CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ
Estátua de Pêro Escobar no Padrão dos Descobrimentos, foto de Luís Pavão
4. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (II)
1. Prosseguindo viagem eis-me junto ao “Memorial da descoberta/achamento da ilha de S. Tomé a 21 de dezembro de 1470 pelos navegadores portugueses Pêro Escobar e João de Santarém”, onde fica o cruzeiro ou padrão dos descobrimentos, no local do primeiro desembarque.
O acesso é mau, agravado pela ausência da ponte, que ruiu e caiu, forçando os veículos a atravessar a água da ribeira, quando podem e consoante a época do ano, o que foi possível, no meu caso. A degradação é geral, incluindo o monumento, um edifício inativado, mesas e bancos ao ar livre a fazer lembrar tempos idos de melhor preservação.
Degradado, mas não destruído, é um património que merece ser cuidado e reabilitado, quiçá através de obras de conservação e manutenção com a ajuda de parcerias público-privadas portuguesas e do Estado são-tomense.
Apesar da deterioração, há um sossego, uma tranquilidade, uma beleza colorida pela vegetação banhada pelas águas de uma pequena praia à beira mar, que nos “alheamos” da desolação e idealizamos um turismo histórico e cultural reinventado e descomplexado.
2. De seguida, paragem na roça Diogo Vaz, uma das mais antigas, fundada em 1895, localizada num pequeno promontório elevado em relação à cota do mar e organizada sob um eixo perpendicular à costa, ladeado por terreiros em socalcos enquadrados por sanzalas e edifícios de apoio, com a casa principal (escritórios e casa do médico) no extremo oposto, com visibilidade para o mar e todo o eixo da fazenda.
Mantendo a tipologia-base em avenida, sendo a primeira estrutura do género, possibilitou aperfeiçoar e testar o modelo de roça-avenida, para a posterior construção da Rio do Ouro.
Tendo passado por várias fases de construção, reabilitação e modernização, notório na conservação dos edifícios mais emblemáticos, é um dos exemplos de sucesso, de produtividade e rendimento, entre as roças de São Tomé. Prova-o a floresta de cacaueiros de variedades nativas e não endémicas, o chocolate de qualidade que produz, já consagrado como marca, exportado e premiado internacionalmente, que comercializa numa loja elegante na marginal da capital da ilha.
3. A viagem prossegue até ao túnel de Santa Catarina, percorrendo uma estrada que é tida como a mais bonita da ilha, pelo que ouvi e li, o que pude presumir pelos reflexos solares, de tons levemente dourados e prateados, refletidos na água da praia e por entre palmeiras posicionadas uma atrás das outras, vergadas pelo vento, entre a estrada e a beira mar. Naquela hora, com a despedida solar, foi um dos momentos paisagísticos mais deslumbrantes e emocionantes que vivi em São Tomé.
Tudo a apelar a fotografias e vídeos, em vários ângulos, formatos e posições, o que é corroborado com a chegada ao túnel verdejante de Santa Catarina, escavado na rocha, onde a beleza da natureza, com a ajuda humana, predomina.
Não foi fácil chegar, dado o péssimo estado de conservação da estrada na zona de Neves, capital do distrito de Lembá, com enormes buracos, aberturas e desníveis do piso, agudizados pela queda de uma chuva forte e repentina, que deu oportunidade a porcos, cães e toda a gama de animais à solta fazerem bebedouro das covas e fendas rodoviárias, embaraçando o trânsito numa povoação desorganizada, compacta e populosa.
Mais perplexo fiquei quando me apercebi estar ali instalada a fábrica da icónica cerveja Rosema, a única do país, e os depósitos de abastecimento de combustível, tornando incompreensível a degradação que acabara de ver. Respondeu-me, quem me acompanhava, que os camiões de transporte pesado de combustível danificam permanentemente as vias por onde passam, não sendo compensada, em contrapartida, a população local com as melhorias a que devia ter direito.
O dia findava e havia que regressar ao ponto de partida, o que fizemos voltando por Guadalupe, capital do distrito de Lobata.
Deparei-me com uma cidade limpa, organizada, boa estrada de pavimento novo, passeios para peões, sinalética adequada, o que facilitou, e muito, a chegada à Cidade de São Tomé, dado o bom estado de todo o percurso. Enfim, uma surpresa, por contraste com o desleixo de Neves.
Perguntei, a mim mesmo: porquê esta disparidade, se ambas as cidades são capitais de distrito, urbes com indústria, embora Neves seja mais populosa? Não sei a resposta. Mas de uma observação atenta tive a intuitiva impressão de que em Guadalupe há habitações de qualidade acima da média, por oposição a Neves (muitas delas barracas).
Também em Guadalupe, ao passar pela igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, perguntei ao guia se havia em São Tomé algum santo ou santa de origem negra, como Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil. A resposta foi negativa, pelo que sugeri, a ser assim, que podem importar o culto do Brasil. Ou ter santos nativos e negros de São Tomé e do Príncipe, O que faz sentido, pois só têm santos brancos. Ambos, bem-dispostos, rimos. Algum tempo depois, fim de mais um dia.
25.10.24
Joaquim M. M. Patrício