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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVIII


Minha Princesa de mim:


   Apprivoiser l’ Étrangeté, de Claude Lévi-Strauss, aparece encabeçado por uma citação de Platão: Pois que é o mais contrário, acima de tudo, o maior amigo do que lhe é mais contrário... Assim, Princesa de mim, há paradoxos em que os contrários nos surgem como alter-ego do outro. Também é verdade que prudência é grande amiga da perspicácia e, por isso mesmo, ao querer aproximar-me do ignoto, do desconhecido, tenho sempre bem presente aquela definição "agostino-aquinense" da prudência como amor sagaz. Mas hoje vamos deixar Lévi-Strauss falar-nos do padre Luís Fróis. Traduzirei trechos do tal Apprivoiser l'Étrangeté.


   O Ocidente descobriu o Japão por duas vezes: em meados do século XVI, quando os jesuítas, na senda dos mercadores portugueses, ali entraram (mas foram expulsos um século depois); e trezentos anos mais tarde, com a ação naval conduzida pelos Estados Unidos para obrigar o Império do Sol Nascente a abrir-se ao comércio internacional.


   O padre Luís Fróis foi um dos principais atores da primeira descoberta. Papel comparável desempenhou, na segunda, o inglês Basil Hall Chamberlain, de quem Fróis surge hoje como o precursor. Nascido em 1850, Chamberlain visitou o Japão, por lá ficou e lá se tornou professor da Universidade de Tokyo. Num dos seus livros, "Things Japanese", publicado em 1890  e composto como um dicionário, na letra T desenvolve um artigo intitulado "Topsy-Turvy Dom" (
o mundo com tudo do avesso) em que afirma que «os japoneses fazem muitas coisas de maneira exatamente contrária à que os europeus consideram natural e conveniente»...


   ...Se ele tivesse conhecido o tratado de Fróis, teria encontrado um repertório fascinante de observações por vezes idênticas às suas, mas mais numerosas, e conduzindo todas à mesma conclusão...


   
Alimentado pelo seu trabalho antropológico, Lévi-Strauss vai então buscar um interessante termo de comparação das notas de Fróis (séc. XVI) e Chamberlain (XIX) com outras, acerca do Egipto, feitas por  Heródoto no século V antes de Cristo! Diz o grego antigo: «Os egípcios conduzem-se, em todas as coisas, ao contrário dos outros povos.» As mulheres dedicam-se ao comércio, enquanto os homens ficam em casa. E são estes, e não elas, quem tece. E começam a tessitura na parte de baixo do tear, e não pela de cima, como nos outros países. As mulheres urinam em pé, os homens de cócoras... E o antropólogo francês comenta: E não continuo a lista, que põe em evidência uma atitude de espírito comum aos três autores. E acrescenta: 


   Não devemos ver só contradições nas disparidades que enumeram. Têm muitas vezes um estatuto mais modesto: ora simples diferenças, ora presença aqui, ausência ali. E Fróis bem o sabia, pois que, no título da sua obra, as palavras contradições diferenças [em português no texto francês] estão lado a lado. E todavia, nele, muito mais do que nos outros dois autores, existe um esforço para que todos os contrastes caibam no mesmo quadro. Centenas de comparações, formuladas de modo conciso e construídas de modo paralelo sugerem ao leitor que não se lhe assinalam apenas diferenças, mas que todas essas oposições constituem, de facto, inversões. Entre os usos de duas civilizações, uma exótica, outra doméstica, Heródoto, Fróis, Chamberlain, partilharam a mesma ambição: para lá da ininteligibilidade recíproca dessas civilizações, eles insistiam em poder ver relações transparentes de simetria. 


   
Pessoalmente, sempre procurei tentar perceber a razão e o modo de pensamentos, sentimentos e comportamentos que me pareciam estranhos, interrogando-me também, simultaneamente, sobre as razões e modos dos meus próprios. Talvez por isso, cedo compreendi que, antes de qualquer construção mental e afetiva, e por detrás das suas expressões, existe um húmus humano comum, graças ao qual nos podemos reconhecer no que, em primeira abordagem, nos aparecia contraditório. Sei, Princesa de mim, que reincido na tradução de longas citações, mas acho bem deixar-te aqui uma conclusão de Lévi-Strauss:


   Assim, teremos de reconhecer que o Egipto, para Heródoto, tal como o Japão, para Fróis e Chamberlain, tinham uma civilização em nada desigual à deles? A simetria que reconhecemos entre duas culturas une-as ao opô-las. Surgem-nos simultaneamente semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos refletida por um espelho que nos fica irredutível, apesar de nos descobrirmos em cada pormenor. Quando o viajante se convence de que usos em total oposição aos seus o tentariam a desprezá-los e rejeitar com desgosto, na realidade lhes são idênticos quando vistos ao contrário, aprende a domesticar o estranho, a torná-lo familiar. 


   Ao sublinhar que os usos dos egípcios e os dos seus próprios compatriotas estavam numa relação de inversão sistemática, Heródoto punha-os realmente no mesmo plano, e indiretamente dava conta do lugar que cabia ao Egipto segundo os gregos: civilização de respeitável antiguidade, depositária de um saber esotérico ao qual se podiam ir buscar ainda ensinamentos.


   Tal como noutros tempos, posto numa conjuntura comparável em presença doutra civilização, é também pelo recurso à simetria que Fróis, sem o saber, pois era cedo demais, e Chamberlain, sabendo-o, nos deram um meio de melhor compreender a profunda razão pela qual, por volta de meados do século XIX, o Ocidente ganhou o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão lhe propunha.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVII


Minha Princesa de mim:


   A coleção La Librairie du XXIe. Siècle, dirigida por Maurice Olender, publicou em 2011 uma pequena coletânea de escritos do grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulando-a L’AUTRE FACE DE LA LUNE - Écrits sur le Japon (Seuil, Paris). Junzo Kawada recorda, no prefácio a essa obra, uma confissão de Lévi-Strauss que, na apresentação da edição japonesa do seu livro Tristes Tropiques, em 1977revela o seu apego ao Japão:


   Nenhuma influência contribuiu mais precocemente para a minha formação intelectual e moral do que a da civilização japonesa. Por vias bem modestas, sem dúvida: meu pai, artista pintor, fiel aos Impressionistas, tinha, na mocidade, enchido uma gorda pasta de estampas japonesas, e deu-me uma pelos meus cinco ou seis anos. Ainda me lembro dela: era uma gravura de Hiroshige, já muito gasta e sem margens, que representava umas passeantes debaixo de uns grandes pinheiros à beira-mar. 


   Entusiasmado pela primeira emoção estética que ressentira, com ela cobri o fundo de uma caixa que me ajudaram a pendurar por cima da minha cama. A estampa fazia de panorama avistado do terraço dessa casinha que, de semana em semana, eu me entretinha a rechear de móveis e personagens em miniatura importados do Japão, e de que uma loja chamada "La Pagode", situada na rua dos Petits Champs, em Paris, fizera especialidade sua. Desde então, uma estampa veio premiar  cada um dos meus êxitos escolares, e assim foi durante anos. A pouco e pouco, a pasta de meu pai foi-se esvaziando para proveito meu. Mas tal não chegava para conseguir o encantamento que me inspirava o universo que eu ia descobrindo através de Shunsho, Yeishi, Hokusai, Toyokuni, Kunisada e Kuniyoshi... Até aos meus dezassete ou dezoito anos, todas as minhas economias se gastaram em estampas, livros ilustrados, lâminas e copas de sabre, indignas de qualquer museu (já que as minhas só me deixavam adquirir coisas humildes), mas que me absorviam durante horas, nem que fosse para - armado de uma lista de caracteres japoneses - apenas decifrar, laboriosamente, títulos, legendas e assinaturas... Posso portanto dizer que toda a minha infância e parte da minha adolescência se desenrolaram tanto, ou talvez mais, no Japão do que em França, pelo coração e pelo pensamento.


   
Todavia, curiosamente, só entre 1977 e 1988 é que Lévi-Strauss fez umas cinco viagens ao Japão, onde nunca estivera, ele que nascera em 1908. Já depois de ter escrito que, apesar dissonão ignoro as grandes lições que a civilização japonesa tem em reserva para o Ocidente, se este quiser entendê-las: que, para viver no presente, não é necessário odiar e destruir o passado; e que não há obra de cultura digna de tal nome onde não haja lugar para o amor da natureza e respeito por ela. Se a civilização japonesa consegue manter o equilíbrio entre a tradição e a mudança, e se o preserva entre o mundo e o homem, sabendo evitar que este não arruíne nem torne feio aquele, por, numa só palavra, permanecer persuadida, conforme o ensino dos seus sábios, de que a humanidade ocupa esta terra a título transitório e de que tal breve passagem não lhe confere o direito de causar irremediáveis danos a um universo que existia antes dela e continuará a existir depois, então talvez tenhamos uma fraca probabilidade  de que as sombrias perspetivas a que este livro chega não sejam, pelo menos em partes deste mundo, as únicas promessas às futuras gerações...


   
Reconheço, minha Princesa de mim, que esta carta te foi escrita mais pelo Claude Lévi-Strauss do que por este Camilo Maria que a subscreve. São, na verdade, muito longas as citações que aqui traduzo, mas também é certo que a minha convivência de décadas com a gente nipónica e a sua cultura me leva a acordar-me com tudo, ou quase tudo, do que aqui transcrevi do prefácio straussiano à edição japonesa (em 1977?) do seu Tristes Tropiques, cujo original francês foi publicado pela Plon, Paris, em 1955. Aliás, tem sido longa a minha própria reflexão acerca das diferenças culturais, tal como da evolução das culturas de, e em, várias sociedades, da aculturação e inculturações que todos os dias vão medrando por esse mundo em que vivemos ou, melhor, convivemos. Aprendi muito, quanto ao Japão, com o padre Luís Fróis, jesuíta português do século XVI, observador perspicaz e amantíssimo das gentes e coisas japonesas. Em próxima carta, Princesa de mim, debruçar-me-ei sobre um capítulo de L’autre face de la Lune, capítulo esse intitulado Apprivoiser l’étrangeté (que traduzo por "Domesticar a estranheza ou o estranho", no sentido de tornar cá de casa o que nos é estranho, ou seja, também, conviver com a nossa própria estranheza. A fonte de tal capítulo é um prefácio de Lévi-Strauss ao livro Européens & Japonais. Traité sur les contradictions & différences de moeurs, versão francesa (Chandeigne, Paris, 1998) dum escrito do padre Luís Fróis, no Japão, em 1585. Veremos então a bem profunda admiração de Lévi-Strauss pelo nosso missionário quinhentista...

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira