãos à cabeça, o quadro é violento e sinistro. Como também o de Hans Memling, em que o degolador põe, na bandeja segura por uma Salomé silenciosa e fria, a cabeça que acaba de cortar. A mesma repousa num prato de pé alto, belíssima e serena, no Andrea Solario, de 1507, que está no Louvre. Este diz-nos bem como as muitas lendas e narrativas acerca dos caminhos que aquela cabeça foi percorrendo levaram a que ela fosse vezes sem conta representada com fins devocionais.

 

   Mas voltando à Salomé de Wilde e de Strauss, essa parece inspirar-se mais num texto de Joris-Karl Huysmans em À Rebours, inspirado na visão de Gustave Moreau, exposta em duas telas, em 1876: Salomé dansant devant Hérode e L´Apparition. Escreve Huysmans que ela lhe surgiu qual divindade simbólica da indestrutível Luxúria, deusa da imortal Histeria, Beleza maldita, eleita entre todas pela catalepsia que lhe enrijece as carnes e endurece os músculos. E, como aparição: Aqui, ela era mesmo rapariga; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia, mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais requintada; despertava com mais energia os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domesticava mais seguramente as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em canteiros sacrílegos, criada em estufas ímpias.

 

   Certo mesmo é que o tema escandalizou muita gente: Guilherme II, o imperador da Alemanha, lamentou que Strauss tivesse musicado um Wilde que já indignara Lord Chamberlain. E Sir Thomas Beecham, o maestro que dirigiu a estreia da ópera em Covent Garden, confessa em A Mingled Chime, sua autobiografia: A mais extrema e derradeira concessão que conseguimos, foi que Salomé cantasse diante de uma bandeja totalmente coberta por um véu, mas sem que ali se pudesse pôr qualquer objeto, por pequeno que fosse, pois indiciaria, pela protuberância, a presença da preciosa cabeça. Todavia, o mal-estar causado pelos paradoxos que Wilde levanta é interior, perturba muito mais do que a eventualidade de Salomé estar praticamente nua quando dança, e vi-a assim em Savonlinna. No final da ópera, percebemos que a feiticeira foi vencida pela derrota dos seus próprios trunfos, os seus encantos não submeteram Jochanaan (o nome do Baptista na peça). Agarra-lhe a cabeça cortada, e exclama: Ah! Du woltest mich nicht deinen Mund küssen lassen, JochanaanNão quiseste deixar-me beijar-te a boca! Pois bem: beijá-la-ei agora, mordê-la-ei como se trinca um fruto maduro [...] Mas porque não olhas para mim, Jochanaan? Creio que, em carta muito antiga, já te contei, Princesa, essa cena final da ópera de Strauss: Que farei agora? Nem os rios, nem as grandes águas, podem estancar-me a paixão. Porque é que não olhaste para mim? Se tivesses olhado tinhas-me amado. Eu sei que me terias amado, o mistério do amor é maior do que o da morte... Herodes dirá então a Herodíade: A tua filha é um monstro, digo-te eu, ela é um monstro! E quando Salomé insiste, e à cabeça inerte repete: Ah! Beijei-te a boca. Os teus lábios tinham sabor amargo, será o gosto do sangue? Não! Talvez seja o gosto do amor, diz-se que o amor tem sabor acre [...] Herodes gritará aos seus soldados: Man töte dieses Weib! Matem esta mulher! E eles esmagam-na com seus escudos. Cai o pano. E frei Tiago Voragino ficará para a próxima carta.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira