Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Celebrávamos anualmente a Paixão de Cristo, mas com o perigo de não ir além de ritos muito certinhos, tantas vezes secos e insignificantes. Esquecêramos Pascal nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo.” Agora, com uma guerra tenebrosa em curso, sabemos que a Paixão continua, e as personagens da tragédia são exactamente as mesmas.
Como acontece quase sempre, o poder religioso e o poder político ao mesmo tempo que se guerreiam juntam-se na defesa dos seus próprios interesses, que são os da manutenção e aumento incessante do poder. Assim, lá estão o sumo sacerdote Caifás -- não se tinha Jesus erguido, na continuação dos profetas, contra o poder sacerdotal, que se servia de Deus contra o povo? -- e a razão de Estado: era preferível matar Jesus a pôr em perigo as relações com Roma. Pilatos, o representante do Império, convenceu-se da inocência de Jesus, mas a Realpolik não podia permitir o incêndio da sublevação do povo contra o Império. Por isso, lavou as mãos -- a proclamação da inocência hipócrita! -- e condenou-o à morte dos escravos: a cruz, com a morte mais horrenda. Nesse dia, Pilatos e Herodes, que eram inimigos, reconciliaram-se. O nome de Pilatos é dos nomes mais vezes pronunciados ao longo da História, pois está inscrito na confissão da fé dos cristãos. Mas é tal o desconforto que há aquele dito aplicado a quem se encontra fora do lugar, melhor, num lugar indevido: estás aí como Pilatos no Credo.
Os soldados cuspiram-lhe, puseram-lhe uma coroa de espinhos, açoitaram-no… Significativamente, quando um lhe deu uma bofetada, Jesus, que tinha dito para dar a outra face, ele próprio não o fez, pois é preciso manter a dignidade: “se disse mal, diz-me em quê; se disse bem, porque é que me bates?” A multidão -- essa, exactamente a mesma --, no Domingo de Ramos, clamou: "Hosana, hosana" e, na Sexta-Feira Santa, gritou: "Crucifica-o, crucifica-o". Não se pode confiar nas multidões, volúveis e manipuláveis.
Judas atraiçoou o Mestre. Vendeu-o por trinta moedas de prata. Ele faz parte da longa história dos traidores. Mas, pensando bem, não tinha sido ele próprio “atraiçoado”? De facto, ele esperava e empenhara-se com um Messias político, que tomasse o poder. Não podia entender que a revolução de Jesus era outra: a transformação radical do coração e a partilha e o serviço. Há sempre equívocos que levam ao desastre. Quando viu o seu erro, foi confessar o seu engano, mas não encontrou compreensão; arrependido, não quis ficar com o dinheiro que, esprimido, derramava sangue, atirou-o para o Templo, e enforcou-se.
Pedro, no momento da prisão, puxou pela espada. Jesus, porém, mandou que a metesse na bainha, ficando a ecoar através dos tempos a palavra da não violência activa: quem mata com ferros com ferros morre. Pouco depois, o mesmo Pedro também se acobardou: quando uma jovem insinuou que ele era discípulo de Jesus, começou a jurar que nem sequer o conhecia. Depois, tomou consciência, arrependeu-se e chorou amargamente, confiando no perdão do amigo que pregara o amor aos inimigos.
Entre Jesus, que representa o amor e a paz, e Barrabás, que representa a violência, a multidão foi incitada a escolher Barrabás.
Os discípulos de Jesus, quando viram tudo perdido, fugiram todos apavorados. Embora forçado, um homem de Cirene ajudou Jesus a levar a Cruz; na vida, pode haver sempre um Cireneu. Inesperadamente, um simpatizante tímido -- Nicodemos -- emprestou o túmulo. Os dois ladrões, que seriam dois terroristas, mesmo na iminência da morte, tiveram comportamentos diferentes: um arrependeu-se, o outro, desesperado, continuou a blasfemar. As mulheres foram quem manteve a dignidade: acompanharam-no até ao fim.
Antes de morrer, Jesus implorou o perdão para a Humanidade, também para aqueles que o torturavam e matavam: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E rezou aquela oração misteriosa que atravessa os séculos, transportando a dor e o clamor todo do mundo: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"
Neste drama todo, o que mais impressiona é que Deus a quem Jesus tratava com ternura como Abbá -- Pai querido, Mãe --, não respondeu. As suas últimas palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”
Aparentemente, foi a derrota e o fim. Mais um crucificado.
Por isso, o enigma do cristianismo é este: Porque é que os discípulos, que, apavorados, tinham fugido, lentamente voltaram a reunir-se e foram anunciar, dando a vida por isso, que aquele Crucificado é o Messias, o Enviado de Deus e é nEle que está a salvação?
O que é que se passou? A revolução de Jesus é a revolução da imagem de Deus. Nunca ninguém tinha dito, por palavras e obras: Deus é bom, Pai e Mãe de todos. E não tolera a opressão da religião e do poder. Foi uma coligação de interesses religiosos e imperiais que assassinou Jesus. Ele não fugiu, não se desdisse, foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor. Foi neste quadro que os discípulos, reflectindo sobre o modo como Ele se relacionava com Deus, sobre o modo como viveu, como morreu, foram fazendo uma experiência avassaladora de fé de que Ele, o Crucificado, está vivo em Deus para sempre. O Deus infinitamente poderoso e bom não podia abandoná-lo à morte.
Desde então, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre a Sexta-Feira Santa, as suas dores, os seus horrores…, e o Domingo de Páscoa, com a esperança da vida plena para todos os crucificados.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 16 de abril de 2022
Pascal, o matemático, um dos maiores de sempre, e também um dos mais profundos cristãos de sempre, observou, nos Pensamentos: “Jesus estará em agonia até ao fim do mundo; é preciso não dormir durante esse tempo.”
Sim, a Paixão de Cristo continua e é preciso estar acordado e atento. Na Paixão de Cristo estamos todos.
1. Com uma vida a anunciar, por palavras e obras, o Deus que é Amor incondicional, Pai e Mãe, cujo único interesse é a realização plena de todos os seus filhos, a alegria e a felicidade de todos, a começar pelos mais pobres, humildes, abandonados, oprimidos, o que o colocava em confronto com os poderes opressores, religiosos, económicos, políticos..., Jesus, sabendo o que o esperava, ofereceu uma ceia, a Última Ceia, dizendo: “Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue, a minha vida entregue por vós”. Aquele pão e aquele vinho são a sua pessoa entregue para dar testemunho da Verdade e do Amor. Quando se reunissem, deveriam fazer isso em sua memória, lembrando o que ele fez e é.
2. A religião sacrificial e ritual do Templo teve papel decisivo neste enfrentamento. Quem primeiro o condenou foi a religião oficial, cujos sacerdotes não toleravam ver os seus privilégios postos em causa: “Ide aprender o que isto quer dizer: eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia”, diz Deus. Do mais indigno que há: viver de e para uma religião que humilha e oprime em nome de Deus.
3. No Getsémani, Jesus entrou em pavor e angústia, “pôs-se a rezar mais instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra”. Deus não atendeu a sua súplica e até os discípulos mais íntimos adormeceram. “Porque dormis? Levantai-vos e orai, para que não entreis na tentação.” Todos passámos ou passaremos, de um modo ou outro, por horas de dúvidas, de horror e de solidão atroz.
4. Judas era discípulo de Jesus, mas incorreu num equívoco: esperava um Messias político, que Jesus não era. Assim, não o entregou com a intenção de traí-lo e obter dinheiro. Estava era convicto de que Jesus, no confronto directo com os poderes vigentes, iria ele próprio tomar o poder, para libertar o povo. Por isso, quando viu o sucedido, foi, desesperado, entregar as moedas de prata. No meio do seu desespero, ninguém o compreendeu nem ajudou: “Isso é lá contigo”, disseram os sacerdotes. E ele enforcou-se. Ninguém lhe deu a mão.
5. Com medo de que a relação com os romanos se agravasse por causa da actuação de Jesus, o sumo sacerdote Caifás dera este conselho: “Interessa que morra um só homem pelo povo”. Aí está a presença de tantos inocentes que ao longo dos séculos foram vítimas da razão de Estado.
6. Pedro era um homem bom, amigo e generoso. Tinha prometido ir com Jesus fosse para onde fosse e nunca o abandonar. Mas bastou uma criada dar a entender, por causa da fala de galileu, que ele também devia ser um discípulo, para logo negar. Acobardou-se e negou o Mestre três vezes. Depois, o galo cantou, e ele lembrou-se das palavras de Jesus: “Antes de o galo cantar, negar-me-ás três vezes.” “E, vindo para fora chorou amargamente.” Até onde chega a nossa amizade e a nossa cobardia? São Pedro foi o primeiro Papa, mas ainda hoje a torre das igrejas católicas é encimada por um galo, a lembrar como a Igreja, assente na fé de Pedro, está sempre ameaçada por perigos sem conta e traições.
7. O conselho dos anciãos do povo, sumos sacerdotes e escribas julgaram e condenaram Jesus, mas não tinham poder para executá-lo. Entregaram-no, portanto, a Pilatos, representante do Império. Ele ter-se-á apercebido da inocência de Jesus, mas também teve medo de perder o poder, pois o povo clamava e podiam acusá-lo ao imperador. Então, lavou as mãos e mandou que Jesus fosse crucificado. Pilatos: outra vítima da cobardia. E sempre por causa do poder. O seu nome é dos nomes mais pronunciados ao longo da História, por causa do Credo: “crucificado sob Pôncio Pilatos”. Mas ainda hoje, para referir alguém que está num lugar que não é o seu, se diz: “Está ali como Pilatos no Credo.”
8. Ao tomar conhecimento de que Jesus era galileu, Pilatos remeteu-o para Herodes, que naqueles dias também se encontrava em Jerusalém. Jesus, tratado com desprezo, não respondeu a nenhuma das suas perguntas. Nesse dia, “Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois eram inimigos um do outro.” Em política ou sempre que se trata de poder, seja ele qual for, é o que mais se tem visto: interesses comuns, políticos, económicos, de geoestratégia, tanto podem levar ao corte de relações como à amizade. Evidentemente, amizade hipócrita, interesseira.
9. As multidões não são fiáveis, são volúveis, com facilidade se submetem à manipulação. No julgamento de Jesus, a multidão gritava: “Crucifica-o, crucifica-o”. Os mesmos que no Domingo de Ramos o tinham aclamado triunfalmente: “Hossana, hossana ao filho de David!”
10. Um tal Simão de Cirene foi obrigado a carregar com a cruz de Jesus. O seu nome está associado a tantos cireneus que vamos encontrando na vida. No meio da dor, da incompreensão, da cruz, pode haver um cireneu que chega e apoia. Talvez forçado, mas apoia.
11. Os soldados riam-se, troçavam, fizeram chacota. Afinal, eles próprios não tinham uma vida feliz. Já alguém se lembrou de perguntar a um terrorista se alguma vez se sentiu amado?
12. Só as mulheres não fugiram, mantendo-se sem medo junto à cruz. Talvez percebam mais da vida e das suas dores e também amem mais.
13. Mesmo no final da existência e no supremo sofrimento, os comportamentos das pessoas não são necessariamente iguais. Com Jesus, foram crucificados dois malfeitores, talvez dois terroristas. Um continuou a blasfemar enquanto o outro reflectiu e pediu a Jesus que se lembrasse dele no seu Reino. O centurião deu glória a Deus: “Verdadeiramente este Jesus era um justo”.
14. Quem preside no Calvário, no meio do abandono total, é Jesus, que perdoou a quem o matava e que gritou, do alto da cruz, perguntando, aquela oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Deus não respondeu, mas Jesus continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”
15. Jesus morreu crucificado, a morte que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele Jesus crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que esse Jesus crucificado está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos, e acreditaram porque Deus é Amor, e deram a vida por essa fé, que chegou até nós. Mas, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre o horror da Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo da Páscoa da ressurreição.
A fé é um combate, como dá testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, a aproximar-se do seu próprio fim. Confessou recentemente que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur, non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado o no DN | 14 ABR 2019