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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

OUTUBRO 2021

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    Jonathan Meese

 

Se se pensar que os homens são os seus próprios vírus, a sua própria pandemia, a razão do seu confinar, será tudo pela similitude das suas interdependências, não obstante fecharem as fronteiras uns aos outros para riso dos vírus que transportam.

E quais os sintomas de tudo isto? Alguém contatou com um positivo? Mas afinal não somos todos positivos? E assintomáticos? Não estamos todos a correr os riscos hora a hora de várias mortes? A social, a psicológica, a que parou a economia? A que nos enterra?

Melhor mesmo será que todos fiquem em casa e bem-comportados antes que o vírus anuncie, através dos homens que o albergam, que em casa, nada existe porque existe tudo igual.

É certo que o nosso vírus não descuidou o tirar-nos a liberdade. Ninguém o viu solto por aí, e foi-lhe acessível a façanha.

E tortura e mata e só quando os homens, e neles, o vírus, estão em casa, então os pássaros cantam e o céu é mais azul.

De uma boa quarentena precisa-se de quando em vez. Mas credo! gritam os vírus aos homens: não acreditem nos pássaros ou nos peixes que surgem! Trata-se apenas de uma faixa deles, é o que resta.

A grande vantagem é que o ADN em homens e vírus é o mesmo e todo ele um único poder.

A biopolítica é opaca e o controlo não é democrático, aceitando-se que assim seja.

Homens! – grita o vírus - saibam criar rutura à vossa nova religião! Quero testemunhar! Sou a vossa eterna companhia. Sou ateu.

Ou preferem continuar a encomendar os almoços, a fazer compras on line, a encharquem-se de notícias minhas, a autoimpedirem-se de estar com os amigos, a fazer ginástica em casa que o ar faz mal, mesmo que eu esteja no vosso suor…xiu…que ninguém sabe que os que não me têm, sempre tiveram.

Mas façam muitos testes serológicos se desconhecem que as subidas e as descidas se assemelham.

Enfim, nos lares já se colocaram os velhos que nunca souberam para onde iam. Mas recomenda-se: afastem-se o suficiente dos destinos solidários pois trazem danos colaterais e sequelas ao nosso modo tradicional de ser agora e no futuro.

Não se recordem se na base da pirâmide estão os que muito sofrem com as encapotadas pandemias de sempre. É assim mesmo!

No entanto, ouvem-se cantares ao vírus pelos homens dos decretos, e fingem que o que nos fulmina a todos é passageiro, e eles perdigueiros competentes, admitem primeiro, socorros às coisas ditas sérias, e depois aos outros, e no muito ao fundo se incluem, talvez os artistas…e, claro os poetas.

Assim se chegou ao hoje quando as boas-noites se dão a ninguém.

Apenas se ouve um eco que afirma que haverá uma existência sem vírus porque tudo, tudo será virtual.

Os portadores do vírus já não serão humanos, o próprio vírus não se assume.

Mas, por enquanto todos querem voltar ao antigamente!

Aí sim! 42 famílias têm tanto quanto metade da mais pobre população mundial.

Quem não quer voltar a este oxigénio?

Olhei para a televisão e de novo o registo de que se aceitou que a democracia não fosse a grande força da incrível capacidade de vivermos juntos.

Não se aceitou que a democracia engloba a não entrega de liberdades, a não desflorestação, os consensos, o não matar o que nos dá vida, o não secar das águas, o não envio das imunidades por cunhas, sem que por detrás das máscaras se tivesse de gritar muito improvavelmente:

Uma vacina para o mundo!

Deus! que as acumulações de forças dos governos não sejam do poder pelo poder, reforçando-se o monstro face à solicitude com a qual lhes são entregues dados privados em todas as vagas.

Antes sim, os governos devem governar como desejam os que neles votaram sem apelo à solta da delegação de poderes.

De recordar igualmente que a marcha da democracia só tem caminho se ninguém aceitar a rota da pandemia fiscal.

Não continuemos a tratar os sobreviventes como os mais frágeis, bem basta que por poder consentido, eles suportam o cerco da minada doença da fiscalidade que, não obstante o sofrer que inflige, nunca reduziu as desigualdades, e a impunidade desta doença é tão despudorada que sempre aos mesmos é exigido, o esforço de recuperar as finanças públicas.

Enfim, se se pensar que os homens são os seus próprios vírus, a sua própria pandemia, a razão do seu confinar, e que tudo assenta nas suas interdependências, não obstante fecharem as fronteiras uns aos outros para riso dos vírus que transportam, talvez se entenda que a crise é também a da oferta e da procura e é uma crise estrutural, e que as diferenças salariais são promíscuas e sendo as medidas repetitivas, não estamos de todo no bom caminho.

Também um dia, um dia o amor empobreceu, lá onde o seu sentir fraquejava já mesmo no poder de recobro.

Uma vacina para o mundo é tão só o mesmo que um dia da ira dos seres de boa vontade!

E estes viandantes ainda caminham!

 

Teresa Bracinha Vieira

TUDO E TODOS INTERLIGADOS. 2

 

4. Continuando a reflexão sobre a interligação de tudo e de todos, perguntamos: E para onde vamos? Sobretudo: Para onde queremos ir? Que futuro?


Face ao futuro, é essencial pensar. E voltamos à escola, que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a pólis, (daí vem política):  a Cidade, isto é, a Casa comum da Humanidade. Hoje o que mais falta é precisamente este ócio. Ora, sem ele, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio(s). Assim, sob o império da técnica e do(s) negócio(s), não se pensa, calcula-se: o filósofo M. Heidegger chamou a atenção para isso: a técnica não pensa, calcula, o mesmo valendo para os negócios.


5. Olhando para o futuro, o que nos vincula é a esperança. Mas, mais uma vez, não há esperança autêntica sem pensamento. Quando olhamos para o futuro, encontramos evidentemente, motivos para imensa satisfação — voltando à pandemia, não temos de agradecer à ciência, pois, para dar um exemplo, nunca se tinha conseguido tão rapidamente uma vacina, e foi por causa das novas tecnologias que pudemos continuar, apesar de tudo, com mais ligação nos diversos niveis e facetas da vida? —, mas é preciso tomar consciência também das ameaças e dos perigos, que são gigantescos e globais. Há problemas de tremenda complexidade, já presentes e que se agravarão. Apenas exemplos: a guerra nuclear; a ecologia e as alterações climáticas; guerras digitais; as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências) na sua ambiguidade, pois há novas possibilidades mas também perigos: frente às possibilidades do transhumanismo e do pós-humanismo, é preciso reflectir sobre o que verdadeiramente queremos; úteros artificiais e seus problemas; bebés transgénicos, experiências com híbridos; questões relacionadas com o inverno da natalidade, nomeadamente na Europa (em Portugal, será uma catástrofe), os mercados globais, a injustiça estrutrutural global, as migrações forçadas e anárquicas, as lutas tecno-económico-políticas pela supremacia global, o trabalho, as drogas, a paz, os direitos humanos… Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional, com Governos que governam a curto prazo para ganhar eleições, mas estes problemas são globais e exigem uma solução a longo prazo… Não precisamos, portanto, de erguer uma Governança global? Não digo Governo mundial, mas Governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais poderão encontrar solução.


Neste contexto, é necessário contar com o apoio da Igreja. A Igreja Católica é a única instituição verdadeiramente mundial, presente em todo o mundo e em todos os estratos sociais. Com a renovação em curso, segundo o Evangelho de Jesus, que implica também uma reforma radical da Cúria, e com uma orgânica nova de governo, a sinodal, pode-se e deve-se pensar e contar com o seu contributo decisivo enquanto voz político-moral tanto localmente como ao nível regional e global. Evidentemente, por si mesma e também em ligação com as outras Igrejas cristãs e com as diferentes religiões mundiais, com as quais continuará a empenhar-se num diálogo vivo e lúcido, segundo as exigências que o diálogo autêntico exige e que não pode ser unidireccional.  


E qual é o Sentido último de todos e de tudo? Problema maior hoje: há hoje uma espécie de cansaço vital. Porque não há Sentido ultimo. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança. Só com Deus enquanto o “Futuro Absoluto”, na expressão célbre do teólogo Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Deus é o Futuro de todos os  passados, o Futuro de todos os presentes, o Futuro de todos os futuros.


6. No fim, voltamos ao princípio, por outras palavras, é imprescindível voltar a cada um, a cada uma, começar por si próprio, por si própria. E aí está a relação de cada um, de cada uma consigo mesmo, consigo mesma. A Humanidade é constituída por pessoas, em ligação com tudo e com todos, mas únicas.


Cada um precisa de ter uma relação boa consigo, portanto, com o seu passado. Afinal, o presente já foi, no passado, um sonho de futuro(s): é sempre no presente que vivemos, mas relacionados com o passado. Olhando para o passado, talvez não fiquemos satisfeitos, pois houve erros, disparates, sei lá!, e então é preciso é reconciliar-se com ele para que não continue a envenenar-nos — nisto, o crente sabe que deve contar com Deus: Ele entende e perdoa. No presente, é preciso pensar no futuro, já que o presente é inevitavelmente voltado para as possibilidades futuras: que futuro projectamos, que queremos para o futuro, sabendo concretamente que, pensando nele, inevitavelmente deparamos com a morte? Colocando-me na perspeciva do fim — também a história individual só a partir do fim se pode ler toda —, que quero, no fim, ter feito de mim, em ligação com os outros? De tal modo que possa esperar, sem ilusões, que a morte não tem a última palavra. Como disse I. Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além”.


P.S.: Uma arreliadora gralha no texto da semana passada fez aparecer o Big Bang há 3.700 milhões de anos em vez de há 13.700 milhões de anos. Peço desculpa.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 MAIO 2021

TUDO E TODOS INTERLIGADOS. 1


Se algo se nos impôs de modo claro, com esta terrível pandemia, é que tudo e todos estamos interligados.


1. Constatámos que nos contagiamos uns aos outros, de tal modo que até foi e, por vezes, ainda é (por quanto tempo?), necessário desviarmo-nos uns dos outros, usar máscara, ficar confinados. Percebemos que precisamos de nos proteger uns aos outros: ou nos salvamos juntos ou podemos perder-nos todos. Aí está o exemplo das vacinas: basta um pouco de egoísmo esclarecido, para se perceber que elas têm de ser distribuídas por todos, pois enquanto houver alguém não vacinado no mundo a ameaça continua e tanto mais grave quanto irão surgindo variantes do vírus…


2. Cada uma de nós, cada um de nós é ela, é ele, único, única (cada uma, cada um diz “eu” como mais ninguém pode ou pôde alguma vez dizer). O enigma, o milagre espantoso do eu, ser autoconciente, consciente de si, alguém como nunca houve outro ou outra!


Será que deste modo se está a afirmar o individualismo? De modo nenhum. Porque cada um de nós é um eu único, mas sempre na relação constituinte. Uma das características essenciais que nos distinguem dos outros animais é a neotenia (nascemos prematuros), que faz com que, vindos ao mundo por fazer, tenhamos de fazer-nos. O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros. Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir: ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo. Esta é, por um lado, a experiência da liberdade — somos dados a nós mesmos, com a responsabilidade de nos fazermos — e , por outro, a experiência radical da alteridade: sou eu com o outro, que também é um eu, mas um eu que não sou eu, um eu outro. E fazemo-nos uns aos outros e sempre com outros. Aliás, com esta pergunta tremenda: se eu tivesse encontrado na vida outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas, lido outros livros, feito outras viagens…, seria eu? Sim, seria eu mas de outro modo (idem sed aliter).


Temos uma herança genética (aquele óvulo que foi fecundado por aquele espermatozóide) e uma herança cultural. E, viajando para trás na história tanto genética como cultural, as relações são in-findas. Encontramos os pais, os avós, os bisavós, os trisavós, os tetraavós…, por sua vez com relações e vínculos infindáveis…, e não é difícil concluir que poderíamos pura e simplesemnte não existir. É um milagre existir precisamente “eu”. Do ponto de vista cultural: estou a escrever e, se reflectir, constato que isso é possível porque há os que me ensinaram as primeiras letras, e a juntá-las, e a ler, e a lingua portuguesa (que eu não inventei…), em relação e contacto com outras línguas (o que seria a língua portuguesa sem o latim?), encontro professores e mestres, que connheci, mas também os que não conhecei, mas foram eles que ensinaram estes meus mestres, e os que escreveram livros que eu li, que, por sua vez, não existiriam, se o seus autores não tivessem tido  contacto com outros autores e outros livros… idefinidamente… O que seria eu, quem seria eu sem todos aqueles e aquelas que entraram na minha vida sem eles saberem nem mesmo eu… Ah, e eu não sei fazer automóveis nem computadores, nem telefones, nem cultivo nada do que me alimenta, que vem de tantas partes do mundo e resulta do trabalho concertado de tantos e de tantas por esse mundo além!…


Afinal, o que somos uns sem os outros, os conhecidos e aqueles e aquelas — constituem incomensuralvelemnte a maior parte, a quase totalidade — que não conhecemos? Somos e estamos interligaods por vínculos indesmentíveis, sem os quais não seríamos, precisando de tirar dessa constatação as devidas consequências… Temos uma dívida universal…


3. E somos, vindos de uma história gigantesca: a evolução, desde o Big Bang, há 3.700 milhões de anos. E deu-se a expansão do Universo. E a Terra terá uns 5.000 milhões de anos. E não havia vida e apareceu a vida há uns 4.000 milhões de anos, e a vida foi-se expandindo e complexificando… Muito lentamente foram surgindo os hominídeos, veio o sapiens e depois, há uns 200-150 mil anos, o sapiens sapiens…, sendo necessário acrescentar: sapiens sapiens (sapiente sapiente) e ao mesmo tempo demens demens (demente demente)…


Aparecemos inseridos neste processo gigantesco, fazemos parte da Terra, a nossa casa comum, num vínculo indestrutível. Ela está ferida e grita. Como vamos tratá-la? É a casa de nós todos, da Humanidade inteira e ou cuidamos dela todos ou não há futuro…


Mas olhemos para a História propriamente dita da Humanidade, a que se inaugura com o sapiens sapiens. Que encontramos? O melhor e o pior, a mais heróica grandeza e a mais vil baixeza, santos e pecadores, progressos e regressões, heróis e cobardes, inventores e traidores, impérios contra impérios e rios de sangue…, migrações e encontros e desencontros entre povos, culturas e civilizações… E cada povo precisa de assumir a sua história, sem negá-la, porque a memória faz parte da identidade, e os erros não se resolvem derrubando estátuas nem autoflagelando-se, mas recolhendo os melhores ensinamentos…, para evitar mais erros


4. Aqui chegados, também perguntamos: Porque houve o Big Bang e não nada? E: Que futuro? Para onde queremos ir? Há um Sentido último? (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 MAIO 2021

A VIDA DOS LIVROS

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  De 24 a 30 de maio de 2021

 

A “Conferência Europeia das Humanidades 2021” constituiu oportunidade para debater a necessidade de dar ao conhecimento lugar central na sociedade contemporânea.

 

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COMPREENDER O FUTURO

A realização, na Fundação Gulbenkian, da Conferência Europeia das Humanidades, organizada pela UNESCO, FCT e Conselho Internacional para a Filosofia e as Ciências Humanas (CIPSH), no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, permitiu um debate aprofundado sobre um tema complexo que não pode ser abordado de forma simplificada, como se tratasse de um mero dilema entre duas culturas – literária e científica. A verdade é que, como salientou durante os trabalhos António Damásio, a compreensão da complexidade obriga-nos a não cair no velho erro de Descartes e a garantir a complementaridade efetiva entre razão e sentimento. O programa, ao propor como tema geral “Humanidades Europeias e Além”, deu especial ênfase à ligação entre reflexão e espírito científico, já que, como o Presidente da República notou, na abertura da Conferência “nenhuma sociedade tem futuro sem conhecimento e sem colocar esse conhecimento como fundamento das suas decisões sociais e económicas”, sobretudo quando nos encontramos numa circunstância de tempos críticos muito desafiantes, já que os dilemas que se nos têm colocado, designadamente com a pandemia, têm obrigado a uma articulação efetiva entre pensamento e ação, coesão social e estratégias científicas. Com efeito, os problemas complexos e multidisciplinares em causa exigem abordagens que devem combinar várias perspetivas e disciplinas, de modo a compreendermos que a medicina e a ciência política, a saúde pública e a economia têm de andar permanentemente a par, de modo que a evolução da sociedade se faça num equilíbrio permanente entre as diferentes áreas de Investigação e Desenvolvimento. Nesse sentido, a diretora-geral adjunta da UNESCO, Gabriela Ramos recordou o livro de 1722, "Diário do Ano da Peste", de Daniel Deföe, onde se retrata a sociedade de Londres durante a Grande Peste de 1665 e mostra como os fenómenos são cíclicos e as atitudes se repetem: "Para entender uma pandemia temos de compreender as relações entre diferentes realidades, desde o clima, à geografia e à história. Temos de aprender com o passado para preparar o futuro e as humanidades são os guardiães desse conhecimento". De facto, como salientou ainda, “não vale a pena ter avanços e soluções científicas se a sociedade os não compreende”. As pessoas aceitam as decisões desde que tomadas por autoridades em quem confiem e desde que disponham de informação fiável, designadamente no domínio digital. Contudo, essa relação de confiança só é possível estabelecer se houver uma presença segura das Humanidades, como fatores de diálogo e de qualidade.

 

FONTE DE CRIATIVIDADE E DE INOVAÇÃO

De facto, as Humanidades são uma fonte de criatividade e inovação. E, como afirmou o crítico de arte e escritor inglês, John Ruskin (1819-1900): "As grandes nações escrevem a sua autobiografia em três manuscritos: o livro dos seus feitos e acontecimentos, o livro das palavras e o livro das artes". Contudo, "nenhum destes livros pode ser entendido se não tivermos em consideração os outros dois". Factos, palavras e artes constituem a base estrutural para entendermos a evolução histórica – daí que a pedagogia e a escola tenham de assentar a aprendizagem na permanente ligação entre os diferentes domínios do pensamento. Assim, falar de Humanidades não pode reduzir-se à literatura ou à reflexão, como realidades separadas, devendo, sim, participar como estímulo permanente à Ciência como Cultura. Daí a necessidade de não subalternizar a Filosofia. Não é demais lembrar que as sete Artes Liberais, o trivium (lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), associavam naturalmente as Humanidades aos diversos ramos do saber. Lembremo-nos dos exemplos de Leonardo da Vinci e de Leibniz, ou de portugueses como Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. Fácil é de notar como, para eles, as Humanidades ligavam todas as áreas do conhecimento, não de modo autossuficiente, mas como fatores de coordenação e exigência. A crise financeira de 2008 ou a crise pandémica de 2020-21 demonstraram como a lógica positivista da cultura científica falhou rotundamente, incapaz de distinguir realidade e ilusão, verdade e aparência. O racional e o razoável têm de se articular. E hoje a questão das alterações climáticas e o estado de emergência em que nos encontramos no domínio ambiental – deixaram de ser (com a pandemia) temas longínquos, já que as questões de sobrevivência da humanidade passaram a ser bem atuais e próximas de nós. Não há desenvolvimento sem aprendizagem de qualidade e sem a prioridade dada à educação, à ciência e à cultura. Por isso, o património cultural é cada vez mais fonte de criatividade e inovação, uma vez que nos permite entender o tempo nas sua diferentes dimensões, já que o passado projeta o futuro e as raízes são chaves para a compreensão sobre de onde vimos, quem somos e o que nos distingue dos outros… Numa sociedade de informação, devemos estar aptos a transformar informação em conhecimento e o conhecimento em sabedoria. T. S. Eliot disse “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?” – Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.

 

A IMPORTÂNCIA DA COMPLEXIDADE

A reflexão sobre a complexidade de Edgar Morin (que se aproxima de completar cem anos) leva-nos a entender a célebre afirmação de Pascal: «considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, mas tenho por não menos impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes». Há, assim, um vai-e-vem em que se funda a diligência de conhecer. E é esta preocupação que nos permite articular o uno e o múltiplo, o próximo e o distante, a teoria e a experiência… De facto, a complexidade está no coração da relação entre o simples e o complexo porque uma tal relação é a um tempo antagónico e complementar. A ciência funda-se não só no consenso como no conflito. Ao mesmo tempo, evolui a partir de quatro colunas fundamentais: a racionalidade, o empirismo, a imaginação e a verificação. Sabemos que há um diferendo permanente entre o racionalismo e o empirismo. As novas descobertas empíricas e o experimentalismo foram pondo em causa, de diversas maneiras, as construções racionais – que permanentemente se reconstituem e reconstroem constantemente a partir de novos elementos e fatores. Ao salientarmos a importância das Humanidades, entendemos que a complexidade não é uma receita, mas um apelo à civilização das ideias. De facto, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. E ambas levam-nos ao abismo. Importa, pois, entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva».

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

FRANCISCO E O PÓS-PANDEMIA. 2


Continuo com o discurso de Francisco ao Corpo Diplomático, com perspectivas para o mundo pós-pandemia, a partir das crises causadas ou postas a nu pela pandemia.

2.3. Crise migratória.

A crise provocará um aumento dramático de migrantes e refugiados. Desde a Segunda Guerra Mundial que o mundo não tinha ainda assistido a “um aumento tão dramático do número de refugiados. Por isso, torna-se cada vez mais urgente “erradicar as causas que obrigam a emigrar”, como também se exige um esforço comum para apoiar os países de primeiro acolhimento, que se encarregam da obrigação moral de salvar vidas humanas.


Neste contexto, Francisco espera com interesse “a negociação do Novo Pacto da União Europeia sobre a migração e o asilo”, observando que “políticas e mecanismos concretos não funcionarão sem o apoio da vontade política necessária e do compromisso de todas as partes, incluindo a sociedade civil e os próprios migrantes.”


2.4. Crise política.
Para Francisco, todos estes temas críticos “põem em relevo uma crise muito mais profunda, que de algum modo está na raiz das outras e cujo dramatismo veio à luz precisamente com a pandemia.” É a crise política, que desde há uns tempos mina de modo violento muitas sociedades e “cujos efeitos devastadores emergiram durante a pandemia”. Aumentam os conflitos políticos e a dificuldade, se não a incapacidade, para “encontrar soluções comuns e partilhadas para os problemas que afligem o nosso planeta”. Manter viva a democracia é, portanto, um gigantesco desafio neste momento histórico. “A democracia baseia-se no respeito recíproco, em que todos possam contribuir para o bem da sociedade, e em considerar que opiniões diferentes não só não ameaçam o poder e a segurança dos Estados, como, pelo contrário, num confronto honesto, se enriquecem mutuamente e permitem encontrar soluções mais adeqaudas para os problemas que é preciso enfrentar.”


Infelizmente, “a crise da política e dos valores democráticos afecta também a nível internacional, com repercussões em todo o sistema multilateral.” É o momento de levar adiante reformas, para que as organizações internacionais recuperem a sua vocação essencial de servir a família humana, preservar a vida de todas as pessoas e a paz. “Todo o corpo vivo precisa de reformar-se continuamente e, nesta perspectiva, estão também as reformas que implicam a Santa Sé e a Cúria Romana.”


Constata: “Há demasiadas armas no mundo”. Por isso, é necessário intensificar o esforço no âmbito do desarmamento, contra a proliferação do armamento nuclear, que deve estender-se às armas químicas e às armas convencionais.  Um equilíbrio baseado no medo  apenas tende a minar a confiança entre os povos. Confessa: “Não posso esquecer outra grave praga do nosso tempo: o terrorismo”, com tantas vítimas entre pessoas inocentes e indefesas.


2.5. Crise das relações humanas.
Esta é talvez a mais grave: “a crise das relações humanas, expressão de uma crise antropológica geral, que diz respeito à própria concepção da pessoa humana e à sua dignidade transcendente.”


Longos períodos de confinamento também permitiram mais tempo passado em família e redescobrir “as relações mais queridas”. Não há dúvida de que “o casamento e a família constituem um dos bens mais preciosos da Humanidade” e “o berço de toda a sociedade civil”. Perante a dimensão mundial dos problemas, a família cumpre as novas incumbências que sobre ela recaem, “em primeiro lugar oferecendo aos filhos um modelo de vida fundado sobre os valores da verdade, liberdade, justiça e amor”. Também é um facto que nem todos puderam viver com serenidade na própria casa e muitas vezes as situações degeneraram em violência doméstica e “sabemos que lamentavelmente são as mulheres que, amiúde com os seus filhos, pagam o preço mais alto”. Aliás, a pandemia aprofunda as desigualdades sociais e as mulheres são as mais atingidas.


2.6. Catástrofe educativa.
A pandemia obrigou a longos meses de isolamento, e é preciso pensar nos estudantes que não puderam frequentar presencialmente a escola ou a univeridade. Até certo ponto colmatou-se a situação através de plataformas educativas informatizadas, mas isso contribuiu também para o aprofundamento das  desigualdades — não se pode esquecer que a escola é factor decisivo a favor da igualdade —, e o aumento “da dependência das crianças e adolescentes da internet e das formas de comunicação virtual em geral, tornando-os ainda mais vulneráveis e sobre-expostos às actividades cibercriminais.” 


2.7. A dimensão religiosa.
As exigências para conter a difusão da pandemia acabaram por limitar também várias liberdades fundamentais, incluída a liberdade de religião. Ora, não podemos “passar por alto que a dimensão religiosa constitui um aspecto fundamental da personalidade humana e da sociedade; mesmo quando se está a procurar proteger vidas humanas da difusão do vírus, a dimensão espiritual e moral da pessoa não se pode considerar como secundária relativamente à saúde física.”


Por outro lado, “a liberdade de culto não constitui um corolário da liberdade de reunião, pois deriva essencialmente do direito à liberdade religiosa, que é o primeiro e fundamental direito humano. Por isso, é necessário que seja respeitada, protegida e defendida pelas autoridades civis, como a saúde e a integridade física. Aliás, um bom cuidado do corpo nunca pode prescindir do cuidado do espírito.”


Páscoa Feliz!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 ABR 2021

FRANCISCO E O PÓS-PANDEMIA. 1


São 187 os países que têm relações diplomáticas com a Santa Sé/Vaticano. Também várias organizações internacionais, como a União Europeia, a Liga dos Estados Árabes, a Organização Internacional para as Migrações, o Alto-Comisssariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Ordem Soberana Militar de Malta, têm um representante junto do Papa.


1. Como habitualmente, também este ano o Papa Francisco saudou o Corpo Diplomático num discurso com propostas para o futuro novo. Derrotar o vírus é “uma responsabilidade que nos envolve a todos: cada um de nós pessoalmente e também os nossos países.” O ano de 2020 “deixou atrás de si um peso de medo, desânimo e desespero, a par de muitos lutos.” A pandemia mostrou como somos interdependentes: os seus efeitos são verdadeiramente globais, afectando toda a Humanidade. “Pôs-nos em crise, mostrando-nos o rosto de um mundo doente, não só pelo vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e políticos, e ainda mais nas relações humanas. Colocou diante de nós uma alternativa: continuar pelo caminho que temos seguido ou empreender uma nova via.”


Francisco apresentou as crises causadas ou manifestadas pela pandemia, examinando ao mesmo tempo “as oportunidades que delas derivam para construir um mundo mais humano, justo, solidário e pacífico”.  O ponto central é a dignidade inviolável da pessoa humana. Tendo I. Kant em fundo, disse: “Cada pessoa humana é um fim em si mesma, nunca um simples instrumento cujo valor é medido só pela sua utilidade, e foi criada para conviver na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros têm a mesma dignidade. Desta dignidade derivam os direitos humanos, bem como os deveres”, e lembra, por exemplo, a responsabilidade de acolher e ajudar os pobres, os doente, os marginalizados. “Se se suprime o direito à vida dos mais débeis, como se poderá garantir de facto todos os outros direitos?”.


Aqui, impõe-se perguntar: qual é o fundamento da dignidade da pessoa humana, fim em si mesma e não simples meio? Pessoalmente, defendo que esse fundamento se mostra e se encontra na constituição do ser humano, constiuição que o faz perguntar, mas de tal modo que, de pergunta em pergunta, inevitavelmente chegará à pergunta pelo Infinito. Nesta capacidade de perguntar ao Infinito pelo Infinito, em última análise, por Deus, mostra-se que o Homem tem em si algo de infinito. E só o Infinito é fim e não meio: na verdade, o que é que há para lá do Infinito? Por isso, a pessoa humana é livre e faz a experiência da liberdade no ser dada a si mesma. Cada um/a é senhor/a de si mesmo/a e das suas acções, autopossui-se, é dono/a de si e das suas acções, respondendo por elas: é responsável.


2.1. Crise sanitária.
A pandemia colocou de modo violento à nossa frente “duas realidades iniludíveis da existência humana: a doença e a morte”. Perante elas, tomámos consciência mais aguda do valor e dignidade  de cada vida humana. De facto, perante a morte, cada um/a é confrontado/a  com o seu ser único, como revela aquele clamor dramático de Miguel de Unamuno frente à morte: “Ai que roubam o meu eu!” A doença e a morte lembram-nos também a necessidade e o direito ao cuidado: precisamos de ser cuidados e de cuidar. Aos responsáveis políticos e de governo impõe-se, portanto, o esforço para favorecer “o acesso universal à atenção sanitária de base”, não podendo ser só “a lógica do lucro” a guiar um sector tão delicado como decisivo. Evidentemente, no imediato, é necessário assegurar “a distribuição equitativa das vacinas, que devem beneficiar toda a Humanidade”. Aqui, diria eu, até por uma imposição de um egoísmo esclarecido: de facto, dada a interdependência, enquanto não forem todos vacinados, estamos todos ameaçados, tanto mais quanto há o perigo de contínuas novas variantes do vírus. Ninguém é uma ilha; como escreveu John Donne, “a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte da Humanidade.”


2.2. Crise ambiental.
Percebemos agora melhor que não é apenas o ser humano que está doente, também o nosso planeta Terra está doente, e “a pandemia mostrou-nos mais uma vez a medida em que também é frágil e quanto precisa de cuidados.” Francisco espera que a próxima Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), em Glasgow, em Novembro próximo, “permita chegar a um acordo efectivo para enfrentar as consequências das mudanças climáticas. Este é o momento de agir, pois já estamos a sentir os efeitos de uma prolongada inacção.”


2.3. Crise económica e social.
A pandemia impôs restrições à circulação e confinamentos, que acabaram por provocar inevitavelmente uma terrível crise social e económica a nível global. Esta crise “é uma ocasião propícia para recolocar a relação entre a pessoa e a economia. É necessária uma espécie de “nova revolução copernicana” que ponha a economia ao serviço do Homem e não ao contrário, começando a estudar e a praticar uma economia diferente, “a que faz viver e não mata, que inclui e não exclui, que humaniza e não desumaniza, que cuida da criação e não se alimenta da depradação.” Não se pode buscar soluções particulares para problemas que são globais. Neste sentido, o plano Next Generation EU é um bom exemplo de colaboração e solidariedade.  “Que a conjuntura seja também um estímulo para perdoar ou pelo menos reduzir a dívida dos países mais pobres, que de facto impede a recuperação e o pleno desenvolvimento.”   (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 MAR 2021

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

JUÍZO DO ANO…


N
o começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.


I.
Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer;  (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de 
Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças.
Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.


II.
Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…   


III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!"Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…

 

Agostinho de Morais

ENTRE O ANO VELHO E O ANO NOVO

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A passagem de ano é sempre, mesmo nesta nossa presente circunstância triste e confinada, um tempo especial: balanço do ano que passou, perspectivação do ano novo que chega.

1. Agora, percebemos melhor que é preciso programar, mas há também o imprevisível. Quem poderia prever há um ano que iria cair sobre nós, nós todos, globalmente, esta catástrofe de uma pandemia: um vírus invisível, com sofrimentos indizíveis por todo o lado, que nos traz a todos em sobressalto permanente? Tivemos de aprender por experiência dura o que não conhecíamos: palavras como covid-19, confinamento, desconfinamento, reconfinamento, “distância social”, máscaras (sabíamos, mas era tudo em abstracto)... Sobretudo: que muitos, no fim do ano de 2020, já cá não estão, e foram-se sem uma despedida, como se tivessem desaparecido numa noite de breu, no meio de uma tempestade...

Ficámos a saber - será que ficámos? -, nós que nos julgávamos omnipotentes, que afinal somos frágeis, terrivelmente frágeis. E oxalá tenhamos aprendido que somos todos interdependentes, para o melhor e para o pior. E esta desgraça pandémica também nos mostrou à saciedade que o ser humano é de uma inaudita complexidade e de terríveis contradições: somos capazes de generosidade heróica para salvar pessoas, mas também está aí a nossa loucura e brutalidade: apesar da pandemia, que esperaria uma trégua no meio do horror, guerras brutais, terrorismos hediondos, assassinatos arrepiantes, violações repugnantes, exploração clamorosa dos mais fracos... continuaram. Já Sófocles constatou: “Coisas terríveis há, mas nenhuma mais terrível que o Homem.”

Daqui a alguns anos, quando se voltar ao “normal” - o que é isso? -, o que se dirá desta desgraça? O que ficará na memória? A memória humana é curta e talvez só quando vier outra pandemia - ela virá com certeza, sobretudo se não houver a necessária conversão quanto ao modelo de desenvolvimento, que atenda ao meio ambiente e à justiça para toda a Humanidade, no quadro de uma racionalidade dialógica global, como propugna J. Habermas - é que aqueles que cá estiverem recordarão... Quem se lembrava de que, no século XIV, a peste negra fez 100 milhões de mortos e que há cem anos a gripe espanhola ceifou uns 50 milhões de vidas, incluindo os dois pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta?

2. Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, temores, esperança. Que é que nos reserva 2021? Para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou?

Ele está aí novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança. Todos nós, individual e colectivamente, enfrentamos o novo ano essencialmente com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo, também com algum ou muito temor, mas essencialmente esperamos confiadamente, tanto mais quanto está aí a vacina. O ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida nos vai confrontando.

Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistimos de lutar e esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e pestes e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas para a justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”

Neste movimento incontível. ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansou de repetir o ateu Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX: “Onde há esperança, há religião”.

3. Um propósito bom para o novo ano: prometer a si mesmo, a si mesma, no meio do turbilhão da vida, do barulho e da agitação, alguns momentos diários de meditação, de silêncio, para o aparentemente inútil, que é o mais necessário: ouvir o Silêncio, ouvir a voz da consciência e da razão, falar com o Mistério, talvez mudar de rumo. Neste contexto, permita-se-me evocar Maradona, a quem chamaram “deus”, um dos mais famosos a desaparecer em 2020: um ano antes, confessou que “não era exemplo para ninguém”, que tinha cometido “muitos erros”, mas também tinha feito “coisas boas”, que “o regresso à Igreja fora inspirado pela vida e a fé da sua mãe” - “uma das coisas que aprendeu dela foi a fé simples”, “tinha orgulho nela e no seu pai também” -, que “queria paz para o tempo de vida que Deus ainda lhe concedesse.”

Bom ano!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 DEZ 2020

PREPARAR O QUE AÍ VEM…


“Um objetivo sem um plano é apenas um desejo”.
Antoine de Saint-Exupéry.

 

Giorgio Agamben deu o grito de alerta em Itália: “corremos o risco de vermos abolido o nosso próximo”. Perante a pandemia e o confinamento chegamos à conclusão de que, em abstrato, é possível funcionar a distância, em linha, sem as relações diretas, olhos nos olhos, mas isso é só em abstrato. É extraordinário podermos contar com a comunicação digital, mas é insuficiente, sobretudo quando falamos das relações humanas, da educação e da cultura, do conhecimento, da sabedoria, mas também da ciência e da técnica. O que tem mais valor não tem preço e o desenvolvimento humano obriga a compreender que a cooperação e a solidariedade são para a humanidade o que a biodiversidade é para os seres vivos. As máquinas não vão substituir o contacto entre seres humanos.

 

Lembrando-me do exercício que tive o gosto de coordenar sobre a definição do perfil dos alunos no fim do ensino obrigatório, não posso esquecer que a liberdade, a responsabilidade e a cidadania, exigem presença, autonomia, risco. É verdade que a situação atual não oferecia alternativa – havia que usar a distância no ensino para salvaguardar a presença futura. Mas importa, desde já, preparar a sequência. Por isso, José Tolentino Mendonça disse: “Não é possível excluir o corpo da escola, pois é através dele que damos significação ao mundo, maturando os diversos saberes e exercitando a responsabilidade pela inteira existência” (Expresso, 30.5.2020). Perante uma situação excecional, tivemos de encontrar respostas excecionais, mas urge agora delinear com inteligência novas saídas. Afinal, se reforçarmos a liberdade e a responsabilidade pessoal podemos combater melhor os efeitos da pandemia, prevenir e salvaguardar a saúde pública e reforçar a cidadania democrática e o desenvolvimento económico.

 

Foi por falta de transparência e descrença na responsabilidade cívica das pessoas e das instituições que muitas soluções falharam. Temos, assim, de reconhecer as virtualidades e as limitações da solução possível encontrada – a distância e o confinamento. Agravam-se as desigualdades, afetam-se os mais frágeis, comprometem-se os níveis mais precoces de aprendizagem. A educação e a escola têm, agora, de corresponder de modo inovador ao desafio atual. Imediatamente, não havia margem de manobra, mas temos de pensar a ligação entre desenvolvimento, saúde pública, liberdade, responsabilidade e cidadania. Veja-se como avançámos na consciência de que o consumismo e a destruição do meio ambiente podem ter respostas positivas, através da equidade intergeracional e da justiça distributiva… Em lugar de uma estratégia defensiva, devemos preparar-nos para não ser apanhados novamente desprevenidos. Importa contrariar os riscos de agravamento das desigualdades e da exclusão – tomando consciência de um dilema paradoxal contemporâneo, entre Cila e Caríbdis, vivemos entre a uniformização e a fragmentação. E Edgar Morin tem insistido na necessidade de tirar lições da brutal situação em que ficámos: quanto de essencial perdemos no culto do acessório, quanta liberdade perdemos no medo. Volto ao tema do perfil do cidadão do século XXI: importa complementar os avanços do mundo digital e do ensino a distância com maior cooperação interpessoal, com os bons efeitos das redes, com o favorecimento da dimensão internacional, contra os egoísmos nacionalistas. O patriotismo cívico e constitucional prospetivo, é essencial, com o cosmopolitismo centrado no respeito mútuo. Urge adequar, na aprendizagem de qualidade, motivação, exigência, trabalho, capacidade de resolver problemas, cuidado, atenção e entreajuda.

 

Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

58. UMA TEORIA DA CULPA

 

A pé e meditando em silêncio, em passeios salubres de época de pandemia, acautelado em regras sanitárias e de distanciamento, recolhendo vitamina solar e tentando alguma imunidade, certifico-me que uma percentagem significativa de veículos estacionados e em circulação, tantas vezes maioritária, é de origem e marca germânica. 

 

A proporção aumenta ou é mais notória se maiores os sinais exteriores de riqueza da urbanização onde imobilizados ou em andamento, mas verifico ser quase sempre mais alta, no geral, por confronto com viaturas mais acessíveis.   

 

A que acresce a maioria da frota automóvel governamental, elites e cidadãos que fazem o culto do automóvel de modelo alemão.   

 

Embora a mentalidade portuguesa seja imperial e de rico, pelo seu passado histórico e colonial ao longo dos séculos, sempre me impressionou esta apetência automobilística pelo que vem da Alemanha, onde se incluem viaturas tidas como duráveis, de grande qualidade e cilindrada, como se a restante oferta mundial não fosse adequada para a nossa circulação no dia a dia, quer em carros de topo, mais populares e baratos.

 

O que é agudizado pelo desejo, tantas vezes obsessivo ou ostensivo, de querer esta ou aquela marca germânica em particular, para toda a vida, proclamam alguns, mesmo que mais cara e à revelia do ambiente.

 

Este pensar de ricos pobres, num país em que faltam recursos e competitividade, confirma que não são os modelos e veículos mais populares e alcançáveis em dinheiro, os que grande parte dos portugueses preferem.

 

Antes sim os mais dispendiosos e chamativos, comprando mais caro e a crédito, se necessário, endividando-se e produzindo maior dívida, em benefício de outros.

 

O que não deixa de ser sintomático de uma ausência de sentido crítico de quem se endivida e compra produtos mais onerosos, não monopólio de um ou dois produtores, em proveito de quem nos censura por colocarmos “o carro à frente dos bois”.

 

Recordo-me de, em 2012, em plena crise das dívidas soberanas, dirigentes alemães darem como mau exemplo de despesismo e consumo inútil de verbas europeias a construção de bonitas autoestradas e belos túneis na ilha da Madeira, causando impacto e admiração, mas que não aumentavam a competitividade, como deveriam, demonstrando o desastroso uso de dinheiro e o porquê de estarmos endividados.

 

Portugueses houve que interpretaram tal exemplo como um aviso, por via indireta, de nos culpabilizar pelo nosso défice e dívida excessiva, do fundamento para a então imperiosa necessidade de intervenção da troika e consequente punição, com as adequadas adaptações extensivas a outros países, nomeadamente do sul da Europa.

 

E quem salientasse que era de reprovar que a censura e punição não fosse adequadamente extensiva a todos os países credores, incluindo a Alemanha, que vendem desproporcionalmente caro veículos (e outros bens) a crédito vendido por bancos germânicos (mas não só) a países endividados, como Portugal, circulando por  autoestradas e túneis não competitivos da União Europeia, em locais mais tidos como da família da cigarra que da formiga, com o devido respeito pela primeira, a quem nada devo, nem o inverso…   

 

O despesismo de uns é o superavit de outros.

 

É caso para perguntar: e se dissermos a Berlim, com outros países em igualdade de circunstâncias, que como somos pobres e endividados, só podemos e devemos aprender a viver com marcas e modelos de veículos mais económicos? Aplicando, in casu, o princípio da adequação, da proporcionalidade e razoabilidade inerente à capacidade de riqueza produzida e de endividamento de cada país?

 

Ninguém nos obriga a comprar este ou aquele produto, é certo, mas se aos olhos de quem nos quer vender a crédito prevaricamos tanto, de quem é a culpa?

 

Essencialmente do devedor, do credor ou de ambos? 

 

03.07.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício