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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O PAI NOSSO E O MALIGNO

 

Levantou-se de repente e de modo totalmente desnecessário uma celeuma à volta do Pai Nosso e de uma possível nova versão.

 

Assim,  a actual versão diz: “Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.” Na nova tradução, passaria a dizer: “Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha o teu reino, seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas ofensas, como também nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos leves à provação, mas livra-nos do Maligno.”

 

Fica aqui a minha oposição a esta nova versão, sobretudo se se quiser introduzir na liturgia. Apresento algumas reflexões sobre o assunto.

 

1. Não tenho objecção especial a que se introduza o “tu” dirigido a Deus. Mas, mesmo assim, chamo a atenção para o perigo de uma possível banalização que se tornou corrente nos dias de hoje. É preciso perceber que Deus se revelou como Abbá, querido Papá, mas ao mesmo tempo perceber que Deus é Deus, infinitamente para lá do “tu cá, tu lá”, como alguns comentadores já chamaram a atenção, de modo agudo e até com alguma acidez. É como os pais e os professores. Alguns querem ser tão próximos e “amigos” e iguais dos filhos e dos alunos que, depois, perdem toda a autoridade e, de “amigos”, passam a ditadores brutais, sem honra nem glória. Porque não sabem ser pais nem professores.

 

2. O que me preocupa é sobretudo pretender trazer de novo o diabo, sob a designação de “o Maligno”, pois ele tem muitos nomes, como Demónio, Belzebu, Mafarrico, Satanás, Satã, Lúcifer... Mas comecemos pela tentação, agora substituída pela provação.

 

Como já aqui escrevi (ver “As tentações e o Diabo”), por influência também do Papa Francisco, está-se a rever, em várias línguas, a tradução do Pai Nosso nesta questão da tentação, porque há o perigo de pensar que é Deus que leva à tentação. Como acontece no latim: “et ne nos inducas in tentationem”, no italiano: “e non c’indurre in tentazione”, no alemão: “und führe uns nicht in Versuchung”, ingês: “and lead uns not into temptation”, francês: “et ne nous soumets pas à la tentation”..., sempre com o sentido de: não nos leves, não nos submetas à tentação. Portanto, há aqui sempre o pressuposto erróneo de que Deus é o responsável pelas tentações que podem levar ao pecado, pois seria Ele que nos conduz à tentação. Ora, se Deus é Amor, não tenta as pessoas. Na Bíblia, na Carta de São Tiago, lê-se: “Ninguém diga, quando for tentado para o mal: ‘É Deus que me tenta.’ Porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém. Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz.” Deus nada tem a ver com o mal, pois Deus é o Bem e o Anti-mal.

 

Significativamente, nas línguas que já mudaram, adoptou-se a tradução que já consta na tradução portuguesa actual: “Não nos deixeis cair em tentação” ou na tentação. 

 

3. Mas fica a pergunta: é o diabo que tenta?

 

Nem de propósito, o Papa Francisco acaba de dizer, numa catequese sobre o Pai Nosso: “Temos de excluir que seja Deus o protagonista das tentações que surgem no caminho dos homens. Como se Deus estivesse à espreita para armar ciladas aos seus filhos. Os cristãos não têm um Deus invejoso, que compete com o Homem, ou que se diverte, pondo-o à prova.” Mas também afirmou: “Alguns dizem: Para quê falar do diabo, que é uma coisa antiga, que não existe? Olha para o que diz o Evangelho: Jesus foi tentado por Satanás.”

 

Começo por esclarecer que o diabo não faz parte do Credo cristão. E, neste tema, é também Immanuel Kant que tem razão, ao colocar na boca de um catequizando iroquês uma excelente pergunta, a partir do pressuposto de que o diabo é preciso para explicar a tentação: Se os diabos nos tentam, quem tentou os anjos, para, de anjos bons, se tornarem anjos maus, diabos?

 

Quando se fala no diabo, é essencialmente para encontrar uma reposta para o mal, personificando-o. Ora, colocar o diabo ao lado de Deus, como se fosse um anti-Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude. Deus não pode criar outro Deus e, por isso, o mundo finito, em processo, encontra becos sem saída, contrariedades, conflitos, sofrimentos... Mas há quem não acredita em Deus, mas acredita no diabo.

 

O diabo não é preciso para explicar as tentações. O ser humano, dada a sua natureza finita, carente, tensional, animal-racional, é sempre tentado, isto é, seduzido pelas “vantagens” aparentes do mal, e pode cair na tentação e, em vez de praticar o bem, praticar o mal e o pecado. E o que é o pecado? Aquilo que, pelo mau uso da liberdade, nos faz mal, a nós e aos outros. Por isso, tem sentido pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação, na tentação, e que sejamos responsáveis, convertendo-nos.

 

E há tantas tentações a seduzir-nos! A tentação da vaidade, da corrupção, da vingança, da preguiça, da utilização dos outros como simples meios, da ostentação, a tentação do laxismo caótico, de legislar a favor de interesses próprios ou do partido em vez do interesse do bem comum, a tentação de ensaio de jogos políticos indecorosos a pensar apenas nas eleições, a tentação da luxúria, a tentação do consumismo idiota, a tentação de não pagar o salário justo, a tentação do poder como domínio, a tentação de promessas eleitorais irresponsáveis e não cumpríveis, a tentação da retórica sofista, a tentação do roubo e de uma deletéria administração na Banca e, a seguir, claro, a tentação do “esquecimento” e da mentira, a tentação do clericalismo e do carreirismo na Igreja, a tentação do poder e dos abusos sexuais... Atente-se: tudo isso nos aparece como  vantajoso e, portanto, sedutor.  Então, o que é preciso? Estar atento para não ir no engano; pelo contrário, ser ético, manter a dignidade, estar atento para não cair na tentação. O que é que se pede então a Deus? Que tenhamos atenção, que não pratiquemos o mal.

