Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Bento XVI morreu no passado dia 31 de Dezembro. As suas últimas palavras foram: “Senhor, eu amo-te.” Não há dúvida de que o seu grande legado para a História foi a renúncia, sinal de humildade e dessacralizando o papado. Para lá disso, fica também, como sublinhou José Manuel Vidal, “o milagre da coabitação e da transição tranquila”. Francisco punha fim a uma Igreja piramidal, clerical, carreirista, autorreferencial, e, agora, a caminho de uma Igreja sinodal, circular, “hospital de campanha”. E podemos imaginar o sofrimento de BentoXVI ao “ver como a sua obra era derrubada” ao mesmo tempo que era “duro para o Papa Francisco este trabalho de desmontagem perante os olhos de Bento XVI… No entanto, de modo geral, a convivência durante quase dez anos foi delicada e até fraternal”. Seja como for, não se deve de modo nenhum ignorar a diferença entre Bento XVI e Francisco, bem clara ao ler a obra póstuma de Bento XVI, Che cos’è il Cristianesimo (O que é o cristianismo), onde, por exemplo, defende uma ligação, dir-se-ia intrínseca, entre a ordenação sacerdotal e a obrigação do celibato.
Durante o seu funeral houve quem pedisse a canonização rápida — lá apareceu o cartaz do tempo do funeral de João Paulo II com “Santo subito”. Creio que isso não vai acontecer nem seria bom que acontecesse, como se prova ao pensar hoje na precipitação em canonizar João Paulo II. Nesse sentido se pronunciou o cardeal Walter Kasper, antigo prefeito do Dicastério (Ministério) para a unidade dos cristãos, usando até uma nota de humor: “Para o Céu não se vai em comboio de alta velocidade”.
Esta é mais uma iniciativa dos conservadores no sentido de “utilizar” Bento XVI contra Francisco, com a finalidade de precipitar a queda deste. É sabido que enquanto Bento XVI vivesse a renúncia de Francisco seria muito difícil. Por isso, alguns ultraconservadores e opositores de Francisco apressaram-se na luta de ataques contra ele, a começar pelo secretário de Bento XVI, o arcebispo G. Gänswein, que se precipitou a publicar as suas memórias no livro anunciado ainda antes do funeral: Nient’altro che la verità (Só a verdade). O arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn, criticou-o: “Uma indiscrição indecorosa. Não me parece bem que se publiquem coisas tão confidenciais, sobretudo por parte do secretário pessoal”. W. Kasper também disse que “seria melhor estar calado”.
De qualquer forma, no livro não há grandes revelações. Uma delas refere a dor de Bento XVI pelo facto de Francisco praticamente ter acabado com a possibilidade da Missa em latim. Pessoalmente, pergunto: porquê lamentar a proibição da Missa em latim? De facto, reclamar a possibilidade da celebração em latim e de costas para o povo é, nem que seja só inconscientemente, uma forma de clericalismo, pois só o clero (bispos, padres) teria a possibilidade de falar directamente com Deus, como se Deus só entendesse latim!
O cardeal Pell, entretanto falecido, apontou o pontificado de Fancisco como “um desastre”. E o cardeal Gerhard Müller, antigo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no seu novo livro de entrevistas com a vaticanista Franca Giansoldati, publicado ontem, In buona fede (Com boa fé), ataca frontalmente Francisco, também por causa da Constituição Apostólica sobre a reforma da Cúria, Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho). Para Müller, existe uma “tendência para reformar a Igreja no sentido protestante” e que deriva de “uma visão liberal que despreza a tradição”.
E Francisco vai resignar? Já afirmou: “Se vir que não posso continuar ou estou a causar dano ou a ser um estorvo, espero ‘ajuda’ para tomar a decisão de retirar-me e, chegado esse dia, prefiro ser considerado simples Bispo emério de Roma em vez de Papa emérito”. Note-se que, de facto, teologicamente, não é aceitável o título “Papa emérito”. E também disse a que gostaria de se dedicar: “Se sobreviver à renúncia, gostaria de fazer coisas deste tipo: ouvir as pessoas em confissão e ver doentes.”
No entanto, a resignação não está para breve. Ele próprio acaba de declarar em entrevista à Associated Press que está “bem de saúde” e que a dor no joelho praticamente tinha desaparecido. De qualquer modo, “governa-se com a cabeça e não com as pernas.” Repetiu que, no caso de renúncia, seria “Bispo emérito de Roma” e viveria na residência para padres reformados da diocese.
Para já, continua com os seus compromissos: na semana próxima, visitará a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul; em Agosto, está em Portugal para a Jornada Mundial da Juventude e já advertiu que a JMJ não pode ficar reduzida a turismo religioso e espectáculo, e eu, pessoalmente, estou convencido de que não gostará que a celebração da Eucaristia final seja num altar-palco com o custo de mais de 4 milhões de euros.
Dedicar-se-á intensamente à continuação da preparação e celebração do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade em Outubro próximo, continuando no ano de 2024. De facto, a Igreja atravessa uma das suas mais dramáticas crises e precisa de uma mudança estrutural. Para ele, é bom haver críticas, “porque isso quer dizer que há liberdade para falar. A única coisa que peço é que mas digam na cara, porque assim crescemos todos, não é verdade?”
O legado de Francisco será precismente uma Igreja sinodal, caminhando todos em conjunto, sem “imperador” e “uma ditadura da distância”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 de janeiro de 2023
Na presente crise gigantesca da Igreja, impõe-se continuar com a reforma que o Papa Francisco pôs em marcha. Para ela, há que contar também com contributos e reflexões de Bento XVI, apesar das duras críticas que justamente se levantam contra ele. Não se pode esquecer que a primeira herança a ter em conta é justamente Francisco. Repare-se em algumas dessas reflexões, que mostram não ser possível contrapor pura e simplesmente Francisco e Bento XVI. Ficam aí alguns exemplos.
1. Ainda recentemente Francisco lembrou o seu antecessor, que dizia: “A Igreja não faz proselitismo, cresce muito mais por atracção.” Neste sentido, em 1969 o então professor de Teologia J. Ratzinger avançou com uma profecia: “Da actual crise surgirá uma Igreja que terá perdido muito. Será mais pequena e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Recomeçará com pequenos grupos. Será uma Igreja mais espiritual, Igreja dos pobres.” Acrescentou: mas então as pessoas descobrirão que vivem num mundo de “indescritível solidão” e elas, que tinham perdido Deus de vista, verão “esse pequeno rebanho de crentes como algo completamente novo: descobri-lo-ão como uma esperança para eles próprios, a resposta que secretamente sempre tinham procurado.” Voltou à ideia em 1970 e 1971: A Igreja “tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios… Conhecerá também certamente novas formas de ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão”. Sobre o celibato: por um lado, a sua defesa; por outro, a ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não) parecia-lhe “ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Nessa altura admitiu também, no quadro de certas condições, a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
2. Ele que carregou com o que terá constituído o seu maior pecado — a condenação de dezenas e dezenas de teólogos — também deixou escrito: “Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade ecclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a sua comodidade da sua própria carreira.”
3. Contra uma Igreja centrada na Europa, confessou, já depois de ter abdicado e pensando na eleição de Bergoglio: “Papa é o Papa, não importa quem seja”. A eleição de um cardeal latino-americano “significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos. É completamente claro que a Europa já não é o centro da Igreja mundial” e é evidente que ela “está a abandonar cada vez mais as velhas estruturas tradicionais da vida europeia e, portanto, muda de aspecto e nela vivem novas formas . É claro sobretudo que a descristianização da Europa progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da sociedade. Portanto, a Igreia deve encontrar uma nova forma de presença. Estão em curso reviravoltas epocais.” A teologia precisa de renovar-se e admoestou os cardeais para “renunciarem ao estilo mundanao de poder e glória”.
4. E não tinha razão quando, nas Últimas Conversas, depois de confessar que “acreditar não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim — no silêncio — ouvir a Palavra, ver o Amor”, perguntou: Qual é “o verdadeiro problema deste nosso momento da História? Deus desaparece do horizonte das pessoas e, com a extinção da luz que vem de Deus”, a Humanidade é apanhada pela falta de orientação, “cujos efeitos se manifestam cada vez mais”.
Pergunto: não consiste o desastre da presente situação de consumismo hedonista e de vazio no facto de já nem sequer se colocar a pergunta essencial, a pergunta pelo Fundamento, pelo Sentido último? Sem essa pergunta, onde fundamentar a dignidade do ser humano, “fim em si mesmo e não simples meio”, como teorizou I. Kant? De facto, só o Infinito é fim em si mesmo: para lá não existe mais nada. O que tem o ser humano de infinito senão precisamente a pergunta ao Infinito pelo Infinito, em última análise, a pergunta por Deus, independenetemente da resposta que lhe dê, pois, com honestidade, pode haver crentes, agnósticos e ateus?
5. Enfrentou a doutrina da “satisfação”: Deus mandou o seu Filho Jesus ao mundo para, com a morte na cruz como vítima expiatória, reparar a ofensa infinita feita a Deus pela Humanidade. Rejeitou a noção de um Deus colérico, sádico, “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”, contradiz o Deus-Amor, revelado em Jesus.
6. Percebeu a necessidade, no contexto da interdependência de tudo e de todos, de uma Governança global: “Urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.
7. Ficam para a História a denúncia da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja, e a resignação, que permitiu a eleição de Francisco, uma bênção para a Igreja e para o mundo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de janeiro de 2023
Tive uma vez um breve encontro com ele em Roma. A impressão que me ficou: um pessoa agradável, afável, reservada e tímida. E pude aperceber-me também da importância decisiva que tinha para ele o que se pode chamar a “pastoral da inteligência”, isto é, a reflexão sobre o diálogo entre a razão e a fé.
Joseph Ratzinger também teve o seu momento de rebeldia e de progressismo, no Concílio Vaticano II, como aqui expliquei em múltiplas crónicas, concretamente em 2020, em cinco textos sobre “Bento XVI. Uma vida”. Não se deve esquecer o que, imagino, foi para ele, mais tarde, um escândalo: defendeu a possibilidade de pôr fim à lei do celibato obrigatório e ordenar como padres homens casados exemplares bem como de recasados poderem aceder à comunhão. Chegou a dizer nas aulas, em Tubinga: “em Roma, como sabem, não se faz boa Teologia”.
Durou pouco tempo este posicionamento. A sua orientação teológica agostiniana — Santo Agostinho não tinha em muito boa consideração o mundo — inclinava-o mais para uma visão conservadora, místico-espiritual da Igreja. A mudança teve como ponto decisivo o medo dos excessos de 1968, com as transformações que então se puseram em marcha nos domínios da concepção da autoridade, da sexualidade, do radicalismo ateu de estudantes de Teologia, da “ditadura do relativismo”...
Reconhecido pela sua inteligência brilhante e uma rara cultura — dialogou com grandes intelectuais ateus e agnósticos, incluindo o filósofo Jürgen Habermas —, foi mais um intelectual e um professor do que um pastor, gestor. As circunstâncias fizeram com que ele, essa figura afável, tímida, honesta e íntegra deixasse a vida académica, se tornasse arcebispo de Munique, seguisse para Roma como “inquisidor”, condenando muitas dezenas de teólogos, o seu maior pecado, participasse no retrocesso em relação ao Concílio, a ponto de o seu colega como perito conciliar, talvez o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, terminar os seus dias com a mágoa da entrada no “inverno da Igreja”. Não creio que o desejasse, mas acabou por ser eleito Papa — aquando da eleição, lembrou-se, disse-o ele, da guilhotina.
Não era um teólogo inovador, mas deixa uma obra teológica importante, nomeadamente, três encíclicas: a primeira, para dizer que a verdadeira “definição” de Deus é que é Amor; a segunda, para convocar os cristãos e todos os homens à esperança; a terceira é sobre “a caridade (o amor) na verdade”. Nela, condena as posições neoliberais, cujo único objectivo é o lucro; reafirma a doutrina essencial de que a economia e o desenvolvimento só são verdadeiros se estiverem ao serviço do Homem todo e de todos os homens; que, em ordem ao seu correcto funcionamento, a economia precisa da ética, “uma ética amiga da pessoa”; que, para conseguir o governo da economia mundial, o desarmamento, a segurança alimentar e a paz, a salvaguarda do meio ambiente e a regulação dos fluxos migratórios, “urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.
Ideia nuclear foi a do diálogo entre a fé e a razão. A fé, sem a razão, é cega e intolerante; a razão, sem a abertura à transcendência, pode enlouquecer. No cristianismo, acolhe-se a fé, dando lugar à descoberta do “Deus que é Razão criadora e ao mesmo tempo Razão-amor”. Aí está o vínculo indissolúvel entre Razão, Verdade e Bem.
Na Sexta-Feira Santa de 2005, ainda cardeal, declarou: “quanta porcaria na Igreja! A traição dos discípulos fere mais Jesus”. Referia-se certamente ao escândalo da pedofilia — removeu cerca de 400 padres culpados de abusos contra menores —, à figura sinistra do padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, ao que se passava na Cúria. Quando assumiu funções como Papa, foi exemplar, pondo Maciel fora da vida pública, pedindo perdão às vítimas da pedofilia e tomando medidas drásticas e consistentes para que os crimes não se repitam.
Não conseguiu reformar a Cúria nem pôr termo às intrigas, ao carreirismo, às lutas pelo poder, aos escândalos, desde a corrupção à lavagem de dinheiro no Banco do Vaticano, ao Vatileaks. Sem forças “no corpo e no espírito”, abdicou, “em consciência e plena liberdade”, para que outro lhe sucedesse.
Foi talvez a lição maior de Ratzinger enquanto Papa. Houve quem o criticasse, também dentro da Igreja e pensando em João Paulo II: que não se desce da Cruz e que dessacralizou o papado. Mas, afinal, o Papa é mais do que um homem? Não se trata tão-só de um cristão que leva consigo a específica missão gigantesca de ser sinal e promotor de unidade entre os cristãos e a Humanidade?
Este foi o seu testamento: abandonou pacificamente o poder. Porque na Igreja, como aliás no mundo em geral, é preciso escolher entre o poder como dominação e a força do serviço. O Deus cristão não se revela como Poder-Dominação, mas Força Infinita de criar, no Amor. Bento XVI leu e recomendou que todos os Papas lessem a famosa carta de São Bernardo ao Papa Eugénio III: “Não pareces um sucessor de Pedro, mas de Constantino.”.
Retirou-se para o Mosteiro Mater Dei, no Vaticano, afirmando sempre, contra alguns cardeais opositores, que agora o Papa era Francisco, que na homilia do funeral, se despediu, citando-o: “Ser pastor quer dizer amar, e amar quer dizer também estar dispostos a sofrer.” E agora? (continua).
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 14 de janeiro de 2023
O Grande Auditório do CCB encontrava-se totalmente cheio quando o líder religioso entrou, eram 10h10, e subiu ao palco, saudado pelos convidados que representam várias áreas da sociedade.
Bento XVI foi recebido em palco pelo bispo Manuel Clemente, pelo Patriarca de Lisboa, José Policarpo, pelo cineasta Manoel de Oliveira, o escritor Pedro Mexia, a maestrina Joana Carneiro, a escultora Graça Costa Cabral, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, António Rendas, o neurocirurgião João Lobo Antunes e pela ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas. No encontro foi oferecida ao Papa uma obra de ourivesaria desenhada pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira: um ovo em prata biscuit que se abre para mostrar por dentro uma pomba, símbolo do espírito.
DISCURSO DO SANTO PADRE
Venerados Irmãos no Episcopado, Distintas Autoridades, Ilustres Cultores do Pensamento, da Ciência e da Arte, Queridos amigos,
Sinto grande alegria em ver aqui reunido o conjunto multiforme da cultura portuguesa, que vós tão dignamente representais: Mulheres e homens empenhados na pesquisa e edificação dos vários saberes. A todos testemunho a mais alta amizade e consideração, reconhecendo a importância do que fazem e do que são. Às prioridades nacionais do mundo da cultura, com benemérito incentivo das mesmas, pensa o Governo, aqui representado pela Senhora Ministra da Cultura, para quem vai a minha deferente e grata saudação. Obrigado a quantos tornaram possível este nosso encontro, nomeadamente à Comissão Episcopal da Cultura com o seu presidente, Dom Manuel Clemente, a quem agradeço as expressões de cordial acolhimento e a apresentação da realidade polifônica da cultura portuguesa, aqui representada por alguns dos seus melhores protagonistas, de cujos sentimentos e expectativas se fez porta-voz o cineasta Manoel de Oliveira, de veneranda idade e carreira, a quem saúdo com admiração e afeto juntamente com vivo reconhecimento pelas palavras que me dirigiu, deixando transparecer ânsias e disposições da alma portuguesa no meio das turbulências da sociedade atual.
De facto, a cultura reflete hoje uma "tensão", que por vezes toma formas de "conflito", entre o presente e a tradição. A dinâmica da sociedade absolutiza o presente, isolando-o do patrimônio cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro. Mas uma tal valorização do "presente" como fonte inspiradora do sentido da vida, individual e em sociedade, confronta-se com a forte tradição cultural do Povo Português, muito marcada pela milenária influência do cristianismo, com um sentido de responsabilidade global, afirmada na aventura dos Descobrimentos e no entusiasmo missionário, partilhando o dom da fé com outros povos. O ideal cristão da universalidade e da fraternidade inspiravam esta aventura comum, embora a influência do iluminismo e do laicismo se tivesse feito sentir também. A referida tradição originou aquilo a que podemos chamar uma "sabedoria", isto é, um sentido da vida e da história, de que fazia parte um universo ético e um "ideal" a cumprir por Portugal, que sempre procurou relacionar-se com o resto do mundo.
A Igreja aparece como a grande defensora de uma sã e alta tradição, cujo rico contributo coloca ao serviço da sociedade; esta continua a respeitar e a apreciar o seu serviço ao bem comum, mas afasta-se da referida "sabedoria" que faz parte do seu patrimônio. Este "conflito" entre a tradição e o presente exprime-se na crise da verdade, pois só esta pode orientar e traçar o rumo de uma existência realizada, como indivíduo e como povo. De fato, um povo que deixa de saber qual é a sua verdade fica perdido nos labirintos do tempo e da história, sem valores claramente definidos, sem objetivos grandiosos claramente enunciados. Prezados amigos, há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo, levando a sociedade a perceber que, proclamando a verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade. Com efeito, a Igreja "tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do ser humano, da sua dignidade, da sua vocação. […] A fidelidade à pessoa humana exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável" (Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate, 9). Para uma sociedade composta na sua maioria por católicos e cuja cultura foi profundamente marcada pelo cristianismo, é dramático tentar encontrar a verdade sem ser em Jesus Cristo. Para nós, cristãos, a Verdade é divina; é o "Logos" eterno, que ganhou expressão humana em Jesus Cristo, que pôde afirmar com objetividade: "Eu sou a verdade" (Jo 14, 6). A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da verdade, com o respeito por outras "verdades" ou com a verdade dos outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade.
"A Igreja – escrevia o Papa Paulo VI – deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, a Igreja torna-se mensagem, a Igreja faz-se diálogo" (Encíclica Ecclesiam suam, 67). De fato, o diálogo sem ambiguidades e respeitoso das partes nele envolvidas é hoje uma prioridade no mundo, à qual a Igreja não se subtrai. Disso mesmo dá testemunho a presença da Santa Sé em diversos organismos internacionais, nomeadamente no Centro Norte-Sul do Conselho da Europa instituído há 20 anos aqui em Lisboa, tendo como pedra angular o diálogo intercultural a fim de promover a cooperação entre a Europa, o Sul do Mediterrâneo e a África e construir uma cidadania mundial fundada sobre os direitos humanos e as responsabilidades dos cidadãos, independentemente da própria origem étnica e adesão política, e respeitadora das crenças religiosas. Constatada a diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a receber um enriquecimento da mesma e a dar-lhe aquilo que se possui de bem, de verdade e de beleza.
Esta é uma hora que reclama o melhor das nossas forças, audácia profética, capacidade renovada de "novos mundos ao mundo ir mostrando", como diria o vosso Poeta nacional (Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 45). Vós, obreiros da cultura em todas as suas formas, fazedores do pensamento e da opinião, "tendes, graças ao vosso talento, a possibilidade de falar ao coração da humanidade, de tocar a sensibilidade individual e coletiva, de suscitar sonhos e esperanças, de ampliar os horizontes do conhecimento e do empenho humano. […] E não tenhais medo de vos confrontar com a fonte primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza infinita" (Discurso no encontro com os Artistas, 21/11/2009).
Foi para "pôr o mundo moderno em contato com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho" (João XXIII, Constituição apostólica Humanae salutis, 3) que se fez o Concílio Vaticano II, no qual a Igreja, a partir de uma renovada consciência da tradição católica, assume e discerne, transfigura e transcende as críticas que estão na base das forças que caracterizaram a modernidade, ou seja, a Reforma e o Iluminismo. Assim a Igreja acolhia e recriava por si mesma, o melhor das instâncias da modernidade, por um lado, superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída. O evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação católica e de uma nova civilização – a "civilização do amor" – como serviço evangélico ao homem e à sociedade.
Caros amigos, a Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura atual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza. Interceda por vós Santa Maria de Belém, venerada há séculos pelos navegadores do oceano e hoje pelos navegantes do Bem, da Verdade e da Beleza.