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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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U. UTOPIA E QUINTO IMPÉRIO

 

O folhetim fantasmático chega a um ponto crucial. Tomás Morus celebrizou-se pela publicação do discurso de um português de nome Rafael Hitlodeu, sobre a melhor Constituição de uma República. Esse texto fundamental tem feito correr rios de tinta, sobretudo a partir do seu misterioso título - «Utopia». A etimologia grega remete para uma designação contraditória que significa o que não existe ou não tem lugar… Morus procurou apresentar uma sociedade que pudesse satisfazer a felicidade humana, no entanto a história da humanidade está cheia de exemplos de tentativas falhadas de realizar na prática esse generoso objetivo. Tomás Morus (1478-1535) foi um dos humanistas mais destacados do Renascimento. Foi advogado, deputado à Câmara dos Comuns, «speaker» da mesma Câmara, Vice-Tesoureiro e Chanceler do Ducado de Lancaster até chegar à primeira linha da governação. Amigo de Erasmo de Roterdão, que lhe dedicou o «Elogio da Loucura», este disse de Morus: «É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição, tem horas fixas em que dirige a Deus as suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais fundo do seu coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros». O conflito com Henrique VIII deveu-se à querela sobre a anulação do casamento com Catarina de Aragão. Morus discordou da posição do monarca e demitiu-se de Chanceler – negando-se a dar o seu acordo no sentido da cisão religiosa. Em consequência recusou-se a prestar juramento a Henrique VIII, o que determinou a sua prisão na Torre de Londres, com o cardeal e bispo de Rochester, John Fisher, o seu julgamento e condenação à morte, que ocorreu em 6 de julho de 1534. As suas últimas palavras foram: «morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro». Na história britânica esta execução é considerada das mais graves e injustas aplicadas pelo Estado, por atingir um homem prestigiado e de honra.

Tomás Morus usou sobre a sociedade do seu tempo um método semelhante ao de Erasmo em «Elogio da Loucura» (de 1509). Erasmo pôs a loucura a falar, de modo que se percebesse a imperfeição humana – como Morus foi buscar na sua obra referência aos povos com «instituições tão más como as nossas». Curiosa é que a escolha do cicerone tenha recaído sobre um português, Rafael Hitlodeu, conhecedor do latim e sabedor do grego. Nascido em Portugal, cedo abandonou a fortuna paterna aos irmãos, levado pela «intensa paixão de conhecer mundo». Foi companheiro de Américo Vespúcio e um dos poucos escolhidos para ficar nos confins da Nova Castela, no litoral da América, em contacto com novos povos – tendo desembarcado por milagre na Taprobana, seguindo depois para Calecute, «onde um navio português o reconduziu ao seu país». Reler esse testemunho é compreender que um tal português simbólico reúne diversas qualidades pertinentes e atuais – o desejo de conhecer novos mundos e novas gentes, aliado a uma especial sabedoria, capaz de entender que «o dever mais sagrado do príncipe é pensar na felicidade do povo antes de pensar na própria» ou que «a dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres e felizes». Eis por que razão a descrição da «Utopia» tem mais a ver com um caminho livremente aceite e comummente construído. «Na Utopia, as leis são em pequeno número e a administração difunde os seus benefícios por todas as classes de cidadãos». Não cabe aqui, porém, uma descrição da sociedade encontrada por Hitlodeu na ilha com dois mil passos na sua maior largura… Morus diz não concordar com tudo, «há nos utopianos um conjunto de instituições» que se deseja ver estabelecidas em nossos países. Daí a importância do sentido crítico e da liberdade… E o autor deseja-o, mais do que o espera…

Aproveitamos para seguir as pisadas do Padre António Vieira nas viagens diplomáticas, em representação do rei D. João IV. E deparamo-nos com a presença de Menasseh ben Israel (1604-1657).  Em 20 de abril de 1646, Vieira chega a Haia, vindo de Rouen, com duas missões: discutir o futuro de Pernambuco, na posse dos holandeses, e contactar os sefarditas portugueses sobre a possibilidade de regressarem a Portugal num momento decisivo em que os meios financeiros faltavam, com o Tesouro exaurido por sessenta anos de monarquia dual com a Espanha. O jesuíta conhecia bem o estado de espírito dos judeus portugueses – tinham uma boa lembrança da pátria antiga, mas desejavam liberdade de consciência e garantias de segurança, que a Inquisição não dava. Sem provas documentais, o Padre Vieira ter-se-á encontrado com Menasseh ben Israel, cuja pessoa admirava, partilhando muitas das suas convicções. Era indispensável atrair capitais e mobilizar iniciativas para reconstruir uma economia empobrecida. O facto de os capitais ligados ao comércio das Índias Orientais e Ocidentais estarem nas mãos de judeus e cristãos-novos constituía uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Daí a importância do diálogo com a comunidade judaica. Quem era Menasseh ben Israel? Nasceu na Madeira, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, sendo-lhe dado o nome de Manuel Dias Soeiro. O pai, acusado de práticas judaizantes, teve de partir para a Holanda em 1613 e tomou o nome de Joseph ben Israel, dando a seus filhos os nomes de Ephraim e de Menasseh. Em 1622, encontramos Menasseh como pregador da comunidade, no ano seguinte casado com Raquel Abarbanel. Em 1626, funda a primeira tipografia de caracteres hebraicos. Corresponde-se com Rembrandt van Rijn (que o retrata) e com Hugo Grócio. Semuel ben Israel Soeiro, o filho, prosseguirá a intensa atividade editorial paterna. Em 1651, Menasseh tentará estabelecer pontes com as ilhas britânicas, mantendo contactos com Cromwell. Em 1656 é inaugurada a Sinagoga de King Street e é decidida a construção do hospital de Mile Ende, iniciando-se um grande crescimento da comunidade judaica, sobretudo a partir do reinado de Carlos II, marido de D. Catarina de Bragança. Menasseh está em Londres entre 1655 e 1657, regressando aos Países Baixos em 1657. Morre em Midleburgo em novembro e está sepultado no cemitério judeu de Beit Haym, que fica em Ouderkerk no Amstel, nos arredores de Amesterdão. Diga-se que o rabino Menasseh ben Israel não estava em Amesterdão quando Saul Levi Morteira assinou a condenação de Bento Espinosa, e diz a tradição que se Israel tivesse intervindo tal decisão não teria sido tomada. O Padre António Vieira ficaria nos Países Baixos durante três meses, voltando a Haia a 17 de dezembro de 1647. Se é certo que os resultados práticos não foram grandes, é fundamental o que António José Saraiva descobriu, na sua estada holandesa. Não foi apenas o dinheiro dos judeus que interessou António Vieira, mas a aproximação das teses judaicas. Assim considerou os judeus, a “gente da nação”, um povo laborioso, enriquecedor das comunidades em que se inseriu, em nada podendo perverter os costumes tradicionais da Igreja Católica. E se o capital mercantil dos judeus lhe importou, com resultados práticos, houve igualmente uma preocupação de justificar a aproximação às ideias positivas que poderiam colher-se no pensamento judaico. Daí o sucesso na negociação dos empréstimos para a coroa portuguesa com Duarte Silva, cristão-novo de Lisboa, que abriu caminho aos créditos obtidos nos Países Baixos.  No regresso de Amesterdão que Vieira inicia a escrita, nunca acabada, da “História do Futuro” (1649), e em 1659 da carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, pela qual será processado pela Inquisição (a partir de 1663). O “Quinto Império (profetizado no Livro de Daniel, sucedendo aos Impérios Assírio, Persa, Grego e Romano) localizar-se-ia na Terra, na totalidade geográfica da Terra, e não no Céu”, mercê da convergência de vontades de um Imperador espiritual e de um Imperador temporal, no sentido da criação de um estado de justiça e santidade, de paz universal e de sobriedade. As personagens encontram-se nos diversos mundos e responde a mil enigmas.

 

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A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de agosto de 2022.


«Os Sermões» do Padre António Vieira são na língua portuguesa o exemplo do momento mais alto atingido na prosa por uma língua moderna.

 

A VEZ DO PADRE VIEIRA
Depois de termos sido guiados por Francisco de Holanda na jornada romana, é a vez de trazermos à nossa caminhada o Padre António Vieira, encontrado, com especial agrado em diversos recantos desta peregrinação. E cito-o numa carta de cerca de 1670, onde diz com ironia: “Embarquei-me, com esta última, trinta e cinco vezes e sei pouco: que farão os que viram o mar só do Cais da Pedra até Sacavém”. De facto, Vieira teve uma vida viajada e aventurosa, que originou textos “tão diferentes na matéria e lugares em que foram recitados”. Se a missão diplomática de que foi encarregado em 1650 teve como objetivo a paz com a Espanha e a tentativa de casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe IV, bem como os projetos relativos aos cristãos-novos, a estada iniciada em agosto de 1669 teve como finalidade as diligências para a canonização do padre Inácio de Azevedo e dos trinta e nove jesuítas assassinados em 1570 por corsários calvinistas quando iam para o Brasil. Tratou-se, porém, de uma missão formalmente modesta (que só viria a ter resultado no século XIX), até porque o regente D. Pedro não concedeu autorização para passagem por Inglaterra em visita a D. Catarina, ficando igualmente prejudicado o encontro em França com o seu amigo Duarte Ribeiro de Macedo. Contudo, nesse ano de 1669 Vieira usa da sua influência e concentra esforços no combate junto da Cúria às práticas do Santo Ofício em Portugal de que o próprio vinha sendo vítima, assim como na defesa dos cristãos-novos e ainda na procura de recursos financeiros para a criação da Companhia Comercial da Índia. Era o tempo em que o Padre João Paulo Oliva desempenhava funções de Superior Geral da Companhia de Jesus e pregador oficial do colégio dos Cardeais. Com a fama trazida pelo português de orador carismático, nasce a ideia de lhe dar encargo de pregador para audiências esmeradas.


OS SERMÕES ITALIANOS
Os primeiros sermões deste período não alcançam, contudo, o sucesso esperado, uma vez que são proferidos em português. O Sermão do Mandato e os alusivos a Santo António ditos em Santo António dos Portugueses são notáveis. “É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas, nesse cantinho da terra pura e mimosa de Deus, quis o céu depositar a fé, que dali se havia de derivar a todas essas vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória”. Mas Vieira sabia também que “luzir português entre portugueses e muito menos luzir com a sua luz, é coisa muito dificultosa na nossa terra”. O pregador circula pela cidade e nós procuramos as suas referências: “Mais gosto de ver em Roma as ruínas e o desengano do que foi a vaidade e variedade do que é, e com isto me parece o mundo mais estreito e a minha cela mais larga”. Só em 1672 na festa de S. Francisco d’Assis o padre prega pela primeira vez em italiano e a fama desde logo se difunde. Na solenidade de S. Estanislau partilha o tratamento do tema com o próprio Padre Oliva, que não esconde a grande admiração pelo português. Confessará Vieira que foi em resultado de muita insistência que cometeu a audácia de usar a língua italiana. Chegarão até nós dez sermões e um discurso em língua italiana, havendo mais onze sermões em português. É o encontro com a Rainha Cristina Alexandra da Suécia (1626-1689) e a participação do orador sagrado nos salões desta que irão torná-lo em Roma um reconhecido e maravilhoso artista, confirmando a grande fama trazida desde onde exercera o seu múnus. Quando passamos pela igreja de Salvatore in Lauro, na via dei Coronari, sentimos a presença da Rainha (que viveu no palácio Farnese) e os ecos do orador sagrado. A rua, inaugurada por Sisto IV (sempre continuamos a encontrá-lo), foi da predileção dos romeiros, que aqui encontravam objetos religiosos, e hoje antiguidades e restaurantes.


A RAINHA CRISTINA DA SUÉCIA
Muito provavelmente foi a audição de um dos sermões num ofício religioso em Salvatore in Lauro que suscitou o convite para que em cinco terças feiras da Quaresma de 1674 pregasse breves reflexões sobre o tema “Conhece-te a ti mesmo”, a propósito das cinco pedras da funda de David – a que acresceu o discurso “Lágrimas de Heráclito”. Neste caso, coube a Vieira participar num jogo citadino que se traduzia num confronto entre o riso e o choro, cabendo ao português defender o choro na perspetiva de Heráclito e a Jerónimo Cattaneo o riso em Demócrito. “Se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional, e o uso da razão, é o pranto” – usando o pregador um subterfúgio pelo qual tornava o choro um meio natural de ligar razão e espírito. Aliás, quanto ao tema do conhecimento, a propósito de David, a primeira pedra de cor branca simbolizaria o conhecimento e a transparência; a segunda, de cor negra, representaria a dor do bem perdido; a terceira, vermelha, cor da vergonha, corresponderia ao “pejo do mal cometido”; a quarta, o temor do castigo futuro, sendo amarela e pálida; e trataria a quinta da esperança do gosto eterno, simbolizada pelo verde, cor da esperança – “spes eterni gaudii”. O verdadeiro conhecimento de David e a sua força provinham do fundo da sua alma. “Levai na memória a pedra do conhecimento próprio, e lembrai-vos que sois almas, e almas mortais: levai a pedra da dor do bem perdido, e doei-vos do pecado: levai a pedra do mal cometido, e envergonhai-vos de Deus e dos homens, e de vós mesmos: levai a pedra do temor do castigo eterno, temei mais que todas as pedras do Inferno, o ódio e as blasfémias contra Deus. Levai finalmente, a pedra da esperança do céu, e vivei como que espera salvar-se, e gozar o sumo bem, sumamente”. Este é o período mais alto do pregador, que conquista plenamente as cortes refinadas do Papa Clemente X e de Cristina da Suécia. É aquele em que Vieira, com a proteção papal e livre do controlo da Inquisição portuguesa, pode retomar a perspetiva profético-religiosa que culminará na “Chave dos Profetas”, cuja originalidade e sentido profundo o tempo tem vindo a revelar. O certo é que, já no regresso do clérigo a Portugal, Cristina da Suécia convidará o Padre António Vieira para seu confessor: “Agora, mais que nunca é V. Reverência desejado de uma senhora que por servir a Cristo não quis reinar…”, segundo o próprio Superior Geral em epístola datada de 12 de setembro de 1680. O orador sagrado recusa, porém, o convite, alegando a idade avançada e as doenças que continuam a fazer-se sentir. Nota-se que há uma preocupação dos amigos de Vieira em Roma no sentido de o libertar dos efeitos das ações nefastas dos adversários, que, de facto, continuarão a fazer-se sentir até ao fim dos seus dias, já na Bahia. O pregador compreende a situação, mas prefere terminar a escrita e a publicação da sua obra, que em parte significativa conseguirá.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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   De 25 de abril a 1 de maio de 2022

 

“Padre António Vieira – a arquitetónica do Quinto Império e a carta Esperanças de Portugal - 1659” da autoria de Miguel Real é um pequeno ensaio pleno de interesse, que revela uma faceta menos conhecida do grande orador sagrado.

 

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UMA PRESENÇA INESPERADA

Regressei há dias aos Países Baixos, numa visita familiar, adiada há mais de dois anos pela pandemia. Apesar das previsões meteorológicas anunciarem mau tempo e a proximidade de uma frente polar, houve boas condições, que permitiram um belo regresso. E aproveitei para seguir as pisadas do Padre António Vieira nas célebres viagens diplomáticas, em representação do rei D. João IV. E deparei-me com a presença inesperada de Menasseh ben Israel (1604-1657) nesta peregrinação, ao encontro dos judeus portugueses.  Em 20 de abril de 1646, Vieira chegou a Haia, vindo de Rouen, com duas missões: discutir o futuro de Pernambuco, na posse dos holandeses, e contactar os sefarditas portugueses sobre a possibilidade de regressarem a Portugal num momento decisivo em que os meios financeiros faltavam, com o Tesouro exaurido por sessenta anos de monarquia dual com a Espanha. O jesuíta conhecia bem o estado de espírito dos judeus portugueses – tinham uma boa lembrança da pátria antiga, mas desejavam, no essencial, liberdade de consciência e garantias de segurança, que a Inquisição não dava. Sem provas documentais, sabemos que o Padre Vieira se encontrou com Menasseh ben Israel, cuja pessoa admirava, partilhando muitas das suas convicções. Tal como pensavam os conselheiros económicos do rei, defensores do que designamos como política de fixação, que obrigava a investimentos mercantilistas, era indispensável atrair capitais e mobilizar iniciativas para reconstruir uma economia empobrecida. O facto de os capitais ligados ao comércio das Índias Orientais e Ocidentais estarem nas mãos de judeus e cristãos-novos constituía um motivo para que a diligência defendida pelo diplomata jesuíta representasse uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Daí a importância do diálogo com a comunidade judaica com a preciosa ajuda de um líder religioso e civil de indiscutível prestígio.

 

MENASSEH BEN ISRAEL

Explique-se que Menasseh ben Israel nasceu na Madeira, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, sendo-lhe dado o nome de Manuel Dias Soeiro. O pai, acusado de práticas judaizantes, teve de partir para a Holanda em 1613 e tomou o nome de Joseph ben Israel, dando a seus filhos os nomes de Ephraim e de Menasseh. Em 1622, encontramos Menasseh como pregador da comunidade, no ano seguinte casado com Raquel Abarbanel, de uma família importante. Em 1626, funda a primeira tipografia de caracteres hebraicos, onde publica obras em hebraico, latim, espanhol e português. Corresponde-se com Rembrandt van Rijn (que o retrata) e com Hugo Grócio, sendo figura muito respeitada. Semuel ben Israel Soeiro, o filho, prosseguirá a intensa atividade editorial paterna. Em 1651, Menasseh tentará estabelecer pontes com as ilhas britânicas, mantendo contactos com Cromwell, num primeiro momento com resistências, apesar de uma predisposição positiva por parte da fugaz República britânica. Em 1656 é inaugurada a Sinagoga de King Street e é decidida a construção do hospital de Mile Ende, iniciando-se um grande crescimento da comunidade judaica, sobretudo a partir do reinado de Carlos II, marido de D. Catarina de Bragança. Menasseh está em Londres entre 1655 e 1657, regressando aos Países Baixos em 1657. Morre em Midleburgo em novembro e está sepultado no cemitério judeu de Beit Haym, que conheço bem, e que fica em Ouderkerk no Amstel, nos arredores de Amesterdão. Diga-se que o rabino Menasseh ben Israel não estava em Amesterdão quando Saul Levi Morteira assinou a condenação de Bento Espinosa, e diz a tradição que se Israel tivesse intervindo tal decisão não teria sido tomada.

 

UM DIPLOMATA ESPECIAL

O Padre António Vieira ficaria nos Países Baixos durante três meses, voltando a Haia a 17 de dezembro de 1647. A missão de Vieira era complexa, desde o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, alvo de uma grande pressão diplomática da parte de Mazarino, no sentido de reforço da influência francesa, até ao destino de Pernambuco, mas sobretudo na tentativa de mobilizar recursos para a reconstrução do País – abrindo as portas do comércio marítimo com os territórios africanos e americano aos judeus portugueses da Holanda. Se é certo que os resultados práticos não foram efetivos, é fundamental o que António José Saraiva descobriu, na sua estada holandesa. Não foi apenas o dinheiro dos judeus que interessou António Vieira, mas a aproximação das teses judaicas. Assim considerou os judeus, a “gente da nação”, um povo laborioso, enriquecedor das comunidades em que se inseriu, em nada podendo perverter os costumes tradicionais da Igreja Católica. E como está bastamente demonstrado na reflexão e na oratória, se o capital mercantil dos judeus lhe importou, com resultados práticos, houve igualmente uma preocupação de justificar a aproximação às ideias positivas que poderiam colher-se no pensamento judaico. Daí o sucesso na negociação dos empréstimos para a coroa portuguesa com Duarte Silva, cristão-novo de Lisboa, que abriu caminho aos créditos obtidos em Haia e Amesterdão. E a proposta de solução económica para o reino, enviada a D. João IV em 1643, consagra a necessidade de convergência entre judeus e cristãos, “que esperarão juntos e harmonizados o fim dos tempos sob um mesmo Império temporal e um só Império espiritual de Cristo”. Estamos perante a revelação lenta e gradual do pensamento profético do Padre António Vieira no sentido que virá ser defendido na “Chave dos Profetas”. E é com Menasseh ben Israel, em Amesterdão, que o jesuíta encontrará os fundamentos da complexa ideia de “Quinto Império do Mundo”, baseada no livro de Daniel. Como diz Miguel Real, “o sentido que o Padre Vieira encontrara em Amesterdão fora o sentido total da história e do mundo concentrado num único ano, 1666, e numa única teoria englobalizadora, o Quinto Império do Mundo ou o Reino de Cristo Consumado” (in “Padre António Vieira – a arquitetónica do Quinto Império e a carta Esperanças de Portugal - 1659” – “Revista Lusófona de Ciência das Religiões”, 2008). E, de modo pioneiro, António José Saraiva, em 1972, nos “Studia Rosenthaliana” destacou as semelhanças entre o espírito profético de M. ben Israel e do Padre Vieira, que Hernâni Cidade enfatiza em “Vieira à Luz de um Recente Estudo de António José Saraiva”, in “Colóquio-Letras”, F.C. Gulbenkian, março de 1973. Saraiva salienta o facto de em 1644, nos planaltos da Colômbia, ter sido descoberta uma das tribos desaparecidas de Israel, de Ruben, segundo o pensamento profético judaico, referido por Bandarra; bem como o facto de Vieira ter concluído que a doutrina cristã, de índole eminentemente espiritual, não excluir a doutrina judaica sobre um Messias de ordem eminentemente temporal. De facto, é no regresso de Amesterdão que Vieira inicia a escrita, nunca acabada, da “História do Futuro” (1649), e em 1659 a carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, pela qual será processado pela Inquisição (a partir de 1663), explicitará a síntese obtida, segundo a qual o “Quinto Império localizar-se-ia na Terra, na totalidade geográfica da Terra, e não no Céu”, mercê da convergência de vontades de um Imperador espiritual e de um Imperador temporal, no sentido da criação de um estado de justiça e santidade, de paz universal e de sobriedade. Amesterdão lembra tudo isso.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XV) PADRE ANTÓNIO VIEIRA

 

O Padre António Vieira (1608-1697) é figura ímpar da cultura portuguesa. Com ele estamos perante a maturidade da língua em prosa. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade de todos, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. Sente-se, em cada expressão, em cada ideia, a força mágica dos encadeamentos, das repetições, das sinonímias, das contradições, dos paradoxos, das metáforas, dos símbolos, dos conceitos, do ponto e do contraponto, da proximidade e da distância. Vieira não se resume, nem se limita ao jogo de palavras e de ideias, por detrás desse jogo aparente está uma corajosa defesa de ideias e de causas, que, pela sua determinação e persistência, lhe foram causando os maiores dissabores e os piores contratempos. E é preciso ter uma força muito especial para poder manter-se atual quatro séculos depois do seu nascimento. Vieira foi um homem que procurou pautar-se pela antecipação e pelo critério do futuro, demandando respostas para um transe muito difícil então vivido pelos portugueses. Como pregador precisava de seduzir e de mobilizar vontades, quando a sociedade estava dividida e perplexa. O império temporal vinha-se esboroando, as riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, o “fumos da Índia” avolumavam-se, havia divisões profundas. Havia, por isso, que reconstruir o império em moldes totalmente diferentes, que não padecessem das enfermidades antigas. E o Padre António Vieira retoma então o que os franciscanos espirituais há muito defendiam (na linha do monge calabrês Joaquim de Flora). Mas os exemplos multiplicam-se, com especial subtileza. António Vieira atraiu ódios que juraram pela sua pele, primeiro entre os colonos, depois na corte, entre os invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando, aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido, julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde, partindo de S. Mateus (“É lícito ou não pagar o imposto a César?”, 22,17), verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: “Ó julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos, e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude”. Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no Maranhão: “E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…”. Os Sermões de Santo António aos Peixes, dito também no Maranhão, da 3ª Dominga da Quaresma, pregado na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças. “Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…”. Com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) a finar-se, havia que preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura na nova balança europeia. E a justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na Índia. Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era a tentativa de um repensamento estratégico que tirasse lições dos erros cometidos. Assim foi concebida a “História do Futuro”, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos (1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as “Trovas” do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (o Rei D. João, ali presente na Capela Real). Terminou os seus dias na Quinta do Tanque, a meia légua de Salvador da Bahia, a cuidar da versão final dos Sermões. Com o  amigo e companheiro Padre José Soares, apesar de vicissitudes pessoais, pôde trabalhar intensamente. Em 1688, foi, no entanto, nomeado pela Ordem Visitador da Província do Brasil, como que em reparação depois de mil injustiças e incompreensões, regressando apenas em 1691 também para escrever o que considerou poder vir a ser a cúpula da sua obra – a Clavis Prophetarum, De Regno Christi in Terris consummato, livro que jamais acabaria. em 1696, a saúde agravou-se-lhe irremediavelmente, tanto que teve de partir para a cidade, para o Colégio, que tão bem conhecia, de onde mais não sairia. Aí morreu a 18 de Julho de 1697. Falando de audácia e atrevimento, basta lembrar o poderoso “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda em Maio ou Junho de 1640. «Arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis». Sobre o modo como o Padre Vieira usa a retórica e a oratória está o facto de invetivar duramente a própria Providência Divina, numa linguagem profética semelhante à de Job nos momentos mais desesperados. Perante os insucessos militares no Brasil devidos à intervenção holandesa, o Padre António Vieira dirige-se do púlpito ao próprio Deus, acusando-o de ingratidão: «Mas pois vós, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos holandeses o Brasil, entregai- lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas (que não são menos perigosas as consequências do Brasil perdido); entregai- lhes quanto temos e possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o Mundo; e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais». Usando de poderosa ironia, o orador usa palavras duras, pelas quais pede perdão, justificando as razões de seu desespero: «Não me atrevera a falar assim, se não tirara as palavras da boca de Job, que como tão lastimado, não é muito entre muitas vezes nesta tragédia. Queixava-se o exemplo da paciência a Deus (que nos quer Deus sofridos, mas não insensíveis), queixava-se do tesão de suas penas demandando e altercando, por que se lhe não havia de remitir e afrouxar um pouco o rigor delas»…

 

GOM

 

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Diário de Agosto * Número Extra 

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  TU CÁ TU LÁ

  COM O PATRIMÓNIO 

 

Escrevo ainda de Vila Nogueira de Azeitão, junto de meus Manes e Penates. Há uma leve brisa, mas o calor ainda se não desvaneceu, apesar de estarmos a caminhar para o Equinócio de Outono. Ao fim de trinta e três postais e de outras tantas citações de poemas ou textos de referência, escolhi agora para terminar a série este coelho atrevido de Amadeo de Souza-Cardoso. Acompanha-me há muito. É o símbolo de um entendimento do património cultural em que os tempos se associam e dialogam – ligando sempre o antanho e a contemporaneidade. Procurei, ao longo deste tempo, dizer que o património cultural, começa nos nossos genes que se transmitem pelas gerações, continua no que somos e fazemos, dando vida ao que recebemos e transmitimos e termina na nossa vida do dia a dia. Ontem quando caminhava pela minha querida Arrábida, dei-me a dialogar com Frei Bernardino, cujo espírito está bem presente por aqui. E recitei intimamente um poema de meu padrinho e homónimo Frei Agostinho da Cruz. Mas quando cheguei a casa corri a reler Pedro Tamen e algumas recordações de João Bénard da Costa… Com deleite ali fiquei. Que é a vida da cultura senão esta possibilidade de gozar a paisagem, de percorrer os caminhos ancestrais, de dialogar com os espíritos e de regressar à terra, aos nossos dias. Antes de entrar em casa tive dois dedos de conversa com um vizinho simpático, preocupado com a mudança da hora que me disse ser a ignorância muito atrevida: “Venham aqui para o campo às nove da manhã com noite fechada no inverno e digam-me se isso está bem?”…  Dei-lhe uma nota do meu amigo Rui Agostinho a dizer que tinha toda a razão – e acabámos a falar do tempo em que era o relógio de sol que marcava o tempo… Hoje, aqui estou com um bom pão caseiro como já só encontro aqui, boa compota de marmelo, um queijinho delicioso e um moscatel… Folheio papeis antigos e dou-me com o meu querido Padre António Vieira, que é a melhor maneira de ver com olhos de ver o que nos rodeia…

 

«E quando os homens são de tal condição, que cada um quer tudo para si, com aquilo com que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes três. O mesmo nos sucede. Nunca tantas mercês se fizeram em Portugal, como neste tempo; e são mais os queixosos, que os contentes. Porquê? Porque cada um quer tudo. Nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê, perdem-se muitos. Se Cleofas fora português, mais se havia de ofender da a metade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra metade, que lhe deu a ele. Porque como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer cousa que se dá aos outros, cuida que se lhe rouba. Verdadeiramente, que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal: por isto mais, do que por nenhum outro empenho.
(...) Em nenhuns reis do mundo se vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações estranhas, foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos com satisfação deles, foi impossível, que nenhum rei pôde acomodar, nem com facilidade, nem com felicidade jamais. Mais fácil era antigamente conquistar dez reinos na Índia, que repartir duas comendas em Portugal. Isto foi, e isto há de ser sempre: e esta, na minha opinião, é a maior dificuldade que tem o governo do nosso reino».

 

  Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

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De 8 a 14 de junho de 2015

 

O Padre António Vieira (1608-1697) ainda hoje nos causa admiração, pela palavra, pelo talento, pelo carisma, pela lucidez e pela determinação. Lembramo-nos dos célebres Sermões de Santo António, proferidos em Lisboa (1642) e em S. Luís do Maranhão (1654), em que preparou o futuro e afrontou quantos usavam o seu poder e a sua influência para impor injustiças.

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NUM TEMPO DE PROVAÇÕES
Ao analisarmos o pensamento económico do Padre António Vieira, temos, antes de mais, de entender as condicionantes de que partia. Tratava-se de dar resposta, como conselheiro do Rei, a um difícil desafio que decorria da recuperação da independência política de Portugal em 1640, finda a monarquia dual. Ao apoiar o Duque de Bragança, D. João, e atribuindo-lhe uma legitimidade profética, ilustrada pelas antigas trovas do Sapateiro de Trancoso, o Bandarra, Vieira vai tornar claro que «o desejado», que o povo esperava, não é o rei desaparecido nas areias de Alcácer Quibir, no dia funesto de 4 de agosto de 1578, mas um monarca vivo, que fora aclamado com o fim da dominação estrangeira. Assim se entende que o Sermão de Santo António de 14 de setembro de 1642, em vésperas de votação dos impostos da guerra da Restauração esteja imbuído de uma ideia fundamental de partilha de sacrifícios e encargos pelos três estados do reino. Um sistema de impostos mais equitativo reduziria os sacrifícios exigidos ao povo. E importa não esquecer que uma das razões que levou à Restauração foi a tributação excessiva aplicada pelo poder central sob a administração do Conde Duque de Olivares, a braços com os elevados custos da guerra dos trinta anos. Vieira liga, assim, a equidade tributária, a partilha de sacrifícios à salvaguarda da soberania. Era necessário amealhar recursos para impedir a dominação externa. Se é verdade que as exportações de mercadorias e uma política aduaneira protecionista se revelavam indispensáveis para garantir a independência, não poderia esquecer-se que a Europa estava em guerra, o que aumentava os riscos de insucesso de uma política apenas fundada no aumento da circulação mercantil. Havia assimetrias na distribuição de riquezas das diferentes nações, pelo que Portugal teria de adotar medidas excecionais, com respeito das leis divinas, impedindo o estabelecimento de opressão e injustiças para os povos do reino.

 

EM NOME DA JUSTIÇA
E o orador sagrado invocava o exemplo bíblico: «a costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e com quanta suavidade se deve tirar ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e propagação do género humano (…) Deus tirou a costa de Adão, não acordado, senão dormindo: adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento». A reforma tributária haveria que ser justa, afetando os interesses e privilégios da nobreza e levantando a isenção eclesiástica. Daí a alegoria do «sal da terra», como fator de conservação – eis por que razão a água (o povo), o fogo (o clero) e o ar (a nobreza) se deveriam manter juntos. Essa união e essa complementaridade garantiriam os recursos suficientes para a manutenção do reino – sem pôr em causa a ordem social. O apelo a todos, leva o Padre Vieira a dizer que «vassalos que com tanta liberalidade despendem o que têm e ainda o que não têm por seu Rei não são Povo». O dever de assegurar a partilha dos sacrifícios da restauração e da guerra é de todos. Daí que diga não haver Povo em Lisboa, já que o que se pede ao terceiro Estado deve ser repartido por todos. Serão talvez Príncipes, no sentido em que a todos se solicita o melhor de si. «Deixem todos de ser o que eram para se fazerem o que devem». E recorda a passagem de S. Mateus: «Entrando em Cafarnaum, aproximaram-se de Pedro os cobradores da didracma e disseram-lhe: “O vosso mestre não paga a didracma?” “Claro que paga”, respondeu. Quando chegou a casa, Jesus antecipou-Se dizendo: “Que te parece Simão? De quem recebem os reis da terra impostos e contribuições? Dos seus filhos ou dos estranhos”. E como ele respondesse: “Dos estranhos”, Jesus disse-lhe: “Por consequência, os filhos estão isentos. No entanto, para não os escandalizar, vai ao mar, deita o anzol, apanha o primeiro peixe que nele cair, abre-lhe a boca e encontrarás aí um estáter. Toma-o e dá-lho por Mim e por ti”» (Mt., 17). A obrigação é assim de todos, fora de qualquer interpretação anacrónica, do que se trata é de buscar uma legitimidade política alargada para a causa de D. João IV, rei de Portugal. Mais do que o moderno entendimento de justiça distributiva, encontramos aqui um marcado discurso político de motivação para e de resposta às profundas carências sentidas pelo Reino. E o autor dos «Sermões» bem conhecia o problema, uma vez que tinha sido chamado a contribuir para a reorganização económica do reino, a conciliação com a Holanda em virtude das disputas sobre as conquistas no período da monarquia dual, em especial no caso de Pernambuco, bem como à tentativa de atrair os judeus e os cristãos-novos portugueses para apoio à reconstrução de Portugal. Mais do que o entendimento de um mercantilismo assente na acumulação do ouro, o que está em causa é o que poderemos designar como fixação de riqueza. Haveria que mobilizar os cristãos-novos e os seus recursos, até para os cristãos-velhos se não deixassem iludir pelo poder de Castela. E importaria criar Companhias como as dos holandeses para explorar o comércio, porque por falta deste «se reduziu a opulência e grandeza de Portugal ao miserável estado em que Vossa Majestade o achou (dirigia-se a D. João, em julho de 1643); e a restauração do comércio é mais certo caminho de V. M. o restituir ao antigo». E neste ponto os investimentos caberiam à burguesia comercial e à nobreza, razão pela qual haveria que motivar a todos. A distinção entre cristão-novo e cristão-velho deveria ser abolida e deveriam atrair-se as pessoas e os seus recursos. «Se o dinheiro dos homens da nação está sustentando as armadas dos hereges (…) não é maior serviço de Deus e da Igreja que sirva esse mesmo dinheiro às armas de rei mais católico…?». 

 

UMA NOVA ORDEM

O Padre António Vieira tem consciência plena de que haveria a alterar profundamente a organização do reino e da sua Administração. Combate, por isso, não apenas a opinião nacional retrógrada, mas também os interesses dos poderes dominantes em Portugal, na Europa e no comércio global. Diversos privilégios eram atacados, as próprias receitas do Santo Ofício resultantes do confisco de bens estavam em causa. Havia demasiados interesses postos em causa, de sinal contraditório, enquanto questões de justiça e de eficiência. Os navios portugueses estavam subutilizados, poderiam ter maior carga e ser mais bem aparelhados, devendo navegar no mínimo com 400 toneladas, com 20 peças de artilharia e com mais sentido mercantil. E ainda haveria que reforçar as relações diplomáticas diretas, interrompidas no tempo, diria Rodrigues Lobo, da «Corte na Aldeia». Em suma, havia que atrair os portugueses, homens da nação, de grandíssimos cabedais. O seu retorno ampliaria a população, faria lucrar as alfândegas, facilitaria a redução dos impostos à população em geral e permitiria a Portugal recuperar a influência e os recursos perdidos, bem como reconquistar territórios ocupados durante o período da monarquia dual. Afinal, o regresso dos judeus e cristãos-novos não teria empecilho de natureza divina ou humana, até porque o jesuíta faz questão de se fundamentar no parecer de doutores da Igreja que contrariam nitidamente a lógica redutora e negativa. «Pelas conveniências do comércio, admite Portugal (como se vê em Lisboa, e em todas as cidades e portos marítimos) muitos hereges de Holanda, França e Inglaterra que muito é logo que se admitam e conservemos homens de nação, sendo neles muito maiores as razões do nosso interesse? Tudo o que ganham os mercadores estrangeiros enriquece as suas províncias e pátrias, e o que negoceiam os portugueses fica na nossa». A fixação de riqueza, a criação de excedentes e o equilíbrio que permitisse o reforço da posição portuguesa são assim peças-chave do pensamento de Vieira.

 

Guilherme d'Oliveira Martins