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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SÁBADO SANTO, PÁSCOA

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Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.

Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a  crueldade exercida sobre as criança inocentes. "A ciência toda não vale as lágrimas das crianças", proclama. O que faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o bilhete de entrada na harmonia final da história do mundo.

Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu: "O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum". E acrescentava de modo dramático: "Um Miserere  cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia."

O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão. Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é, salvar.

Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, "depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram  o que descreveram como a 'ressurreição'”: aquele que tinha morrido apareceu como "pessoa viva, mas transformada". "Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso". Deste modo, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo

No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta Feira Santa, o mesmo acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.

Na medida em que é possível reconstituir o que se passou historicamente com Jesus, foi assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré, acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do Reino de Deus. "Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho." Agora, quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo.  Deus vai transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão satisfeitas todas as esperanças.

Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas também de tipo religioso que, em vez de trazerem libertação, oprimiam homens e mulheres.

Esta actividade pública de Jesus foi curta: um ano, talvez dois, três no máximo. Pelo ano 30, por motivo da Páscoa, foi a Jerusalém com os discípulos. Houve quem o aclamasse Messias libertador. Enfrentou concretamente o sacerdócio judaico — parece que havia uns 20.000 sacerdotes e levitas —, declarando que Deus estava farto de sacrifícios. Flávio Josefo refere que numa páscoa degolaram 255.600 cordeiros. Mas, segundo Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e misericórdia.

Vendo privilégios abalados por causa do seu anúncio de um Deus solidário com os pobres, oprimidos , explorados, e com medo de uma sublevação popular que levasse à intervenção das tropas romanas, as autoridades judaicas, nomeadamente o sumo sacerdote, detiveram Jesus e interrogaram-no. E enviaram-no a Pilatos, governador-representante da Roma imperial, que, após julgamento expedito, o mandou executar na cruz, suplício próprio de escravos. O que se passou com Jesus no seu íntimo na cruz não sabemos. Mas há aquela palavra-oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"

Os discípulos desiludidos fugiram, voltaram às suas tarefas normais, pois aparentemente tudo tinha acabado.

O enigma do cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é este: pouco depois começaram a anunciar que o tinham visto, que Ele está vivo.  E por isso deram a vida, mártires. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento.  Os discípulos foram-se reunindo outra vez e formaram comunidades congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria para instaurar o Reino de Deus.

É em Sábado Santo que nos encontramos: entre a Sexta Feira Santa e o calvário da História, por um lado, e, por outro, o Domingo de Páscoa, isto é, a profecia, a promessa, a expectativa, a esperança, que não morre, do Reino de Deus, do amor, da fraternidade, da justiça plena, da alegria toda, da ressurreição dos mortos, da filadélfia, do banquete universal com Deus e todos os homens.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de março de 2024

“Pára e pensa”. A Última Palavra

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Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.

Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta “era da distracção” corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do “ruído mental”, com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um “estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração”. Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é “perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico”. O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).

Aqui chegados, e perante a incapacidade de distinguir o essencial do superficial, impõe-se o apelo de Hannah Arendt: “Pára e pensa”. E há coisa mais essencial do que perguntas como estas: Donde vimos? Para onde vamos? O que é que verdadeiramente vale?  Qual o sentido da existência, Sentido último?

É do essencial que a Páscoa trata. E lá está Pascal: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos; é preciso não dormir durante esse tempo.”

Na Paixão, estamos todos. Jesus não morreu vítima de Deus, que precisaria da sua morte para aplacar a Sua ira e assim poder reconciliar-se com a Humanidade. Pelo contrário, Jesus foi vítima da religião oficial e do poder imperial romano, porque a Sua mensagem, por palavras e obras - Deus é bom, Pai e Mãe de todos, a começar pelos mais pobres, abandonados, explorados, pecadores – punha em causa os seus interesses. Aí está o perigo do poder religioso e político, quando estão ao serviço da exploração. Lá estão os discípulos, que fugiram. Lá está Pedro, o amigo generoso, mas cobarde: bastou uma criada suspeitar que ele também era discípulo e logo negou; depois, arrependeu-se e chorou amargamente. Lá está Judas. Lá está Pilatos, que lavou as mãos. Lá está o cireneu, que ajuda. Lá estão os dois ladrões (talvez terroristas): um converteu-se, o outro continuou a blasfemar. Lá estão as mulheres, as únicas que não fugiram e acompanharam Jesus até à morte. E Jesus perdoou até àqueles que o matavam. E rezou aquela oração, uma pergunta que atravessa os séculos: “Meus Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meus espírito”…

Jesus morreu na cruz, a morte horrenda que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que Jesus, que morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos. E deram a vida por essa fé, que chegou até nós.

Quando olhamos para a História, com todas as lutas, amores, sonhos, realizações, fracassos, esperanças, que a atravessam, ergue-se, do mais fundo, a pergunta: Foi tudo para nada? E há as vítimas inocentes que clamam por justiça, e quem pagará a dívida da História para com elas? Neste contexto, o agnóstico Jürgen Habermas, o maior filósofo vivo, escreveu, citando J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a essa realidade a fé cristã chama Deus.”

A fé é um combate, como deu testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, ao aproximar-se do seu próprio fim – morreu em Abril de 2021. Confessou que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim”, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. A vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de abril de 2023

É EM SÁBADO QUE VIVEMOS

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Celebrávamos anualmente a Paixão de Cristo, mas com o perigo de não ir além de ritos muito certinhos, tantas vezes secos e insignificantes. Esquecêramos Pascal nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo.” Agora, com uma guerra tenebrosa em curso, sabemos que a Paixão continua, e as personagens da tragédia são exactamente as mesmas.

Como acontece quase sempre, o poder religioso e o poder político ao mesmo tempo que se guerreiam juntam-se na defesa dos seus próprios interesses, que são os da manutenção e aumento incessante do poder. Assim, lá estão o sumo sacerdote Caifás -- não se tinha Jesus erguido, na continuação dos profetas, contra o poder sacerdotal, que se servia de Deus contra o povo? -- e a razão de Estado: era preferível matar Jesus a pôr em perigo as relações com Roma. Pilatos, o representante do Império, convenceu-se da inocência de Jesus, mas a Realpolik não podia permitir o incêndio da sublevação do povo contra o Império. Por isso, lavou as mãos -- a proclamação da inocência hipócrita! -- e condenou-o à morte dos escravos: a cruz, com a morte mais horrenda. Nesse dia, Pilatos e Herodes, que eram inimigos, reconciliaram-se. O nome de Pilatos é dos nomes mais vezes pronunciados ao longo da História, pois está inscrito na confissão da fé dos cristãos. Mas é tal o desconforto que há aquele dito aplicado a quem se encontra fora do lugar, melhor, num lugar indevido: estás aí como Pilatos no Credo.

Os soldados cuspiram-lhe, puseram-lhe uma coroa de espinhos, açoitaram-no… Significativamente, quando um lhe deu uma bofetada, Jesus, que tinha dito para dar a outra face, ele próprio não o fez, pois é preciso manter a dignidade: “se disse mal, diz-me em quê; se disse bem, porque é que me bates?” A multidão -- essa, exactamente a mesma --, no Domingo de Ramos, clamou: "Hosana, hosana" e, na Sexta-Feira Santa, gritou: "Crucifica-o, crucifica-o". Não se pode confiar nas multidões, volúveis e manipuláveis.

