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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (V)
DOIS EXEMPLOS DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO
por Duarte Ivo Cruz


Vimos no artigo anterior o papel essencial de Garrett na estruturação do teatro português, através da reforma de 1836. Nesse diploma, encomendado, recorde-se, por Passos Manuel e transformado em Portaria assinada por D. Maria II em 15 de novembro de 1836, estava prevista a criação de uma Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional: e referia-se especificamente no texto legal a necessidade de construção de um edifício, mas também, a estruturação de uma companhia que garantisse certa estabilidade e uma base de ação cultural ao teatro português, na dupla dimensão de espetáculo mas também de criação dramatúrgica.


Trata-se do que viria a ser e ainda hoje felizmente é, apesar do incendio devastador de 1964, o Teatro de D. Maria II.


Demorou a execução deste ponto específico do programa de Garrett. Foi criada uma “sociedade de capitalistas” que teve no Conde de Farrobo o primeiro subscritor. O processo arrastou-se: mas em 13 de abril de 1846 sobe à cena, no Teatro de D. Maria II, com foros de grande acontecimento cultural e urbano, uma peça hoje completamente esquecida: “Álvaro Gonçalves, o Magriço ou dos Doze de Ingraterra” de Jacinto Aguiar Loureiro, este tão esquecido como a peça… Em qualquer caso, vem dessa época, com óbvia oscilação de qualidade e continuidade, uma ação referencial na história moderna do teatro português.


E aqui, há que evocar alguns atores que marcaram não só a continuidade cultural e profissional do teatro em si, como, através de mais de um século, a própria criação dramatúrgica e arte do espetáculo em Portugal. Assim, encontramos por exemplo uma continuidade de décadas na companhia inicialmente denominada Rosas e Brazão, que se manteria no D. Maria II, com óbvias alterações de elencos e também, a partir de certa altura, da própria constituição societária e artística, e que constituiu a base artística de uma notável transição, a nível de artistas de cena e de dramaturgos, do teatro romântico para o teatro realista-naturalista.


É que, com alternâncias óbvias dada a instabilidade da profissão e da exploração teatral, encontramos, na época e em certos casos, como veremos adiante, quase até aos nossos dias, uma continuidade e permanência no Teatro D. Maria II desde finais do século XIX meados do século XX.


Veja-se a carreira de Eduardo Brazão. Ingressa em 1875 no D. Maria, onde se mantem até 1898, integrando a Companhia Rosas e Brazão, “uma das mais célebres e ilustres de toda a história do teatro português” escreveu Luiz Francisco Rebello (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 110). Prosseguiu uma carreira relevante de ator e encenador. E saliento o destaque na revelação, encenação e interpretação de autores portugueses, numa abrangência que o coloca na primeira linha da renovação da dramaturgia na transição do romantismo para o realismo: D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach – eram os dramaturgos modernos da época. Brazão voltaria mais tarde  intermitentemente, ao D. Maria II.


E no D. Maria II fez grande parte da carreira a grande atriz Palmira Bastos que, com talento indiscutível, marcou, durante décadas o meio teatral português. Estreou-se em 1890, com 15 anos, no Teatro da rua dos Condes, que já aqui evocamos. Em 1894, recém-casada com Sousa Bastos, também muitas vezes aqui citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” (1908) inicia uma carreira de atriz-cantora de opereta que a leva em tournée ao Brasil. Percorreu depois as principais companhias portuguesas.


Em 1931 ingressa na Companhia Rey Colaço Robles Monteiro: e aí, com uma breve interrupção em 1936/37, mantem-se em atividade destacada até ao incendio de 1964. Mas ainda trabalhou em 1966, tendo falecido no ano seguinte. Cito o protagonismo em “As Arvores Morrem de Pé” de Alexandre Casona, creio que o ultima grande papel que desempenhou com uma energia que ficou na memória do jovem crítico que na altura eu era…


E cito também alguns dos dramaturgos portugueses seus contemporâneos que Palmira Bastos estreou ou interpretou: Olga Alves Guerra, Vasco Mendonça Alves, Virgínia Vitorino, Ramada Curto, Júlio Dantas, Costa Ferreira, Joaquim Paço d’Arcos, Augusto de Castro…


Esteve em cena até aos 89 anos. E sobre ela escreveu, numa prosa muito da época, D. João da Câmara, o que só por si atesta a longevidade da carreira: “Foi brilhante a sua aurora e no carro triunfal, mais rápido do que Apolo, no tempo que dura um relâmpago, trepou até ao Zénite e por lá se deixou ficar”!


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 07.01.15 neste blogue.

OS TEATROS DE SOUSA BASTOS NA EUROPA, NO BRASIL E EM ÁFRICA

 

Na crónica anterior, fizemos referência ao livro recentemente publicado sobre Sousa Bastos, da autoria de Paula Gomes de Magalhães, com nota introdutória de Maria João Brilhante e Ana Isabel Vasconcelos (ed. 2018).

 

Recordamos aí designadamente a obra de Sousa Bastos, ainda hoje sempre citável, o “Diccionário do Theatro Português”, assim mesmo denominado na edição de 1908, e onde se descrevem nada menos do que 213 teatros de Portugal, Brasil e África, numa cobertura cronológica que abrange edifícios e salas já na época históricas, mas sobretudo teatros à época em atividade: e de notar que não poucos, com ou sem alterações de designação, com mais ou menos obras de recuperação, duram até hoje.

 

E recordamos agora que Sousa Bastos, no seu livro denominado “Carteira do Artista” (1898) , obviamente referido no crónica anterior e cuja imagem de capa serviu de ilustração, já aí procedeu a um primeiro levantamento de teatros, só que, desta vez, apenas 26, e que enumeramos tal como o autor os identifica, com a grafia da época e expressões e designações por vezes pitorescas nas respetivas descrições. Vejamos então.

 

«O velho Theatro da Rua dos Condes (Lisboa)”; “Theatro do Gymnasio (Lisboa)”; “Theatro Garcia de Rezende (Evora”); “Theatro Romano (Lisboa)”; “Theatro da Paz (Pará-Brasil)”; “Pateo da Bitesga (Lisboa)”;  “Pateo da Rua das Arcas (Lisboa)”; “Theatro de Wagner” (Bayreuth”); “Pateo das Fangas da Farinha (Lisboa)”; “Theatro do Bairro Alto (Lisboa)”; “Theatro Scala (Milão)”; “Theatro de Loanda (Africa portuguesa)”; “Theatro de S. Roque (Lisboa)”; “Theatro de S. Carlos (Napoles-Italia)”; “Academia da Trindade (Lisboa)” (Lisboa)”; “Theatro da Graça (Lisboa)”; “Opera de Vienna (Austria)”; “Theatro de S. José (S. Paulo – Brasil”); “Theatro da Boa Hora (Belem)”; “Theatro de D. Fernando (Lisboa)”; “O Novo Theatro da Comedia” (Vienna-Austria)”; “Theatros Regios (Queluz, Salvaterra, Ajuda)”; “Comedia Franceza (Paris)”; “Theatro do Odéon (Paris)».

 

O texto é ilustrado com 11 gravuras de Teatros, sendo apenas três de teatros portugueses (Condes, Ginásio, Évora), a que se acrescentam as gravuras dos Teatros do Pará, Bayreuth, Milão, Nápoles, Viena, (duas) e Paris (duas).

 

Mas o mais interessante e historicamente significativo é a análise e descrição de cada um dos teatros, sendo certo que a extensão e o detalhe histórico e artístico variam de acordo com o critério do autor, que hoje será difícil de precisar com rigor. Os mais desenvolvidos neste aspeto são o Condes, o Ginásio, o Garcia de Resende, o Pateo das Arcas e os dois Teatros de Paris, significativamente a Comedia Francesa e o Odéon. O que não é de estranhar!

 

Ainda dois esclarecimentos.

 

Desde logo, a própria denominação do livro, que define um programa de investigação e divulgação:

 

«Carteira do Artista – Apontamentos para a História do Teatro Portuguez e Brazileiro Acompanha de Notícias Sobre os Principais  Artistas, Escritores Dramáticos e Compositores Estrangeiros». Tudo isto ao longo de mais de 800 paginas em sucessivas calendarizações diárias!

 

E mais: o livro é dedicado «À minha querida e santa mulher Palmyra Bastos Modelo das esposas e, espelho das mães e exemplo das artistas, O seu marido grato Sousa Bastos.»

 

Palmira Bastos nasceu em 1875 e faleceu em 1967. Integrou durante décadas o elenco do Teatro Nacional de Dona Maria II, na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, onde atuou até quase ao fim da vida.

 

Recorda-se aqui o seu talento. 

DUARTE IVO CRUZ

ATORES, ENCENADORES (XXVI)

Palmira Bastos.JPG
(in http://cinemaportugues.com.pt/)

 

OS 140 ANOS DE PALMIRA BASTOS

 

Há meses, fiz aqui uma referência a Palmira Bastos, no contexto da evocação de atores e encenadores da transição do século. Sucede que no dia em que escrevo esta crónica (30 de maio de 2015) decorrem exatos 140 anos do nascimento de Palmira: e no passado dia 10 deste mesmo mês, decorreram 92 anos da sua morte. As datas são em si mesmas de assinalar, na perspetiva da referência a atores que marcaram pela sua qualidade o teatro português.

Mas neste caso concreto de Palmira, a evocação é ainda mais abrangente. Em primeiro lugar, pelo talento que, durante toda a longa carreira, sempre manifestou, a julgar pelas críticas de épocas sucessivas e pelo testemunho direto de sucessivas gerações, entre as quais me incluo: e isto porque, Palmira Bastos manteve-se em cena, é caso para assim dizer, desde 1890: estreou-se com efeito com 15 anos num pequeno papel da peça “O Reino das Mulheres” de Ernesto Blum, no então Teatro da Rua dos Condes, em 1 de Julho de 1890. E manteve-se em cena até 15 de Dezembro de 1966, no último espetáculo em que participou, agora no Teatro São Luis, com a peça “Ciclone” de Somerset Morgan, que tinha aliás estreado no Teatro Nacional de D. Maria II em 1932.

 O incêndio do D. Maria, ocorrido em 1964, obrigou a  empresa Rey Colaço-Robles Monteiro a mudanças: foi pois com o “Ciclone” no São Luís que Palmira Bastos se despediu do público - com 91 anos de idade e 76 anos de carreira, aliás devidamente assinalada em comemorações ocorridas quando completou 90 anos. E ainda ficaria em cena mais um ano, ou quase!

A colaboração de Palmira no Teatro Nacional  alternou com participações sucessivas nas grandes companhias do meio teatral português, e isto, tanto no teatro declamado como na revista e no teatro musicado, em quase  todos os palcos e companhias relevantes: assim, para além de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, com quem ficaria a partir do início dos  anos 30 com uma breve  interrupção,  Palmira Bastos integra elencos diversos e espetáculos dirigidos ou integrando os grandes nomes da  época: Augusto Rosa,  Eduardo Brazão, Taveira, Ilda Stichini, Luis Galhardo…

Mas vimos que Palmira se estreou no teatro musicado com “O Reino das Mulheres” de Blum. E  no que respeita ao teatro musicado e à revista, Luis Francisco Rebello assinala ainda intervenções em “Tam-Tam“ de Sousa Bastos, com quem Palmira viria a casar: e a esta intervenção na opereta e na revista seguiram-se “Fim de Século”, “O Sarilho”, e outras peças de teatro ligeiro, alguma de grandes autores, designadamente “O Burro do Senhor Alcaide” de D. João da Câmara e Gervásio Lobato ou, deste último, “O Solar dos Barrigas”. Cfr. l. F. Rebello, “História do Teatro de Revista em Portugal” vol. 1  - 1984).

E vem a propósito referir um comentário de D. João da Câmara acerca da então incipiente mas já notável carreira de Palmira Bastos: “ Foi brilhante a sua aurora. Era atriz na idade em que outras mal começavam a balbuciar os papéis”. E Eduardo Schwalbach: “é uma grande atriz, sem sobra de dúvida, na opereta, na comédia, no drama” (in Sousa Bastos, “Diccionário do Theatro Português” 1908)    

 A longevidade fez com que Palmira Bastos surja ligada a numerosíssimas produções da grande dramaturgia portuguesa e mundial, em centenas de estreias em Portugal e no Brasil, revelando, ao longo de décadas, sucessivas peças e autores de destaque, desde clássicos (Gil Vicente, Shakespeare, Molière, Schiller, Garrett) até estreias de autores que à época constituíam verdadeiras revelações junto do público português. Lembro, entre centenas de nomes, autores na época pouco conhecidos entre nós, mas  de qualidade hoje indiscutível: por exemplo Bernestein, O'Neill, Oscar Wilde, Lorca, Pirandello, Alexandre Casona, George Bernanos…

Mas no que diz respeito ao teatro português, encontramos um repertório que, ao longo de décadas, por mérito próprio ou dos responsáveis pelas companhias - e aí, é justo valorizar a Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro no Teatro Nacional - revelou toda uma geração de dramaturgos que, a partir do início do século, constitui, com as oscilações que hoje se impõe reconhecer,  muito do que de melhor se fez no teatro português.

E aí cito peças de Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Carlos Malheiro Dias, Julio Dantas, Ramada Curto, Alfredo Cortez, Olga Alves Guerra, Virgínia Vitorino, Vasco Mendonça Alves, Eduardo Schwalbach, Augusto de Castro, Joaquim Paço d'Arcos, Costa Ferreira, Leitão de Barros, Luis Francisco Rebello…

E tudo isto em 76 anos de carreira.

 

DUARTE IVO CRUZ