 

4. Senhores bispos, ele há tanta coisa na Igreja que precisa urgentemente de ser mudada! Quanto ao Pai Nosso, por favor, deixem estar como está. Tanto mais quanto a mudança só vai criar mais confusões, desnecessárias. Esteve bem o bispo de Lamego, António Couto, quando, a este propósito, sobriamente, disse à jornalista Natália Faria, do Público: “É possível que haja um aspecto ou outro... mas temos de usar os rituais que são universais. Isto está tudo testado.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 5 MAI 2019

FELIZ PÁSCOA!

"A Ceia em Emaús" por Caravaggio, 1601. Atualmente na National Gallery, em Londres.  

 

   Muitas vezes me perguntam porque faço sempre votos de Feliz Páscoa e nunca digo Santa Páscoa. Pela simples razão de desejar a todos e cada um a feliz viagem a partir da porta que Jesus abriu para que, passando por ela, caminhemos à descoberta da boa nova que Cristo assim anuncia na narrativa de S. Lucas lida na missa crismal de 5ª feira santa: Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, ao abri-lo, encontrou o trecho em que estava escrito «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor». Depois, enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga. Disse-lhes então: «Cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir».
 
   O caminho da Páscoa é a libertação. E toda a liberdade implica uma conversão interior, porque quem deixou de ser servo, jamais agirá por ser mandado, mas terá de agir por amor.
 
   No tríduo pascal, entre a celebração do drama da Paixão e a festa da Ressurreição, há um dia mais silencioso do que litúrgico, em que nos retiramos para uma comunhão da humanidade inteira com a morte e a vida, talvez o momento em que mais sentimos esse rasgão que é a condição humana na sua própria consciência de si. Aspiramos a saber tudo e nada afinal sabemos, estamos às escuras, e mesmo a fé só vê o invisível. No sábado santo, também os familiares e discípulos de Jesus, e todos aqueles que o seguiam e aguardavam, se sentem profundamente desamparados. Como quem empreendeu uma longa viagem e chega à beira de um rio torrencial, fundo e largo, sem ponte nem barca. Todos eles se lembram certamente do Cristo crucificado que grita: «Meu Deus, Deus meu, porque me abandonaste?». Chegam-nos então ao coração todos os que sofrem, mais do que tentação, uma experiência do mal, uma vertigem de negação, desespero, incompreensão.
 
   Tenho aqui comigo um exemplar velhinho (de 1950) da Attente de Dieu, pequena colectânea de cartas e outros textos de Simone Weil, que o padre J.-M. Perrin reuniu em 1949. Simone, judia francesa de educação agnóstica, morreu em 23 de Agosto de 1943, aos 34 anos, no sanatório de Ashford, sem ter sido baptizada, ainda que prosseguindo o seu caminho de busca da fé. Diz o padre Perrin, seu confidente e correspondente, que, através dos textos precedendo a sua morte nota-se que ela estaria ainda, em muitos pontos, longe da fé católica na sua plenitude, e que sentia perfeitamente que só a morte a transportaria a essa verdade de que se sabia ainda afastada. Traduzo seguidamente um texto de Simone Weil, que pertence a uma meditação sobre a oração ao Pai Nosso. O trecho respigado é um comentário aos versículos finais (e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal) daquela prece. Para melhor entendimento da inspiração de Simone transcrevo aqui a versão francesa desse passo, que ela traduziu diretamente do grego: Et nous ne jette pas dans l´épreuve, mais protège nous du mal. Termino com a tradução do comentário da filósofa judia francesa, que aqui deixo com votos muito amigos de santa e feliz viagem de Páscoa!
 
   A única provação do homem é ser abandonado a si mesmo ao contacto do mal. O nada do homem é então experimentalmente verificado. Apesar da alma ter recebido o pão sobrenatural no momento em que o pediu, a sua alegria mistura-se com receio, porque apenas para o presente o pôde pedir. O porvir permanece temível. Ela não tem o direito de pedir pão para amanhã, mas exprime o seu receio em forma de súplica. Assim acaba. A palavra "Pai" começou a oração, a palavra "mal" termina-a. É necessário ir da confiança ao receio. Só a confiança traz a força necessária a que o receio não seja causa de queda. Depois de ter contemplado o nome, o reino e a vontade de Deus [recitemos o Pai Nosso], depois de ter recebido o pão sobrenatural e ter sido purificada do mal, a alma está pronta para a verdadeira humildade que coroa todas as virtudes. A humildade consiste em saber que, neste mundo, a alma toda, e não somente o que chamamos eu, a alma na sua totalidade, i. e., também na parte sobrenatural da alma que é Deus presente nela, está sujeita ao tempo e às vicissitudes da mudança. É preciso aceitar absolutamente a possibilidade de que seja destruído tudo o que em nós mesmos é natural. Mas é simultaneamente necessário aceitar e rejeitar a possibilidade de que desapareça a parte sobrenatural da alma. Aceitá-lo como acontecimento que só em conformidade com a vontade de Deus se produziria. Rejeitá-lo como sendo algo horrível. É preciso ter medo disso. Mas que o medo seja como que o acabamento da confiança.
 
   Gosto, eu, de dizer que o percurso da Páscoa é um caminho de confiança.
 
 
   Camilo Martins de Oliveira