Judas atraiçoou o Mestre. Vendeu-o por trinta moedas de prata. Ele faz parte da longa história dos traidores. Mas, pensando bem, não tinha sido ele próprio “atraiçoado”? De facto, ele esperava e empenhara-se com um Messias político, que tomasse o poder. Não podia entender que a revolução de Jesus era outra: a transformação radical do coração e a partilha e o serviço. Há sempre equívocos que levam ao desastre. Quando viu o seu erro, foi confessar o seu engano, mas não encontrou compreensão; arrependido, não quis ficar com o dinheiro que, esprimido, derramava sangue, atirou-o para o Templo, e enforcou-se.

Pedro, no momento da prisão, puxou pela espada. Jesus, porém, mandou que a metesse na bainha, ficando a ecoar através dos tempos a palavra da não violência activa: quem mata com ferros com ferros morre. Pouco depois, o mesmo Pedro também se acobardou: quando uma jovem insinuou que ele era discípulo de Jesus, começou a jurar que nem sequer o conhecia. Depois, tomou consciência, arrependeu-se e chorou amargamente, confiando no perdão do amigo que pregara o amor aos inimigos.

Entre Jesus, que representa o amor e a paz, e Barrabás, que representa a violência, a multidão foi incitada a escolher Barrabás.

Os discípulos de Jesus, quando viram tudo perdido, fugiram todos apavorados. Embora forçado, um homem de Cirene ajudou Jesus a levar a Cruz; na vida, pode haver sempre um Cireneu. Inesperadamente, um simpatizante tímido -- Nicodemos -- emprestou o túmulo. Os dois ladrões, que seriam dois terroristas, mesmo na iminência da morte, tiveram comportamentos diferentes: um arrependeu-se, o outro, desesperado, continuou a blasfemar. As mulheres foram quem manteve a dignidade: acompanharam-no até ao fim.

Antes de morrer, Jesus implorou o perdão para a Humanidade, também para aqueles que o torturavam e matavam: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E rezou aquela oração misteriosa que atravessa os séculos, transportando a dor e o clamor todo do mundo: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"

Neste drama todo, o que mais impressiona é que Deus a quem Jesus tratava com ternura como Abbá -- Pai querido, Mãe --, não respondeu. As suas últimas palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”

Aparentemente, foi a derrota e o fim. Mais um crucificado.

Por isso, o enigma do cristianismo é este: Porque é que os discípulos, que, apavorados, tinham fugido, lentamente voltaram a reunir-se e foram anunciar, dando a vida por isso, que aquele Crucificado é o Messias, o Enviado de Deus e é nEle que está a salvação?

O que é que se passou? A revolução de Jesus é a revolução da imagem de Deus. Nunca ninguém tinha dito, por palavras e obras: Deus é bom, Pai e Mãe de todos. E não tolera a opressão da religião e do poder. Foi uma coligação de interesses religiosos e imperiais que assassinou Jesus. Ele não fugiu, não se desdisse, foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor.  Foi neste quadro que os discípulos, reflectindo sobre o modo como Ele se relacionava com Deus, sobre o modo como viveu, como morreu, foram fazendo uma experiência avassaladora de fé de que Ele, o Crucificado, está vivo em Deus para sempre. O Deus infinitamente poderoso e bom não podia abandoná-lo à morte.

Desde então, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre a Sexta-Feira Santa, as suas dores, os seus horrores…, e o Domingo de Páscoa, com a esperança da vida plena para todos os crucificados.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 de abril de 2022

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Tumular me surge a manhã deste Sábado Santo. Acordo e levanto-me num dia cinzento, silencioso e quieto. Da varanda larga do meu quarto, avisto os campos inumados numa atmosfera incolor até ao horizonte. Não bole uma folha nas árvores dos pomares que acompanham a encosta até à estrada deserta de carros e pessoas. Desço ao meu gabinete, ponho-me à escuta das Lamentações de Jeremias, em composições de vários autores, de Alexandre Agricola a Orlando di Lasso, passando por Cristobal de Morales e Jacob Arcadelt, interpretadas pelo Egidius Kwartet, em julho de 2007 na Laurentius Kerk Mijnsheerenland, na Holanda. Cada Lamento é rematado pela conhecida exortação: Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum... Abro os olhos e, cá em baixo, já vejo, no quadro desta janela, a minha sakura florida e viçosa, a lembrar-me lição sage da natureza onde a permanência se descobre na humildade da constante mutação das coisas. No pensarsentir humano, chamamos-lhe conversão ou metanoia. Associamos-lhe, em regra, a ideia de arrependimento e penitência, ou renúncia (para melhor troca?). Mas nesta manhã cinzenta de Sábado Santo, quando o nosso silêncio ecoa o do Senhor Jesus, envolto em panos no segredo do seu sepulcro, e ainda o sofrimento e morte que vai ferindo tantos humanos por esse mundo fora, a flor da cerejeira que trouxe do Japão sorridente me acena com a promessa da alegria maior que encontrarei na simples contemplação do amor redentor de Deus, se assim o quiser também seguir a fidelidade do meu pensarsentir. Medito em como o próprio transitório pode, em silêncio, revelar-nos, num só vislumbre que seja, a inesgotável permanência... E ocorre-me essa resposta de Higuchi Ichiyo (1872-1896), jovem escritora (e autor clássico das letras japonesas, morta tuberculosa com apenas 24 anos) à pergunta sobre o que a faz mais feliz: Desde logo, não são roupas de brocado. O que me faz feliz é a natureza. Há uma verdade, uma honestidade na natureza que por vezes me traz o sentimento de comunicar com as flores silenciosas e a lua tranquila. Esqueço então completamente o mundo flutuante (ukiyo). É como se dançasse no centro de uma esplêndida flor, a propósito criada para aquele instante. Eis como são os meus momentos de felicidade.


   
Acontece-me recordar palavras de Jesus, ao dar comigo em busca de comunhão e paz: Não quero sacrifício, mas misericórdia. A ideia de sacrifício, aliás, traduz sobretudo, vezes demais, a do pagamento duma obrigação ou dívida para com a divindade, como se cumprir um dever ou uma renúncia fosse, em si e por si, ato sacralizante e sempre meritório, transformador do profano em sagrado. Menos vezes entendemos que a misericórdia não é um ato individual, nem qualquer renúncia à espera de compensação. Misericórdia é partilha de coração, com tristezas e alegrias, vida e afetos, êxitos e fracassos, na comunhão do amor. Isto é, anima-se, vive por todos, com todos e em todos. Ninguém pode amar sozinho. Nem sequer perdoar é solitário, o perdão é sempre recíproco: assim leio a parábola do filho pródigo, em que vejo como o pai, ao perdoar o filho, procura também perdão para si. A misericórdia é, necessariamente, uma relação indissociável. O ofertório maior do sacrifício do próprio Filho de Deus só tem sentido no vínculo indestrutível ao Verbo redentor. No seu sepulcro, Jesus inumou consigo a humanidade inteira, para dali ela surgir nova. Qual flor que desabrocha, a meditação sobre o Santo Sepulcro é também momento de alegria. Faz-me feliz pensar que todos podemos comungar na esperança que só o amor partilhado traz.


   Este Domingo de Páscoa surge-me solar, caloroso, criador. É certo que ninguém assistiu à Ressurreição, apenas alguns poucos viram o túmulo vazio, só Maria Madalena viu e falou com o Mestre que, aliás, primeiro confundiu com um jardineiro... Interpelando este, confessou que buscava o seu Senhor, e é essa procura que veicula e realiza o primeiro encontro. Contudo, não pode tocar-lhe: Jesus já não é uma presença física, torna-se naquele que, em comunhão eucarística, os seus seguidores deverão, ao longo da história, reconhecer e anunciar através da partilha do pão. O "sagrado" cristão viverá pela fraternidade humana: as bem aventuranças são bênção do Cristo glorioso descendo sobre quem der de comer ao faminto, de beber ao sedento, praticar a justiça e construir a paz. O beneficiário dessa solidariedade é o próprio Jesus, que, com cada um de nós, vive no coração do Pai. Na celebração eucarística e comungante da Páscoa, mesmo quando solitária, mais do que muitos, estamos todos unidos na alegria da libertação da morte pela comunhão fraterna. A Boa Nova não veio para nos ensimesmar. Veio para nos anunciar a vida que é essa alegria de nos amarmos uns aos outros. Efetivamente, na busca e construção da justiça e da paz. 


   Assim este teu amigo, Princesa de mim, foi refletindo na celebração confinada desta Páscoa cristã.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

FELIZ PÁSCOA!

 

   Páscoa é designação que nos remete para a língua, a história e a cultura religiosa do povo de Judá e Israel ou, melhor dizendo, para a sua libertação e saída do território e do jugo egípcio e sequente passagem à terra prometida. Na versão latina da Vulgata, o pertinente salmo de celebração canta: In exitu Israel de Aegypto / Jacob de populo barbaro / facta est Judea sanctificatio ejus / Israel potestas ejus. Afinal é ao poder santificante de Deus que se deve a libertação. Mas na ação de Deus está implícita a vontade passiva e activa do ser humano, como tão bem ilustra o episódio da luta com Deus (ou de Jacob com o Anjo) relatado no capítulo 32 do Génesis (versículos 23 e seguintes): alguém lutou contra ele até ao alvorecer. Vendo que não conseguia dominá-lo, bateu-lhe na articulação da anca, e a anca de Jacob deslocou-se enquanto lutavam. Disse-lhe: «larga-me, porque já se levantou a aurora». Mas Jacob respondeu: «Não te largarei, sem que me tenhas abençoado». - «Como te chamas?» - «Jacob». Então prosseguiu: «Não mais te chamarão Jacob, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e levaste a melhor». Jacob fez-lhe este pedido : «Revela-me o teu nome, por favor». Mas respondeu-lhe o outro: «Porque me perguntas o meu nome?» E ali mesmo o abençoou.


   Seria ele mesmo o inominável, o que respondeu a Moisés dizendo «Eu sou aquele que é» e o mandou dizer aos israelitas que «Eu sou enviou-me até vós»? Aquele que, quiçá até para todos nós - e não só para incréus ou agnósticos - em qualquer momento surge misterioso, interrogação ainda quando se nos afirma e connosco luta, o Quem ou o Quem? que nos defronta em inesperado instante da vida?


   Nesta celebração da Páscoa como festa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, talvez pelo clima de pandemia, muita incerteza e tanta aflição que a envolve, proponho-me pensarsenti-la como se me investisse daquele Jacob que lutou com a presença não evidente de Deus. Por Jesus, com Jesus e em Jesus, Ele partilha connosco um destino que só pode ser o nosso próprio. Chama-nos ao combate, à luta contra a limitação das nossas fraquezas e vulnerabilidades, resignações e preconceitos. A Páscoa de Cristo é passagem, sim, o nosso passo para a liberdade que nem o tempo, nem espaço algum, por muito confinado, poderá diminuir. 


   Feliz Páscoa!

Camilo Martins de Oliveira

 

DESCONFINAMENTO PASCAL

 

Será por vezes difícil entender isso de passar de estado de emergência a calamidade, ou vice-versa. E até me dá urticária ouvir falar em confinados. Recuso-me a estar com finado ou com finados, antes desejo, procuro, quero estar com vivos. Mesmo no chamado Dia de Finados, prefiro pensar na festa dos vivos que por agora não vemos. A situação difícil que hoje vamos atravessando tem, além dos malefícios já impressionantes da própria pandemia, efeitos colaterais mais do que indesejáveis, não só pelas misérias pessoais que, dia a dia, se vão acumulando ao ponto de desastrarem a vida a muita gente, mas também pelas consequências previsíveis, a curto e médio prazo sobre a suas atuais condições de vida económica e social. Tornam-se por isso imperativas e urgentes as decisões e medidas políticas mais adequadas e eficazes ao desagravamento e tratamento possível dos casos de maior expressão, mais clara injustiça e maior necessidade.

 

Mas tais ações não podem nem devem fazer-nos esquecer que, por outro lado, a ameaça sanitária presente e as crises suas resultantes nos forçam a olhar mais pausadamente para as realidades com que deparamos e a interrogar-nos sobre elas, designadamente sobre a justeza e justiça dos modelos sociais, económicos e políticos que temos vindo a seguir, e nos quais depositamos - quiçá leviana ou exageradamente - esperanças de reconstrução. Afinal, todo este drama talvez nos traga também uma boa oportunidade de refletirmos, com menos preconceitos ou preconceito nenhum, acerca de soluções, mais do que reparadoras ou de simples conserto, verdadeiramente redentoras e propiciadoras de metanoias novas a caminho de um mundo melhor que todos desejamos, como diria - e não só em Moçambique - Manuel Vieira Pinto.

 

Emocionamo-nos muito com o espetáculo de tantas misérias pessoais e sociais que as vagabundas notícias que todos os dias nos visitam vêm trazendo. Possa tal emoção mover-nos mesmo a uma atenção e um cuidado mais vivo e ativo, mais solidário com todos aqueles que - sabe Deus desde quando - estão à nossa espera. E desejemos, com toda a nossa verdade, que tal movimento  tenha nascente no íntimo do nosso coração. Por isso, em quadra de Páscoa e mês de Ramadã, fecho este breve texto com uma oração composta por frei José Augusto Mourão, dominicano português, pela Festa da Páscoa de 2011. Encontrei nela um profundíssimo sentido da Eucaristia cristã, sobretudo neste tempo em que tantas celebrações nos estão vedadas em estilo clássico. O mesmo sentido que me atingiu, há uns anos já, ao ler o relato de outro confrade de frei José Augusto, o francês Serge de Beaurrecueil, quando era o único católico residente em Kabul: todas as noites, ao celebrar, sozinho, a missa no seu eremitério de Kabul, frei Sérgio consagrava um naco do pão que, ao almoço desse dia, partilhar com os seus alunos e amigos afegãos e muçulmanos. Escreve frei José Augusto:

 

                      nós te damos graças
                      por este dia, este lugar de trânsito,
                      esta mesa e este pão partido
                      ensina à nossa vida o dom,
                      a graça da partilha,
                      não a predação

 

                      nós to pedimos por Cristo,
                      o dom perfeito para todos
                      e pelo Espírito, o poço
                      da nossa comunhão no tempo

 

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Domingo da Ressurreição do Senhor, e esta segunda-feira de Páscoa, neste confinamento largo pelo privilégio de já viver exilado e isolado no campo, feito anacoreta (ou retirado no deserto) e monge (em grego, monachos significa sozinho), têm sido dias de nova reflexão sobre o Jesus histórico e o Ressuscitado. Até escrevi, em breve mensagem a uma querida amiga, precisamente em Dia de Aleluia: «A Páscoa é sempre - para mim - um passo difícil, na medida em que nos (me) leva a ir do histórico ao cerne da fé... Os únicos testemunhos coevos  que conheço da Ressurreição de Jesus são os constantes de textos neotestamentários. Tenho pensado na escrita de um texto sobre isto, apesar de, provavelmente, poder interessar a muitos poucos».

 

   Mas, Princesa de mim, sem me esquecer da promessa que te fiz de falar sobre Pôncio Pilatos, Tácito e Anatole France, aproveito esta oportunidade para te traduzir o início do artigo Ponce Pilate do Dictionnaire amoureux de Jésus do historiador francês Jean-Christian Petitfils (Paris, Plon, 2015): Penso muitas vezes na extraordinária e sulfurosa fama póstuma desse prefeito da Judeia que condenou Jesus ao suplício da cruz, quando afinal a gente tudo ou quase tudo esqueceu da vida dos poderosos Césares romanos. Todos os domingos, centenas de milhões o mencionam ao recitar o Símbolo dos Apóstolos ou Credo de Niceia-Constantinopla: «Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado...»

 

   Sub Pontio Pilato: tal referência nada tem de despicienda. É mesmo essencial para os dados da fé. Significa que a Incarnação não é um mito, um conto de fadas, aquilo, precisamente, que dela dizia o filósofo incréu Paul-Louis Couchoud no seu "Mystère de Jesus" (1924). Pois que, para ele, Jesus não é uma personagem histórica, mas uma figura mítica idealizada, um ser divino paulatinamente elaborado pela consciência cristã. «Admito todo o Credo, escrevia ele a Jean Guitton, menos essa inclusão de sub Pontio Pilato.» A presença intempestiva do prefeito romano num texto cristão incomodava-o. Já que ela é, pelo contrário, uma caução histórica da existência de Jesus.

 

   Apoiando-se nos escritos coevos de cronistas como Flavius Josephus, Fílon de Alexandria  e sobretudo Tácito, os historiadores durante muito tempo consideraram que Pilatos era "procurador" na Judeia. [Na verdade, como se veio a verificar depois, por uma lápide descoberta no teatro romano de Cesareia, o seu título (e sua função ali), no reinado de Tibério, ao tempo de Jesus, era o de "Prefeito", isto é, administrador público exercendo poderes militares e judiciais, sendo nessa sua capacidade que interveio no processo do Nazareno].

 

   Não sabemos bem se a aposição do Titulus damnationis  (razão da condenação), inscrito numa tabuinha de madeira no alto da cruz, era prática corrente. No caso de Jesus, o título INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), terá sido redigido por Pôncio Pilatos. Tal redação consta do Evangelho de João, transcrevendo o que testemunhas oculares observaram. É interessante reproduzir nesta carta para ti, Princesa de mim, um comentário de Jean-Christian Petitfils. Traduzo:

 

   Foi intencionalmente que os sumos-sacerdotes Anás e Caifás denunciaram Jesus como perigosos Nazareno, não enquanto habitante da insignificante aldeia de Nazaré, na baixa Galileia, mas antes como membro do clã davídico que tinha esse nome que assim fazia dele um pretenso Messias político.

 

   Ao interrogar Jesus, Pilatos tinha-se dado perfeitamente conta de que o prisioneiro nada tinha a ver com qualquer chefe de bando com aspirações a uma realeza temporal. Tinha-lhe dito: «O meu reino não é deste mundo». E vira bem como os sumos-sacerdotes o procuravam manipular. Mas, fingindo segui-los, ordenou que o texto fosse inscrito nas três línguas utilizadas na Judeia: em aramaico, língua corrente; em latim, língua oficial do império; e em grego, usado nos meios comerciais e trocas internacionais.

 

   Estigmatizando assim a expectativa messiânica de Israel, Pilatos troçava dos sumo-sacerdotes e dos que haviam tentado obrigar a condenar Jesus. Escreve S. João que «essa tabuleta foi lida por muitos judeus porque o lugar onde crucificaram Jesus era próximo da cidade». Quando perceberam que tinham sido enganados, Anás e Caifás protestaram: «Não devias escrever "Rei dos Judeus" mas que "ele disse que era Rei dos Judeus"». Pilatos logo arrumou a questão: «O que escrevi está escrito».

 

   Petitfils, e outros historiadores nossos contemporâneos deduzem da leitura do texto grego original, em que essa resposta de Pilatos, dita em grego, sofre todavia de latinismo, terá si registada por testemunhas presenciais, entre as quais estava o próprio João Evangelista, que seria membro da alta aristocracia de Jerusalém e assim a teria recolhido da própria boca do Prefeito romano.

 

   Aliás, em muitos passos do seu Evangelho João insiste em referir testemunhos presenciais, muitos deles seus próprios. No relato da Paixão e Morte de Jesus é meticuloso na nomeação das pessoas presentes aos atos sucessivos que vai narrando, bem como no próprio silêncio em redor da Cruz. O texto de João é surpreendentemente magnífico pela sua íntima densidade, oferecida num cenário quase cinematográfico: ao assistirmos a uma cena, simultaneamente vamos descobrindo e pensarsentindo um mistério que apocalipticamente nos penetra. 

 

   Ao lermos o capítulo 19, Princesa de mim, vimos com minúcia o exterior aparente dos atos e dos factos, e podemos imaginar os rostos dos presentes, mas também sentimos o que tantos silêncios nos dizem da perplexidade e do sofrimento anímico das pessoas. É uma reportagem.

 

   Mas o capítulo 20 "apenas" interpela o íntimo dessa gente e de nós mesmos perante a revelação e manifestações posteriores de um facto único, que ninguém presenciou nem podia presenciar: a Ressurreição do mesmo Jesus que víramos morrer e ser sepultado. É um apelo à metanoia.

 

   Pois muitas vezes pensossinto que uma coisa é a nossa compreensão, outra será o poder de Deus. Aliás, este nem sequer poderá bem ser o que por poder entendemos. Tenho para mim, desde a minha mais tenra adolescência, que o poder de Deus não é qualquer faculdade de impor sem interrogar, de obrigar sem consulta.  Antes me soa como um apelo, uma chamada a sair dos meus limites, para ir ao encontro do que não conheço, ou ainda não sei entender. Nesse sentido se abre para mim a religião como espaço e tempo de libertação. Isto que te escrevo agora, Princesa de mim, ocorre-me neste instante como sendo aquilo que tantas vezes te disse quando te falava de me sentir simultaneamente no tempo mensurável e fora dele.

 

   O tal João Evangelista - de que não tenho foto alguma, nem sei ao certo, nem cientificamente, quem foi exatamente - é meu companheiro e irmão, sei que vivo com ele todos os dias. Confio nele porque me diz o que viu e ouviu presencialmente, e assinala o que ouviu dizer e testemunhar. Afinal, todos nós, seres humanos e limitados, somos honestamente assim: até os cientistas vão tendo cada vez mais de considerar o adquirido por quem os antecedeu. O início do capítulo 20 do conto evangélico de João refere: No primeiro dia da semana, Maria Madalena chega cedo ao túmulo, estando ainda escuro. E vê a pedra retirada do túmulo. Então desata a correr e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que Jesus amava, e diz-lhes: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Saíram então Pedro e o outro discípulo e foram até ao túmulo. Corriam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo; e, espreitando, vê depostos os panos. Porém não entrou. Chega então também Simão Pedro, seguindo atrás dele, e vê os panos depostos, e vê que o sudário, que estivera à volta da cabeça dele, não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então o outro discípulo, o que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu, e acreditou. Ainda não  tinham entendido o passo da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus.

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram». Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e vê Jesus de pé, e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que era o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus : «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabbouni!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmão e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus  vosso.»

 

   A cena do "Noli me tangere" encontra-se largamente representada na iconografia cristã. A tradução literal da expressão latina da Vulgata será "Não queiras tocar-me". O corpo de Jesus ressuscitado é já um corpo glorioso, isto é, incorruptível, intocável. Não é como o de Lázaro  -  que Jesus tirara do reino dos mortos para devolver à vida terrena - um corpo restituído à animação da sua própria carne, como que apenas arrancado à dormição em que se encontrara. O Corpo de Cristo está já noutro mundo, onde nem sequer os seus discípulos poderão ir agora, e no mundo presente é o Corpo Místico que formam, na Eucaristia comum, aqueles que acreditam e se reconhecem pelo amor fraterno. Por isso mesmo se celebra, na Eucaristia, o Mistério da Fé como anúncio da morte, proclamação da ressurreição e esperança no regresso do Senhor Jesus, na hora em que todos seremos glorificados com ele.

 

   Mas não deixa de ser curioso que, no mesmo capítulo 20 de João, a seguir ao relato do "Noli me tangere!" e do anúncio feito por Maria Madalena, bem como da presença inesperada de Jesus que surge no meio dos seus discípulos reunidos numa casa totalmente fechada (pois tinham medo dos judeus), atravessando barreiras físicas e apresentando o seu corpo glorioso, seja também narrado o episódio da permissão dada a Tomé, uma semana depois, de tocar as feridas visíveis no mesmo corpo, para que, assim confirmando a sua realidade, acredite que é o corpo ressuscitado que tanto padecera... «Meu Senhor e meu Deus!» - exclama o desconfiado discípulo. «Porque me visteacreditasteBem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Tal como quem não experimentou ainda a sua morte, não sabe o que esta é e apenas pode sofrer com a de outros, assim também quem ainda não ressuscitou terá de se contentar com acreditar na Ressurreição e esperar a sua. O próprio Tomé, mesmo depois de ter visto e tocado, terá tido que acreditar. A divina misericórdia interroga a nossa esperança.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:  

 

   Eis como vou vivendo esta  Semana Santa: em quarentena que me aproxime de familiares e amigos, e de ti, Princesa de mim, na contemplação de mistérios que, menino e moço, aprendi a guardar em labor de contínua cultura. Também me dá para novamente mergulhar nos labirintos secretos da literatura japonesa, talvez por me desafiarem a repensarsentir o nosso próprio universo. Acontece-me, aliás, ser levado por atalhos de regresso ou de vaivém, como quando autores nipónicos do início do século XX se inspiram em Stendhal ou Flaubert, sem esquecer Anatole France, que um romancista japonês me recordou, e do qual um encontro com Pilatos na leitura da Paixão de Jesus Cristo me fez reler Le Procureur de Judée.

 

   Para quem, como eu, viveu alguns anos no Japão, a leitura de textos históricos e literários, mesmo da Bíblia, ganha, em paralelo  ao seu propósito espiritual, e deste por vezes extravasado, um sabor exótico acentuado pelo próprio ambiente climático e cultural em que tal leitura se vai então fazendo. Jerusalém, a Judeia e a Galileia do tempo de Jesus não têm vida nem história entendíveis sem a perceção de Roma e do seu poder, ao ponto de ser até fácil cair-se na tentação de cotejar duas cidades mediterrânicas tão carismáticas e imaginar algum tribuno romano a reclamar delenda est Jerusalem! , como aliás veio a acontecer com a destruição do Templo no ano 70 D.C. E, por outro lado, também imaginaremos cheiros, alimentos, encontros e ruídos familiares, contrapondo-os à humidade do clima japonês, que o calor estival anualmente torna pesado, sudorífero e silencioso. Quando estamos no campo, sobretudo na montanha pouco habitada, abandonamo-nos a essa atmosfera, entregamo-nos a uma meditação telúrica com a natureza, como se nesta também a transcendência repousasse. Esquecemos a distinção mediterrânica, linear, da luz e da sombra, a verticalidade grega de uma iluminação vinda de cima. E percebemos melhor o porquê de São Francisco Xavier ter desistido de achar na terminologia shintoísta ou budista palavra que dissesse Deus, ao que parece quando descobriu que até a palavra kami  significa os espíritos, mesmo imanentes (como árvores, águas ou rochas) do universo. Por isso os nossos jesuítas optaram pelo nome latino e português de Deus que, em romaji ou caracteres latinos para transcrição fonética do japonês de então, se escreveu Daesu.

 

   A revisão literária "ocidentalizante" que se iniciou na Era Meiji e se prolongou pelos períodos Taisho e Showa, na primeira metade do século XX, trouxe à ribalta das letras nipónicas formas de tratamento dos comportamentos e paixões mais conformes aos cânones das escolas romântica, realista e naturalista europeias. Mas delas se apoderaram sensibilidades japonesas, que lhes trouxeram um gosto mais paciente do pormenor e outra delicadeza e profundidade. Sobretudo, talvez, um pouco mais de penumbra, um jeito mais sombrio de aproximar e contemplar humanos corações e mentes. Algo bem chegado ao mistério essencial da humanidade e do mundo, tal como sentido por imanência. Tenho para mim - reconhecendo todavia tratar-se sobretudo de pessoal sensibilidade - que a espiritualidade japonesa mais próxima da nossa se encontra no ensinamento Zen. Talvez por uma certa mística do vazio como visão. Ou por uma qualquer possível intuição metafísica de Deus que, todavia, no cristianismo se revestiu da humanidade de Pai. Diz o preceito da oração de Jesus: Pai Nosso... O mesmo a que, na agonia humana da morte, o mesmo Jesus interroga: Meu Pai, meu Pai, porque me abandonaste? Como, ao longo de séculos, a todos nós tem acontecido fazê-lo.

 

   Le Procurateur de Judée, a novela histórica de Anatole France que te referi, conheceu várias edições, a primeira em 1902, tendo Leonardo Sciascia, que dela publicara uma tradução para italiano em 1980, escrito um posfácio para a edição francesa de 2005 (Paris, Payot et Rivages) de que seguidamente te verto alguns passos:

 

   Tácito, Anais, Livro III: «Entretanto, em Roma, Lepida que, além da nobreza dos Aemilii, se reclamava da ancestralidade de L. Sila e C. Pompeu, foi acusada de ter fingido dar à luz um filho nascido da sua relação com P. Quirinius, homem rico e sem descendência. Era ainda acusada de adultério, envenenamento, e de ter consultado magos caldeus sobre a família do imperador». Estamos no início da década de 20, depois do nascimento de Cristo, e Tácito narra o caso de Lepida como exemplo da corrupção de que eram então presas as grandes famílias. Na realidade, trata-se de ação movida por um marido, a fim de negar a sua paternidade de um filho que sua mulher, da qual estava separado tinha fingido ter tido. Duplo delito, pois, ao qual, diríamos nós hoje, no decurso da instrução, se acrescentam adultério, tentativa de envenenamento, manigâncias com magos caldeus que prefiguram crime de lesa majestade. Tácito não fala em cúmplices nem corréus. Dezanove séculos mais tarde, Anatole France inventa um: Lucius Aelius Lamia: «Acusado de  manter relações criminais com Lepida, mulher de Suplicius Quirinus...» [há aqui um pequeno engano, esse Quirinus não se chamava Sulpicius, mas Publius] E a partir da condenação ao exílio que fere o adúltero Lamia se desenvolve uma narrativa curta e perfeita, quiçá uma das mais perfeitas do género.

 

   Tal conto é, na opinião de Leonardo Sciascia, e na minha, uma homenagem paradoxalmente subtil e descarada àquilo que terá sido o ceticismo e o espírito de tolerância de Tácito, tal como te lembrarei na próxima carta. Por hoje, em tarde cinzenta e atenta de 4ª. Feira Santa, vou recolher-me na escuta da versão original, para orquestra, das Septem Verba Christi in Cruce, de Joseph Haydn, considerada uma das obras mais representativas da música do Iluminismo, composta por um pedreiro livre sobre palavras dos evangelhos da Paixão de Cristo. Aliás, a única voz humana que se ouve, recitando-as, é de um narrador. Na gravação, que irei acompanhar hoje, de Le Concert des Nations, de Jordi Savall, registam-se também textos de Raimon Panikkar e José Saramago. Pela mão deste interrogarei também a minha fé:  ...E eu respondi-lhe:« Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens». ...   ...E agora, Deus Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?

 

   Estas cartas, afinal, são apenas desabafos. Para nos ajudarem a pensarsentir, juntos, esta Páscoa em confinamento.

 

   Amanhã, voltarei ao que estava a dizer-te...

 

 Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

O CALVÁRIO DO MUNDO E A SANTA ESPERANÇA

Cristo com a Cruz _ filme de Pasolini.jpg

 

1. Pascal, um dos maiores matemáticos e cristãos de sempre, tinha prevenido nos Pensamentos: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos. É preciso não dormir.”

Na Paixão de Jesus, estamos todos, pois os figurantes são exactamente os mesmos: Judas que não percebeu Jesus (esperava um messianismo de poder político) e o entregou; os sacerdotes do Templo, Herodes, Pilatos, que o condenaram à morte e morte de cruz; Pedro, o homem generoso, mas que, por cobardia, o negou; os discípulos que, apavorados, fugiram; os soldados que o torturaram, cumprindo ordens; o Cireneu que, embora um pouco forçado, o ajudou; os dois, talvez “terroristas”, que o ladearam na cruz: um continuou a blasfemar, o outro compreendeu e Jesus prometeu-lhe o Paraíso com ele naquele próprio dia; o centurião reconheceu:”Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”; as mulheres nunca o abandonaram e ali estiveram em pé. E Jesus, que, no Getsémani sentiu pavor e pediu, em lágrimas e suando sangue, a Deus, seu Pai, que, se fosse possível, o libertasse daquele horror, talvez, transportando a cruz, o tenha assaltado a dúvida: valeu a pena?; morreu, perdoando a todos; sentindo-se abandonado e só, gritou aquela oração que ecoa através dos séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, mas continuando a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

Contra o aviso de Pascal, não tínhamos estado atentos e adormecemos. E a Semana Santa estava quase exclusivamente centrada em rituais, em procissões gloriosas com esplendor, e em férias esbanjadoras. A cruz de Cristo foi (já não é?) frequentemente ultrajada em cruzes peitorais de ouro, prata, e pérolas preciosas embutidas. E tínhamos continuado a ser réus do Corpo e do Sangue do Senhor, porque enquanto uns comem lautamente e se embebedam outros morrem de fome, como acusou São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios...

Mas, de repente e sem contarmos, com esta pandemia que invade o mundo todo, fomos obrigados a acordar da letargia em que vivíamos e a parar. Como me escreveu, na Quinta-Feira Santa, um grande médico, cireneu lutador no Hospital de São João do Porto, enviando-me “um enorme abraço neste momento quase não-pensável, de um vazio enlouquecedor... e uma dor invisível quanto insuportável”, “há algo de simbólico, de quase premonitório neste tempo da PAIXÃO”. Por isso, eu digo que, com excepção da primeira, talvez nunca tenha havido uma Semana Santa tão verdadeira como a que estamos a viver. É preciso realmente não dormir, pois estamos convocados para reflectir a fundo sobre a primeira Semana Santa dramática, há 2000 anos, tirando todas as consequências dela, exigentes, certamente, mas ao mesmo tempo portadoras da esperança verdadeira para a vida autêntica neste mundo para o futuro da Humanidade, e abrindo para a transcendência da Vida plena em Deus, para lá de todos os horrores.

Por quem é que Jesus foi mandado matar e porquê? Ao contrário do que demasiadas vezes foi proclamado, ele não morreu porque Deus o tenha enviado para, pela sua morte, pagar uma dívida infinita da Humanidade a Deus e, assim, aplacar a Sua ira. Jesus não é vítima de Deus, mas vítima dos homens. Deus não precisa de vítimas. Jesus é mandado assassinar precisamente porque o Deus que ele anuncia não quer vítimas, e há demasiadas vítimas no mundo.

Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus, o Mistério Sagrado, Pai-Mãe, Amor incondicional para com todos, a começar pelos mais frágeis e abandonados, as vítimas da injustiça e de sistemas opressores. Assim, como consequência, anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, aquele Reino no qual não há opressão nem injustiça, Reino do amor, da justiça e da paz. Por isso, opôs-se à religião do Templo e à imagem do Deus em nome do qual os sacerdotes, os fariseus e os doutores da Lei oprimiam o povo. Jesus ergueu-se contra a Lei, mostrando que o mais importante é a pessoa na sua dignidade divina, todas as pessoas sem excepção, e curava doentes ao Sábado, dia absolutamente sagrado, comia com pecadores, prostitutas, publicanos... E proclamava: “Ide aprender: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e misericórdia.” Evidentemente, a classe sacerdotal e os doutores da Lei viram os seus privilégios e interesses em perigo, ameaçados, e, por isso, condenaram-no.

A sua doutrina e as suas obras, embora ele nunca quisesse tomar o poder político — disse que tinha vindo para “servir, não para ser servido” —, colocavam igualmente em causa os interesses imperiais de Roma e, por isso, o representante do Império, Pôncio Pilatos, condenou-o à morte, mandando que fosse crucificado.

Jesus acabou por ser morto como blasfemo religioso e subversivo social e político, dando testemunho da Verdade e do Amor e proclamando que Deus não quer mais crucificados.

É isso: andávamos apressados, distraídos, adormecidos. É tempo de ir ao essencial. Neste drama, sempre presente, mas agora de forma brutal, paroxística, qual tem sido o nosso papel e que papel queremos desempenhar? A Igreja, concretamente, terá de recentrar-se, porque tem de saber que o centro não é de modo nenhum o poder, rituais imperiais, mitras e barretes cardinalícios, mas apenas o serviço a favor de todos. Muitos perguntam agora: Onde está Deus? Jesus respondeu que no Juízo Final não nos será perguntado pelo ritual, mas pelo amor, concretizado no que fizermos aos outros, nomeadamente aos desgraçados: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, estava nu (nu de vestido, de honra, de dignidade...) e vestiste-me, estava no hospital, na cadeia, e foste visitar-me”. Perguntaremos: “Quando te fizemos (ou não fizemos) isso, Senhor?”. “Sempre que o fizeste a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizeste”. Ele, ela, sou eu.

Onde está Deus hoje, no meio desta catástrofe? Está nos hospitais, nos lares, nas casas, nas empresas..., em todos os crucificados e naqueles e naquelas que, mesmo no meio de perigos e até correndo o risco de morte, procuram por todos os meios curar, dar alento, aliviar a dor, dar esperança, brincar com as crianças, animar e alegrar os outros com um telefonema, com música, consolar os tristes e mais idosos, pôr o país a funcionar minimamente... Esses são “os santos da porta ao lado”, como disse o Papa Francisco.

 

2. “E dando um grito forte, Jesus expirou”, diz o Evangelho.

A morte é sempre paradoxal: ela é biologicamente natural, faz parte da vida, mas, por outro lado, apresenta-se-nos como o maior enigma e mistério. Porquê? Porque o ser humano não se reduz a biologia. Por isso, na longa história da evolução (13.700 milhões de anos), sabemos que há pessoa humana, quando surgem a consciência da morte e rituais funerários. Aí, sabemos que já não estamos perante algo, mas alguém. E a morte angustia-nos, porque é o confronto com a ameaça do nada. “Para onde é que eu irei, quando cá já não estiver?”: pergunta lancinantemente Tolstoi em A morte de Ivan Ilitch. Como é que alguém se pode tornar ninguém, coisa que apodrece?

No presente pesadelo pandémico até a morte se torna ainda mais pesada. Na Quinta-Feira Santa, celebrei na minha terra o funeral de um irmão meu, falecido na Terça no hospital com cancro. Não poder haver uma despedida condigna, com tempo, porque até o ritual tem de ser distante, parco e apressado, não se poder chorar agarrado a alguém que também chora, não se poder abraçar, beijar, termos de parecer indiferentes uns aos outros, num vazio plúmbeo e silêncio de breu — isso pode ser, é mesmo, profundamente desolador. Para não falar daquela cena na Itália, que poderá repetir-se noutros lugares, arrasadora, de uma marcha lenta de camiões transportando, empilhados, os caixões de tantos mortos. Para onde se encaminhava a marcha? E volta, mais intensa, densa e dramática, para não dizer trágica, a pergunta: para onde vão os mortos?

Para a eternidade vamos: a eternidade do nada ou a eternidade do Deus criador e salvador.

É aqui, nesta perplexidade de abismo, que se trava o combate decisivo da fé e da esperança. Outra vez Pascal: “Incompreensível que Deus exista e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc.”. Mas continuamos a perguntar, sem fim, como Heinrich Heine: “E continuamos perguntando,/uma e outra vez,/até que um punhado de terra/nos cale a boca./Mas isto é uma resposta?”

E Jesus? Ele é o Crucificado, morreu na cruz. Mas, se ele fosse apenas o crucificado, não passaria de um homem bom que quis revolucionar a imagem de Deus e do Homem, mas não passaria de mais um crucificado e não haveria cristianismo. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”: foi por causa desta proclamação que o cristianismo venceu, disse-me um dia o filósofo ateu, mas religioso, Ernst Bloch. E lembro E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que, na sua obra A Figura Histórica de Jesus, quis dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé. Conclui, como ficou dito, que é possível saber que o centro da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, “depois da sua morte, seguidores fizeram a experiência do que descreveram como ‘ressurreição’: aquele que tinha morrido realmente apareceu como ‘pessoa viva, mas transformada’. Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Assim, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu pelo mundo e mudou a História. Grande parte da Humanidade foi atingida por esse movimento e pela esperança que transporta de Vida eterna.

Por mim, faço minha a confissão de fé do teólogo Hans Küng, o teólogo considerado rebelde. Recentemente, uma irmã perguntou-lhe: “Acreditas realmente na vida depois da morte?” E ele: “Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma confiança irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur, non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo”.

Permita-se-me, neste contexto, deixar aqui as palavras que pronunciei no funeral do meu irmão, diante do caixão aberto: “O meu irmão acreditou sempre em Deus, no Deus que é Amor, Pai-Mãe, como nos foi revelado por Jesus, na sua pessoa, por palavras e obras. O meu irmão entregou a sua vida ao anúncio do Evangelho, a mensagem boa e felicitante de Jesus, e fê-lo por palavras, obras e atitudes. O meu irmão não está aí morto. Nem sequer se pode propriamente dizer que partiu para Deus. Na morte, o meu irmão tomou consciência plena de que foi em Deus que sempre existiu e é, como foi anunciar São Paulo a Atenas: ‘É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos’. Assim, o meu irmão nunca esteve tão vivo nem nunca foi tão feliz.” Como é ninguém sabe.

É esta “a Santa Esperança”, como lhe chamou Charles Péguy.

Boa Páscoa para todos!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 ABR 2020

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Noites insones me vão oferecendo tempos de leitura que, deixando-me cair na tentação de viajar no tempo e no espaço, vou cedendo à novelística e poesia japonesa. Há um qualquer mistério de mim, mesmo para mim, nessa contemplação, ou espiritual comprazimento, de visões nipónicas... Por estranhas e distantes que sejam as suas origens, misturam-se-me cá dentro, sinto-me assim como o lado de lá daquele pântano japonês de que fala o Shusako Endo e tudo digere e recria... Nesta noite de longa vigília que tarde acabou, muito longamente penseissenti este haiku de Yamaguchi  Seishi, poeta nascido no início do século passado (1901), primeiro de uma série inspirada por visita aos túmulos imperiais de Mukden:

 

                     Ryo samuku
                     Jitsugetsu sora ni
                     Terashiau

 

   Versos de 5, 7, 5 sílabas que, a meu livre jeito, assim traduzo:

 

                     Gélidas tumbas:
                     no alto céu, sol e lua 
                     se contemplam

 

   Inexorável, a morte de humanos deixa indiferentes os astros. De nada valerão, a reis e imperadores, os monumentais túmulos que pretendiam abriga-los. Mas, ao recordar nestes dias tantos familiares e amigos que, há bem pouco, repentinamente, deixei de poder ver fora da saudade, e ainda tanta, tanta, gente que, só por andar na rua e falar a outros, é surpreendida pela morte, reencontro a sageza de São João Evangelista neste trecho do seu evangelho que segue o sinal deixado pela ressurreição de Lázaro:

 

   Então, os príncipes dos sacerdotes e os fariseus reuniram conselho e disseram: «Que havemos de fazer, uma vez que este homem realiza tantos milagres? Se o deixarmos continuar assim, todos acreditarão nele, e virão os romanos destruir o nosso lugar santo e toda a nação.» Então, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não sabeis nada: não compreendeis que é melhor morrer um só homem pelo povo do que perecer a nação inteira?» Não disse isto por si próprio, mas, porque era sumo sacerdote nesse ano, profetizou que Jesus havia de morrer pela nação, e não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus que andavam dispersos. A partir desse dia, decidiram matar Jesus.

 

   Já por várias vezes te disse, e escrevi em cartas anteriores, que nenhum de nós - dos que por cá vamos andando - tem qualquer experiência da morte. Nem pode ter. A morte de cada um é sua própria, única, inexorável e irrepetível. Apenas podemos ter - e tantas vezes temos - a experiência da dor que a morte de outros nos causa. Até o evangelho nos diz que, ainda que consciente da sua própria morte, e ciente do modo e circunstância em que ela lhe viria, o mesmo Jesus, pouco antes, choraria sentidamente a morte de Lázaro, seu amigo. E todavia  sabia que o iria ressuscitar, em sinal inequívoco do poder de Deus Pai. Mas em sinal, também, de que a sua misericórdia não é o entreolhar do sol e da lua, nem se comove pela monumentalidade dos depósitos fúnebres. Antes será movida pela dor verdadeira de que perde um amigo.

 

   A narrativa da ressurreição de Lázaro e sua circunstância, feita no Evangelho segundo João, mexe nesse ponto tão misterioso e profundo da nossa humanidade. O trecho do capítulo 11, que acima te transcrevo, dá-lhe outra continuidade: a justificação que dá Caifás para que Jesus seja sacrificado (impõe-se que um homem só morra pelo povo) é mais do que simples argumento de uma razão de Estado. De certo modo, afinal, leva facetas gnósticas daquele evangelista a mergulhar as suas raízes na tradição profética do judaísmo, destituindo ainda esta de carácter nacionalista, para lhe conferir uma vocação universal. A morte e ressurreição de Jesus Cristo não salvará apenas a nação de Israel, mas redimirá a humanidade inteira. Deus Pai não é indiferente ao destino de todos nós.

  

   Talvez para nos levar a meditar sobre isto, a liturgia da Igreja Católica nos proponha a proclamação desse passo do evangelho no 5.º sábado da quaresma, na véspera de Domingo de Ramos, festa da aclamação triunfal de Jesus pelo povo de Jerusalém, a abrir a Semana Maior, ou Santa, esta que terminará no silêncio sepulcral de Sábado Santo, dia de luto absoluto e sem celebrações, depois da memória da Paixão e Morte do Senhor, celebrada em Quinta e Sexta-Feira Santa, e já anunciada e relatada pelo texto de um dos evangelhos sinópticos em Domingo de Ramos. Este ano coube a vez a São Mateus, o que me serviu de convite para uma comovida e atenta escuta do correspondente auto musical de Johann Sebastian Bach. [E sempre me lembro da primeira vez que ouvi a peça, que coincidiu com a minha primeira ida ao Teatro de S. Carlos, em Lisboa, teria eu uns nove ou de anos... Desde então, repito a sua audição anual, seguida, no silêncio de Sábado próximo, da Paixão Segundo São João, do mesmo compositor. E fica-me uma impressão de visita onírica a uma história e um mundo reais, com alguns apontamentos psicológicos que me fazem refletir no paradoxo da nossa condição humana, como, por exemplo, nas diferentes formas de cobardia, de autoavaliação, de arrependimento, de justificação ou de desespero, como nos dramas pessoais de Pedro-que-negou-três-vezes, Pilatos-que-lavou-as-mãos, Judas-que-se-enforcou.]

 

   O que se chama de Mistério Pascal seduz-me desde a infância, quiçá não tanto pela irrupção de um poder divino, como muito mais pela humanidade do encontro de Deus. E não só frequentemente me ocorrem imagens do acolhimento do Pai ao filho pródigo - até já te escrevi um dia que, ao contemplá-las, tanto vejo o filho arrependido como o Pai que também pede perdão- mas calam-se-me bem no fundo do coração essas palavras de São Paulo aos filipenses que lemos na missa de Ramos: Cristo Jesusque era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte na cruz.

 

   [A versão portuguesa deste passo do evangelho que consta dos lecionários e missais em uso, tal como a das traduções diretas do grego, quer a de Frederico Lourenço, quer a do cónego José Falcão, dizem todas morte de cruz. Arrepio-me sempre que assim leio ou ouço, ocorre-me a expressão assinar de cruz. Bem sei que se trata da versão literal do genitivo grego que, aliás, na vulgata latina reza assim: Humiliavit semetipsum, factos obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. E nessas línguas clássicas, tal genitivo não me surpreende nem aborrece. Mas em português, não só me soa muito mal, como nunca entendo porque não hão de tais textos recordar que sempre dizemos: Jesus Cristo morreu na cruz. Qualquer tradução deve encontrar a forma idiomática mais autêntica, isto é, procurar comunicar, mais do que reproduzir literalmente um original.]

 

   Os textos evangélicos buscam, afinal, o verdadeiro pensarsentir de cada um de nós. As suas narrativas trazem-nos a perceção de acontecimentos históricos conservada e cultivada nas memórias e pelas sensibilidades diversas de comunidades coevas ou próximas do tempo de Jesus. Por isso mesmo nos levam sempre a comunhões na esperança e no amor e, simultaneamente à renovação perene, interrogativa e incansavelmente descobridora da fé alimentada por sucessivas gerações de crentes. A cristandade é, tal como o Filho do Pai, que lhe deu o seu nome de Cristo, uma humanidade histórica. O cristianismo não é alguma abstração: é a procura incessante da prática do amor fraterno.

 

   Dizemos que é tácito algo que não se manifesta e permanece calado. Tácito era o nome de um historiador romano do tempo do imperador Tibério e dos primeiros cristãos, que muito pouco ou quase nada escreveu dos mesmos cristãos. Dele te falarei, Princesa de mim, na próxima carta. 

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira