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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SÍNODO: TENTATIVA DE BALANÇO

  


1. O Papa Francisco ficará na História por muitos bons motivos, mas estou convicto de que a razão principal tem a ver com a tentativa de avançar para uma “Igreja sinodal”, uma Igreja na qual todos caminham juntos. Percebe-se a revolução que pode constituir, quando se lê este texto do Papa Pio X, que até foi canonizado, na encíclica
Vehementer Nos: “A Igreja é por natureza uma sociedade desigual. É uma sociedade composta por uma dupla ordem de pessoas: os pastores e o rebanho, os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão (plebs, plebe) dos fiéis. As categorias são de tal modo diferentes umas das outras que só na hierarquia residem a autoridade e o direito necessários para mover e dirigir os membros para o fim da sociedade, enquanto a multidão não tem outro dever senão o de aceitar ser governada e cumprir com submissão as ordens dos seus pastores”.


A partir daí percebe-se — contra a vontade de Jesus que tinha  declarado expressamente aos discípulos: “vós sois todos irmãos” e que a autoridade só se justifica enquanto serviço — os abusos da hierarquia. E, na consideração desses abusos, que fizeram até com que muitos tenham abandonado a Igreja, não é preciso recuar muito no tempo. De facto, já em pleno Sínodo, no passado dia 25 de Outubro, Francisco, depois de declarar que gosta de pensar na Igreja como “o povo fiel de Deus, santo e pecador, o povo fiel, o santo povo fiel de Deus”, fez à 18.ª congregação geral, um discurso demolidor contra o clericalismo. Assim: “Quando os ministros exageram no seu serviço e maltratam o povo de Deus, desfiguram o rosto da Igreja com atitudes machistas e ditatoriais. É doloroso encontrar em algumas secretarias paroquiais a ‘tabela de preços’ dos serviços da Igreja (sacramentos, funerais...), como num supermercado. Ou a Igreja é o povo fiel de Deus a caminho, santo e pecador, ou acaba por ser uma empresa de diversos serviços. E quando os agentes da pastoral seguem esta segunda via, a Igreja torna-se o supermercado da salvação e os sacerdotes meros empregados de uma multinacional. Este é o grande fracasso a que nos conduz o clericalismo. E isto com muita tristeza e escândalo (basta ir às alfaiatarias eclesiásticas de Roma para ver o escândalo de jovens sacerdotes — aqui, permito-me perguntar: só sacerdotes? E bispos e cardeais, não? — a experimentarem batinas e chapéus e barretes ou alvas e roquetes com rendas. O clericalismo é um  flagelo, é uma chaga, é uma forma de mundanidade que suja e danifica o rosto da Igreja, escraviza o santo povo fiel de Deus. E o povo de Deus, o santo povo fiel de Deus, avança com paciência e humildade, suportando o desperdício, o abuso, a marginalização do clericalismo institucionalizado. E com que naturalidade se fala dos ‘príncipes da Igreja’ — ‘purpurados’, acrescento eu —, ou das promoções episcopais como progresso na carreira! Os horrores do mundo, a mundanidade que maltrata o santo povo fiel de Deus!”.


2. A simples realização do Sínodo dos Bispos na sua primeira sessão durante todo o mês de Outubro constitui um acontecimento histórico, pois, embora continue a chamar-se Sínodo dos Bispos, teve a presença de leigos, homens e mulheres, com direito a voz e voto.


No final, surgiu uma informação de Síntese relativamente breve, sem que se  possa tirar grandes conclusões, pois essa informação serve sobretudo para reflectir agora durante um ano sobre convergências e propostas, tendo em atenção a segunda sessão da Assembleia em Outubro de 2024, que abrirá para um Documento final conclusivo do Papa. Ficam aí alguns indicações mais significativas da Síntese.


Apesar das reticências de alguns sectores, reconhece que se tratou de uma experiência vivida com alegria, pois pelo baptismo formamos “um só corpo”, portanto, uma Igreja sinodal em missão: todos discípulos, todos missionários, conscientes da diversidade, da multiculturalidade, com sensibilidades e necessidades diferentes e prevenindo contra o perigo do colonialismo e racismo.


Decisiva é a unidade dos cristãos e, por isso, a necessidade do diálogo ecuménico. Aparece mesmo o desejo de “convocar  um sínodo ecuménico sobre a missão comum no mundo contemporâneo”.


Deve-se escutar os jovens, as vítimas de abusos sexuais e também espirituais, económicos, de poder e de consciência por parte de membros do clero, e atender o grito das guerras, dos pobres, dos excluídos...


Que se continue a reflectir sobre questões controversas, como “a identidade de género e a orientação sexual, o final da vida, os casamentos difíceis, as situações matrimoniais difíceis, questões éticas relacionadas com a Inteligência Artificial”. Não é referida a bênção de casamentos homossexuais.


Pede-se “uma reflexão mais profunda” sobre o celibato dos padres, a sua “obrigação disciplinar”, de modo especial “onde os contextos eclesiais e culturais o tornam mais difícil”.


Inaceitável é, para mim, a posição quanto às mulheres. Critica-se “o clericalismo e o machismo”, está clara a necessidade de dar-lhes maior participação em cargos cimeiros e inclusivamente da sua presença na formação nos seminários. Mas continua a divisão quanto ao diaconado, a questão mais polémica nas votações, e sobre a ordenação presbiteral nem uma palavra. Tem razão Consuelo Vélez: “Realmente as mulheres somos um tema não resolvido na Igreja e não parece que o clero e também parte do laicado, incluindo mulheres, estejam dispostos a dar um passo em frente.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de novembro de 2023

FRANCISCO: PEÇO-VOS EM NOME DE DEUS (2)

Romano Guardini _ pq.jpg

 

Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco.

 

4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.

Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henri Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”.

Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “pensa-se nas vantagens, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam: a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”

 

5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.

Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “a guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”

E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da actualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.”  É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”

 

6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.

Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma como Papa foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”: abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.

 

7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.

Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”

Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja.

 

8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.

Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente, “calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”

 

9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.

Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “o homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.

 

10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.

Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.

 

N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de agosto de 2023

FRANCISCO: PEÇO-VOS EM NOME DE DEUS

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Na sequência da Jornada Mundial da Juventude, ficam aí algumas reflexões a partir de um livro de Francisco, “Os ruego en nombre de Dios. Por un futuro de esperanza” (Peço-vos em nome de Deus. Por um futuro de esperança). Soube que, entretanto, foi traduzido para português, na Editorial Presença: “O que Vos Peço, em Nome de Deus”. São dez pedidos.

Francisco, antes de referir esses pedidos, começa por apresentar a sua relação pessoal com Deus: “Uma relação como a de qualquer homem, muito humana”, acrescentando: “uma relação com Deus é boa quando avança de acordo com a idade, quando não se fica na infância e é aberta.” Confessa que nem sempre entende e há momentos de obscuridade: “Por vezes estou calado e deixo que Ele fale, que se faça sentir. É uma relação de convivência. Por vezes não o compreendo, tem os seus modos de proceder.” Mas o que sente é amor por Deus, acrescentando: “Não podes amar a Deus, se não te sentes amado.”

Para compreender os pedidos, adverte que é necessário entender que “mais do que numa época de mudanças encontramo-nos numa mudança de época.” E cita Bertrand Russell: “Entender o mundo actual como é e não como desejaríamos que fosse é o início da sabedoria.”

Vêm então os pedidos. “Peço-vos que me acompanheis a fazer juntos estes dez pedidos em nome de Deus.”

 

1.  Em nome de Deus peço que se erradique na Igreja a cultura dos abusos.

Já aqui escrevi que, para mim, a Inquisição e a pedofilia por parte do clero são a pior catástrofe da Igreja. Francisco lembra que um caso é por si “uma monstruosidade”. Escreve: “As consequências dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis duram anos nas vítimas. Refiro-me a este crime como um homicídio psicológico, porque podem ter consequências irreparáveis na sua saúde mental”, causando “danos físicos, psicológicos e espirituais.”

Não há qualquer desculpa no facto de desgraçadamente os abusos serem um fenómeno historicamente presente em todas as culturas e sociedades e até o maior número acontecer nas famílias; de facto, “cometido por membros da Igreja não é só um crime atroz, é uma ofensa a Deus”.

“Uma das nossas maiores faltas, talvez a mais grave, foi não tomar em conta os relatos e denúncias das vítimas.” Trata-se não só de um pecado, mas de um crime, que se tem o dever de denunciar, colaborando com as autoridades civis. “Neste sentido, acrescenta, já em 2016 estabelecemos que a negligência em casos de abusos é causa para a destituição de bispos.”

Na recente visita a Portugal, Francisco recebeu 13 vítimas, ouviu-as, abraçou-as uma a uma, vergando-se à sua dor. O preceito inquestionável é: “Tolerância zero”, sem esquecer, evidentemente, “o princípio de in dubio pro reo, que não pode ser deixado de lado nem sequer para este tipo de delitos atrozes.”

 

2.  Em nome de Deus peço que protejamos a casa comum.

Penso que, face às catástrofes, incêndios, tempestades, com mortes e consequências desastrosas que se sucedem, até os mais cépticos começam a tomar consciência de que são inegáveis as mudanças climáticas inauditas e a destruição massiva dos ecossistemas, colocando o planeta sob ameaça.

O Papa Francisco tem bem consciência disso, de tal maneira que, se não fosse por muitos outros — tantos, tantos — motivos, ficaria na História pela publicação da sua encíclica “Laudato Sí”, onde surge de modo claro o conceito de “ecologia integral”. “O nosso planeta está em perigo. Nos últimos decénios vivemos sob um sistema voraz, que não só empurrou para as margens do descarte milhões de seres humanos, mas também expôs a limites nunca antes vistos a nossa casa comum, a Mãe Terra.”

É preciso pôr termo a um paradigma socioeconómico baseado na ganância, na avidez, no lucro sem limites para alguns, descartando a outra maior parte e agredindo o ambiente, que está a chegar a limites irreparáveis. Viemos da natureza, que existiu durante a maior parte do tempo sem nós e que, se não mudarmos de rumo, pode acabar connosco. É preciso tomar consciência de que contra este modelo de depredação, “não há planeta B”.

Francisco é consequente, advertindo: “Mas também devemos prestar atenção a posições que defendem a natureza e, ao mesmo tempo, promovem o aborto ou a pena de morte.”

 

3. Em nome de Deus peço uma comunicação que combata as fake news e evite os discursos de ódio.

“Estamos todos obrigados a realizar uma cultura que combata as denominadas fake news ou notícias falsas, que evite os discursos de ódio e se desenvolva num quadro tecnológico que defenda os mais desprotegidos.”

Nunca houve tantas formas de comunicação e informação. As novas tecnologias permitem-no, mas, como tudo o que é humano, é necessário tomar consciência das suas vantagens e aproveitá-las ao mesmo tempo que se impõe perceber os seus perigos e ameaças e evitá-los. Aí estão os discursos de ódio, a calúnia e difamações, os aproveitamentos para enganos de pederastia, o linchamento mediático de pessoas e do seu bom nome, alienação com o uso obsessivo das redes sociais e a ilusão dos likes...

Nunca estivemos tão conectados e cada vez são mais as solidões. É urgente perceber que a comunicação virtual não pode substituir as relações e encontros presenciais. Francisco: “Que protecção podemos assegurar às crianças e aos jovens para que este novo mundo não atente contra o seu crescimento são e a sua vivência tranquila da meninice?”

 

(Continua...)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de agosto de 2023

A JMJ EM LISBOA. E AGORA?

JMJ - Papa Francisco em Fátima _ com legenda.jpg

 

1. Só uma cegueira maldizente não reconheceria que a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa foi um êxito. Houve muitas críticas à Igreja, umas justas, outras não, e ela só tem de reflectir, pois há imensos buracos negros na sua história ­— para mim, a maior tragédia são a Inquisição e a pedofilia do clero. Houve, por vezes, referências críticas aos gastos públicos, e é bom que se reflicta, mas, desde já, é fundamental pensar no retorno, e, quando se reflecte sobre o retorno, não se trata apenas de pensar que, por exemplo, o próprio altar servirá para eventos futuros e que o país acabou por ser publicitado por todo o mundo, pois impõe-se pensar também no retorno imaterial do evento: pense-se no que significa a vivência dos grandes valores, como a alegria, a amizade, a solidariedade, toda a mensagem transmitida pelo Papa, a fé. Por vezes, invocou-se uma possível agressão ao Estado laico. Penso que, evidentemente, é preciso estar criticamente atento, pois a laicidade enquanto Estado não confessional é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos, incluindo a liberdade de não ter religião, mudar de religião — aliás, o Papa fez questão de receber representantes de várias religiões, pois o diálogo inter-religioso é essencial para a promoção da consciência da fraternidade universal e a paz—, mas, por outro lado, é preciso prevenir que não se pode confundir laicidade com laicismo, que pretenderia reduzir a religião à esfera privada, sem lugar no espaço público.

Reflectindo sobre a herança mais positiva do evento, penso que será a da vivência de que somos e formamos uma só humanidade. Agora, já não se trata só do que se sabe abstractamente, agora é uma realidade concreta, pois jovens vindos dos cinco Continentes, com cores, culturas, vivências, até credos diferentes, conviveram, falaram, dançaram, rezaram, emocionaram-se juntos, e é isso: somos todos seres humanos, diferentes, mas iguais, e é realmente possível uma só humanidade em alegria, em diálogo, em paz...

 

2. Evidentemente, o herói da Jornada foi o peregrino mais jovem em espírito: o Papa Francisco, um líder político-moral global. O fascínio que ele exerceu! Quem não tentou aproximar-se dele? Quando se pergunta a razão disso, ela é clara: ele é um cristão, nele vê-se alguém que é, nas palavras e nos actos, um discípulo de Jesus. E é um homem bom, com uma bondade inteligente e activa.

Deixou mensagens inesquecíveis. A primeira, na base de todas: Deus é bom, e “ama-te”. “Jesus a todos acolhe”. “Cada um é único e original, e somos amados como somos, sem maquilhagem.” “Não tenham medo, sejam corajosos.” “Somos chamados pelo nosso nome, não somos um número”. Sim, do que mais precisamos é de que alguém olhe para nós, confie em nós, nos dê ânimo, porque somos capazes, que reconhece que temos valor — eu nunca esqueço que em Maputo tentei um dia explicar isto e soube depois que um moçambicano fez quase 40 quilómetros para ir dizer a uma irmã de sangue: está aí um padre de Portugal que esteve a explicar que valemos para Deus, Deus reconhece o nosso valor; já viste? Valemos para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto.

A outra mensagem: “Na Igreja, há espaço para todos, todos, todos. Repitam comigo: todos, todos, todos.” Na capelinha das aparições em Fátima: “A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar.” Por isso, continuou: “Caminhar sem medo. Não tenham medo.” Só tem sentido “olhar de cima para baixo”, para ajudar “alguém caído a levantar-se”. 

Consequências? A política é uma forma nobre de caridade, se o seu objectivo for só o bem comum. Europa, para onde navegas, se não cuidas dos teus velhos e “os berços estão vazios”? E que futuro tens, se não és capaz de pôr termo à guerra na Ucrânia? E que política a tua para os migrantes e refugiados? A economia não pode ter como único objectivo o lucro, com ricos cada vez mais ricos e o número dos pobres a aumentar. E como salvar o planeta, a casa comum? E o escândalo dos gastos com armamentos, que deveriam ir para a educação e a superação da fome no mundo?...

E a Igreja vai acolher todos, todos, todos?  Também os recasados, os homossexuais, os trans? E as mulheres não vão continuar discriminadas? Este é o desafio histórico, a tratar em próximas crónicas...

 

3. E tive um sonho, um sonho acordado. Na Missa do envio, na despedida, depois do Evangelho e da homilia do Papa e a oração por todos, bispos nada engalanados, padres também vestindo de modo simples, jovens (eles e elas), com cestos cheios de pão, deram a cada um dos peregrinos (milhão e meio) um pão. O Papa lembrou então a Última Ceia de Jesus e disse: “Tomai, comei todos. Isto é a minha vida entregue por vós e a vós. Sempre que fizerdes isto, lembrai-vos de mim, lembrai-vos do que eu vos disse, do que eu fiz por vós, lembrai-vos da minha morte, sabei que estou vivo na plenitude da vida em Deus como esperança e desafio para vós, sabei que não caminhais para o nada mas para a plenitude da vida em Deus. Sempre que fizerdes isto fazei-o em memória de mim. Mistério da fé.”

Todos responderam, cada um na sua língua: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus.” E todos comungaram. E comprometeram-se a fazer o possível e o impossível para acabar com a fome no mundo. E assumiram a missão de levar o Evangelho a outros, promover a fraternidade, uma economia solidária, combater pela salvaguarda da casa comum e da paz.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de agosto de 2023

FRANCISCO E OS JOVENS. 2

  


Continuo com os apelos e pedidos do Papa Francisco aos jovens. A partir de uma síntese de Gilles Donada publicada no jornal La Croix. Poderá ajudar na preparação para a Jornada Mundial da Juventude.


6. “Fazei escolhas audaciosas”.
Francisco quer que os jovens sonhem grande. E em que consiste o essencial desse sonho?  É um sonho que passa pela realização se si. “Levanta-te e torna-te o que és”. “Levanta-te” também significa “sonha”, “arrisca”, compromete-te com mudar o mundo”. “Obrigado, jovens, por cultivar o sonho da fraternidade, ter cuidado com as feridas da criação, lutar pela dignidade dos mais fracos e difundir o espírito de solidariedade e partilha.”


Em ordem à sua concretização, os sonhos passam por “decisões concretas  e grandes escolhas”. “Não tenhais medo de escutar o Espírito, que vos sugere escolhas audaciosas, não  titubieis, quando a consciência vos pedir para seguir o Mestre.”


7. “Falai sempre com Jesus”
.
“Ide ao encontro de Jesus, estai com Ele na oração, confiai toda a vossa existência ao seu amor misericordioso e à vossa fé, e a vossa fé será um testemunho luminoso de generosidade e de alegria por segui-lO.” “Falai sempre com Jesus, tanto no bem como no mal, quando fizerdes uma coisa boa ou uma coisa má. Não tenhais medo dEle.”


8. “... e evangelizai de joelhos”.
“A evangelização faz-se de joelhos”, por outras palavras, com a oração. “Sede sempre homens e mulheres de oração. Sem uma relação constante com Deus, a missão torna-se uma profissão”, insiste concretamente diante de seminaristas. É preciso fazer como Jesus, que, “na véspera de cada acontecimento importante se recolhia numa oração intensa e prolongada. Cultivemos a dimensão contemplativa, também no meio do turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão  vos chamar a ir às periferias existenciais mais o vosso coração deve estar unido ao de Jesus, cheio de misericórdia e de amor.”


Diz o Evangelho que Maria, para ir ajudar a prima Santa Isabel, “se levantou e partiu apressadamente” — este é o lema escolhido por Francisco para  a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa. O Papa vê nesta atitude uma boa fonte de inspiração para a juventude. “O mundo de hoje tem necessidade de jovens que vão com pressa, que não se cansam de ir apressadamente, de jovens que têm esta vocação de perceber que a vida lhes oferece uma missão.” “Temos necessidade de jovens em marcha. O mundo só pode mudar, se os jovens estiverem em marcha.”


Mas como dirigir-se a uma pessoa afastada da Igreja? “A última coisa a fazer é dizer-lhe alguma coisa, fazer comentários.” A atitude tem de ser outra. “Começa por fazer e essa pessoa verá o que tu fazes e far-te-á perguntas, e, quando fizer perguntas, então responderás.”  “Evangelizar é dar este testemunho: eu vivo assim, porque acredito em Jesus Cristo; desperto em ti a curiosidade da pergunta: “mas porque é que fazes estas coisas?” E a resposta do cristão deve ser esta: “Porque acredito em Jesus Cristo e anuncio Jesus Cristo não pela Palavra — claro também é necessário anunciar pela Palavra —, mas sobretudo através da minha vida.”


9. “Sede embaixadores da paz”
.
Para Francisco, uma dos combates prioritários é o da paz. “Sabei-lo bem, vivemos momentos terrivelmente difíceis. A Humanidade está em grande perigo. Estamos em grave perigo. Sede, pois, embaixadores da paz, para que o nosso mundo redescubra a beleza do amor, do viver juntos, da fraternidade, da solidariedade.”


O combate pela paz implica “um compromisso concreto, a partir da fé, para a construção de uma sociedade nova: viver no meio do mundo e da sociedade, para fazer crescer a paz, a justiça, os direitos humanos, a misericórdia, e estender assim o reino de Deus no mundo.”


Colocar “Deus no centro” da vida, acolhê-lo com fé, opera uma “revolução copernicana”. “A fé incita ao amor de Deus, que nos dá segurança, força, esperança. Quando Deus está presente, no nosso coração permanecem a paz, a doçura, a ternura, a coragem, a serenidade e a alegria, que são os frutos do Espírito Santo”, transformando “o nosso modo de pensar e agir, que se tornam o modo de pensar e agir de Jesus, de Deus.” Exorta os jovens: “Caros amigos, a fé é revolucionária, e eu peço-vos a cada um de vós, a cada uma de vós, hoje: estás preparado, estás preparada, para entrar nesta onda revolucionária da fé? Só entrando nela é que a vida de jovem terá um sentido e assim será fecunda.”


10. “Reencontrai as vossas raízes: escutai a sabedoria dos idosos”.
É constante em Francisco o apelo  à ligação viva entre as diferentes gerações, atacada pela “cultura da rejeição” e a “cultura da produtividade”. “A juventude é muito bela, mas a eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser velho é tão importante — e belo — como ser jovem. Não esqueçamos isto. A aliança entre as gerações, que restitui ao humano todas as idades da vida, é o nosso dom perdido e que devemos retomar.”


Quer que os jovens se reaproximem dos seus idosos, para irem ao encontro da sabedoria. “Deixa-te iluminar pelos conselhos e o testemunho dos idosos. Dialogar com as raízes, com as pessoas de idade, com os que nos precederam, e vós a caminhar para diante... É crescendo sob o olhar benevolente e atento dos mais velhos que construímos uma personalidade sólida para as lutas quotidianas e mais: eles transmitem-nos a fé e as suas convicções religiosas.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de julho de 2023

FRANCISCO E OS JOVENS. 1

  


No passado dia 2, no jornal “La Croix”, Gilles Donada sintetizou, em dez pontos e a partir de citações de discursos, mensagens e apelos feitos  por ele, o pensamento e atitude do Papa Francisco em relação aos jovens. Permito-me pedir emprestado, e com a devida vénia, o essencial dessa bela síntese, que, julgo, poderá ajudar imenso na preparação para a Jornada Mundial da Juventude.


1. “Vós, jovens, criai confusão, fazei barulho”.
É a tradução da frequente  exortação de Francisco aos jovens: “hacer lío”, expressão tipicamente argentina. Com ela, quer pedir que não adormeçam, que remem  “contra a corrente”, erguendo-se contra a injustiça. “Fazei barulho”, mas “um barulho construtivo”, “um barulho de amor”. “Quero que vos façais ouvir nas dioceses, quero que a Igreja vá para a rua, quero que nos defendamos de tudo o que é mundanidade, imobilismo, conforto, do que é clericalismo, de tudo o que nos fecha em nós próprios”.


Confia aos jovens a tarefa de serem “revolucionários”, “discípulos missionários, mensageiros da Boa Nova de Jesus, sobretudo para os  contemporâneos e os amigos.” “Não tenhais medo de  levantar questões que ponham as pessoas a reflectir”. “Quereria pedir-vos que griteis, não com a voz, mas com a vossa vida, com o coração, para assim serdes sinais de esperança para o desencorajado, uma mão estendida a quem está doente, um sorriso acolhedor para o estrageiro, um apoio atento para quem está só.”


2. “Não confundais a felicidade com um divã”
.
Francisco não quer ver uma parte da juventude anestesiada na passividade e no consumismo. Ele agita-a: Onde se instalaram  “estes jovens adormecidos, atordoados,  embrutecidos?” Denuncia a atitude dos que se instalam num divã sem se importar com nada e dos que ficam num balcão a ver de longe a vida a passar, reformados antes do tempo... “Na vida, há uma paralisia ainda mais perigosa e muitas vezes difícil de identificar e que nos custa muito reconhecer. Gosto de lhe chamar a paralisia que nasce quando se confunde a felicidade com um divã”. “Um divã que nos ajuda a sentirmo-nos confortáveis, tranquilos, bem seguros. Um divã que nos garante horas de tranquilidade para passar  para o mundo dos videojogos e horas e horas diante do computador. Um divã contra toda a espécie de dor e de medo, sem preocupações. Cuidado: quando escolhemos o conforto,  confundindo felicidade e consumismo,  o preço que pagamos é elevadíssimo: perdemos a liberdade”.


3. “Deixai a vossa pegada neste mundo”
.
Não viemos ao mundo para “vegetar”  como “legumes”, insiste, mas para deixar uma “pegada”. “Podeis tornar o mundo melhor, deixar uma pegada que marque a história, a vossa história e a de muitas outras pessoas. A Igreja e a sociedade têm necessidade de vós. Que a vossa visão das coisas, a vossa coragem, os vossos sonhos e ideais derrubem os muros do imobilismo e abram caminhos que nos conduzem a um mundo melhor, mais justo, menos cruel e mais humano!”


Essencial para poder deixar a sua pegada neste mundo é cada um, cada uma acolher primeiro a pegada de Jesus. “Que Cristo transforme o vosso optimismo natural em esperança cristã, a vossa energia em virtude moral, a vossa boa vontade em amor autêntico, desinteressado. Eis o caminho que sois chamados a percorrer. Este é o caminho para vencer tudo o que, nas vossas vidas e na vossa cultura, ameaça a esperança, a virtude e o amor. Deste modo, a vossa juventude será um dom para Jesus e para o mundo.”


4. “Não deixeis que vos roubem a vossa alegria e a vossa juventude”
.
Francisco está consciente do perigo de instrumentalização da juventude pelo mundo de hoje. “A cultura actual apresenta um modelo de pessoa muito associado à imagem do jovem. Sente-se belo quem tem um ar jovem, que faz tratamentos para fazer desaparecer os traços do tempo. Os corpos jovens são constantemente utilizados na publicidade, para vender. O modelo de beleza é um modelo jovem, mas atenção!, porque isso não é elogioso para os jovens. Isso significa apenas que os adultos querem roubar a juventude para eles, isso não significa que respeitem, amem e cuidem dos jovens.”


Por isso, suplica: “Por favor, mantende viva a vossa alegria, ela é o sinal de um coração jovem, de um coração que encontrou o Senhor. E se mantiverdes viva esta alegria de estar com Jesus, ninguém vo-la poderá tirar, ninguém. Mantende esta alegria, conscientes de ser amados pelo Senhor. Com este amor, ireis poder mudar esta sociedade.“


Pede que não se deixem enganar. “Vós, caros jovens, vós não sois o futuro. Diz-se habitualmente: ‘Vós sois o futuro’. Não; vós sois o presente. Vós não sois o futuro de Deus: vós sois a hora de Deus. Ele convoca-vos, chama-vos nas vossas comunidades, chama-vos nas vossas cidades para ir à procura dos vossos avós, dos vossos anciãos, apela para que vos levanteis e tomeis a palavra com eles e realizeis o sonho que Ele sonhou para vós.”


5. “Ousai sonhar grande!”
É outro refrão de Francisco, dirigindo-se aos jovens: “Não tenhais medo do futuro. Ousai sonhar grande! É para estes sonhos grandes que vos convido hoje. Por favor, não vos acantoneis  na ‘pequenez’, não voeis ao rés-do-chão, voai alto e sonhai em grande!” “Nós, nós todos, ficamo-vos gratos quando sonhais. Sim, enquanto Igreja, também temos necessidade de sonhar, temos necessidade do entusiasmo, do ardor dos jovens para ser testemunhas de Deus que é sempre jovem.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de julho de 2023

A VIDA DOS LIVROS

  

De 10 a 16 de julho de 2023


"A História Contemplativa" de José Mattoso (Temas e Debates, 2020) é ponto de partida para a invocação da Carta Apostólica do Papa Francisco “Sublimitas et Miseria Hominis” sobre 4 séculos do nascimento de Blaise Pascal.



A HISTÓRIA HUMANA… 
Começo por recordar a memória de José Mattoso (1933-2023), referência fundamental da moderna historiografia e da cultura portuguesa. Deixo uma breve citação, na qual recordo o seu espírito: “A minha visão da História humana, da História-vivida, é contemplativa. Sem dispensar nenhum dos recursos da investigação crítica, da heurística, da cronologia, da situação no espaço, da reconstituição dos factos, da perceção das ideias, da averiguação dos conjuntos humanos, do sentido dos mitos e dos rituais, procuro nela a trajetória temporal do Homem que creio ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. Procuro a relação do Homem – de qualquer homem e de qualquer mulher – com o Filho do Homem (Mateus 8,20; Marcos 8,31). Do Filho do Homem que é igualmente Filho de Deus vivo (cf. João 6,51) Não esqueçamos que a atitude contemplativa é da ordem da visão. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo. Um olhar que capta as relações do pequeno com o grande, do singular com o plural, do diferente com o semelhante, do mesmo com o contrário. O olhar que coloca as coisas na sua ordem, que permite descobrir os géneros e as espécies, que classifica os conjuntos e que lhes atribui qualidades. Um olhar que reconhece o movimento e as mutações, sem que a diferença de tempo altere a identidade. Um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade, a atração e a repulsa, o amor e o ódio. (…) A visão contemplativa da História total faz da Arte, um dos caminhos que creio poderem conduzir ao Transcendente” (in “A História Contemplativa, Temas e Debates, 2020).


A RELIGIÃO E O MUNDO
O Papa Francisco, quando se assinalam quatro séculos do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático e homem de fé, põe-nos diante deste tema que tão bem foi tratado por José Mattoso, na linha dos ensinamentos e reflexões de Yves Congar, O.P., a quem devemos o diagnóstico sobre as razões da incredulidade dos dias de hoje – “a uma religião sem mundo, sucede um mundo sem religião”. Daí a preocupação de João XXIII sobre a compreensão dos sinais dos tempos e sobre a exigência de olharmos o mundo com olhos de ver. “Sublimitas et Miseria Hominis” é o título da Carta Apostólica e trata-se de um documento excecional, já que reflete sobre a experiência de um cientista cristão, que fez luz sobre a dignidade humana. É a vida vivida que está em causa “um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade”. «Desde criança e por toda a vida, (Pascal) procurou a verdade. Com a razão, esquadrinhou os sinais dela, especialmente nos campos da matemática, geometria, física e filosofia. Em idade ainda muito precoce, fez descobertas extraordinárias, alcançando fama considerável. Mas não ficou por aí. Num século de grandes progressos em muitos campos da ciência, acompanhados, porém, dum crescente espírito de ceticismo filosófico e religioso, (o cientista) mostrou-se um incansável investigador do verdadeiro: como tal, permaneceu sempre «inquieto», atraído por novos e mais amplos horizontes». A homenagem a alguém que se tornou célebre pelos sucessos científicos e técnicos e pelos trabalhos desenvolvidos na busca da verdade dos factos e das experiências, permite-nos pôr a tónica na modernidade e nas suas virtudes, dúvidas e perplexidades. «Se Blaise Pascal consegue tocar a todos, é sobretudo porque falou admiravelmente da condição humana. Mas seria errado ver nele apenas um especialista, embora genial, dos costumes humanos. O monumento formado pelos seus Pensamentos, de que alguns ditos isolados ficaram célebres, não se pode compreender realmente se se ignora que Jesus Cristo e a Sagrada Escritura constituem simultaneamente o centro e a chave do mesmo». A um tempo, Pascal adverte-nos contra a tentação de nos considerarmos como possuidores da verdade, mas também contra as falsas doutrinas e as superstições «que mantêm, a tantos de nós, longe da paz e alegria duradouras d’Aquele que deseja que escolhamos a vida e a felicidade, não a morte e a desventura». De facto, «sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião».


UMA CANA PENSANTE
Tem razão o Papa Francisco, quando salienta que «para se compreender bem o discurso de Pascal sobre o cristianismo, é necessário estar atento à sua filosofia”. Daí a exigência do sentido crítico e do entendimento dos limites, já que o estoicismo leva ao orgulho e o ceticismo ao desespero. E a razão humana é uma maravilha da criação, que distingue o homem dentre todas as criaturas, porque «o homem não passa duma cana, a mais frágil da natureza, mas uma cana pensante». Blaise Pascal colocou o amor dos seus irmãos em primeiro lugar. Sentiu-se e reconheceu-se como membro do Povo de Deus, porque nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado: «Quem quer fazer o anjo, faz a besta». E há ideologias mortíferas, que mantêm os seus sequazes em redomas como se o ideal substituísse o real. Como leigo, saboreou a alegria do Evangelho, com que o Espírito quer fecundar e curar «todas as dimensões do homem» e reunir todos os homens à volta da mesa do Reino. Quando escreveu a Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças (1659), Pascal era um homem pacificado, fora da controvérsia e da apologética. Estando à beira da morte, desejou morrer na companhia dos pobres, com a simplicidade duma criança. E depois de receber os Sacramentos, as últimas palavras foram: «Que Deus nunca me abandone». 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

DEZ ANOS COM O PAPA FRANCISCO

  


Foi a 13 de Março de 2013 — faz agora 10 anos —, que foi eleito. E percebeu-se logo naquela tarde que vinha como cristão: simples, sem aparato, inclinou-se perante a multidão, e ficou gravada na memória de todos aquela sua saudação: “buena sera” (boa tarde), que o tinham ido “buscar ao fim do mundo para bispo de Roma” (ele não usará o título de Papa), e, antes de dar a bênção, pediu que fossem os fiéis a pedir a bênção de Deus para ele primeiro.


O nome escolhido era revelador: Francisco, lembrando Francisco de Assis a quem pareceu uma vez ter ouvido dos lábios de Cristo crucificado o pedido: “Francisco, repara a minha Igreja, que ameaça ruina.” Sim, o Papa Francisco chegou e, por palavras e obras, é o que tem feito: não foi viver para o Palácio Apostólico, utiliza um carro modesto, está com todos, começando pelos mais pobres, acolhendo prostitutas, sorrindo e abraçando,  brincando com crianças que lhe roubam o solidéu...


Era urgente reformar a Cúria, cujas doenças, a título de exemplo, elencou logo na saudação natalícia papal de 2014: tudo gira à volta da “patologia do poder”, e a primeira doença é “pensar e sentir-se imortal, indispensável” e lá estão “a rivalidade e a vanglória”, e a “esquizofrenia existencial”, o “Alzheimer espiritual”, “divinizar os chefes”... Francisco rodeou-se de uma equipa de cardeais para a missão da reforma e ela aí está na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho), onde, logo no título se diz o essencial: anunciar o Evangelho, a notícia boa e felicitante de Jesus para todos. Para que serve a Igreja se não anuncia e pratica o Evangelho?


Os escândalos do Banco do Vaticano eram outra fonte de terrível preocupação: para onde vão, como se utilizam, os dinheiros que vêm dos fiéis? Francisco tudo tem feito, inclusive apelando a regras internacionais, para impor a transparência.


Que dizer da ignomínia da pedofilia? Para ela, “tolerância zero”. E não apenas com palavras, mas com determinações seguras, também penais: a pedofilia não é só um pecado, é um crime... “Não posso começar sem pedir perdão uma vez mais. Nunca serão suficientes as nossas palavras de arrependimento e consolação para as vítimas de abusos sexuais por parte dos membros da Igreja. Pecámos gravemente: milhares de vidas foram arruinadas  por quem tinha o dever de cuidar delas e defendê-las. Nunca será suficiente o que fizermos para tentar reparar o dano que causámos.”


Francisco é combatente acérrimo contra o clericalismo e o carreirismo eclesiástico, uma “peste” na Igreja. Não quer “bispos príncipes” nem “bispos de aeroporto”. Contra a “casta” eclesiástica: “Há um profundo desprezo pelo povo santo de Deus. Já não são pastores, mas capatazes”. Mais uma vez, na sua recente visita ao Sudão do Sul, no encontro com os bispos, o clero e os religiosos, pediu aos pastores que fossem compassivos e misericordiosos, “não senhores do povo” . A Igreja de Cristo “situa-se no meio da vida sofredora do povo, e suja as mãos pelo povo”.


Bate-se pelo diálogo ecuménico e inter-religioso e pratica-o. Por exemplo, esteve na Suécia para participar na comemoração dos  500 anos da Reforma. “Creio que as intuições de Martinho Lutero não eram equivocadas: era um reformador. Talvez alguns métodos não tenham sido adequados, mas pensando naquele tempo vemos que a Igreja não era realmente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, espírito mundano, apego ao dinheiro e ao poder.” É amigo de Bartolomeu, patriarca ortodoxo de Constantinopla, a quem até já pediu a bênção. Foi com o arcebispo anglicano de Cantuária, J. Welby, visitar o Sudão do Sul. Esteve em  vários países de imensa maioria muçulmana e assinou, em Abu Dhabi, juntamente com o grande imã da mesquita Al-Azhar, A. Al-Tayyeb, o “Documento sobre a Fraternidade Humana”.


Sobre a ecologia, escreveu uma encíclica que fica para a História: a Laudato Sí, defendendo uma “ecologia integral”, vinculando a urgência da defesa da Natureza e a dos mais pobres. A Terra é criação de Deus, e, sem a salvaguarda do ecossistema, o que  está em jogo é o planeta e a sobrevivência da Humanidade.


Desde o princípio, defensor acérrimo da paz, a sua intervenção política foi notada, a ponto de se ter tornado um líder político-moral global, talvez o mais ouvido.  Significativamente, a sua primeira visita fora de Roma foi a Lampedusa, para clamar a favor dos refugiados e uma política contra a “globalização da indiferença”. A quem o acusa  de “fazer política”, responde: “Sim, estou a fazer política. Porque toda a pessoa tem de fazer política”. A quem lhe chama comunista remete para o Evangelho e acrescenta: “Não condeno o capitalismo e também não estou contra o mercado”: o que defende é a “economia social de mercado”. “A mesa económica não funciona só com duas pernas. Com três, sim: o capital, o trabalho e o Estado como regulador.”


Entretanto, nestes dez anos, Francisco foi abrindo portas para uma nova compreensão e abertura no domínio da moral sexual, por exemplo, abrindo portas de acesso à comunhão de divorciados recasados, aos anticonceptivos, aos homossexuais...


A reforma decisiva da Igreja ficará historicamente definida com a sinodalidade e a superação do domínio patriarcal. Aí está uma razão essencial para não querer resignar antes de 2024: levar a termo o Sínodo sobre a sinodalidade.


E é feliz? “Estou feliz porque me sinto feliz. Deus faz-me feliz”, disse há pouco à America Magazine.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de março de 2023

O PAPA FRANCISCO VOLTOU A ÁFRICA

  


1.
A Igreja é, originariamente, a assembleia dos que acreditam em Jesus como o Messias Salvador. De facto, é também uma instituição e hoje, na realidade, a única instituição verdadeiramente global, com um chefe, que é também chefe de Estado. Assim, ergue-se, imensa, uma pergunta, formulada nestes termos por Paulo Rangel no Posfácio ao meu livro O Mundo e a Igreja. Que futuro?: “Que sentido faz que o chefe de uma Igreja seja chefe de Estado? Depois do Vaticano II, com a inauguração duma possível era republicana na cúpula da Igreja Católica, é admissível ou não a natureza político-constitucional e jus-internacional da própria Igreja e do seu vértice? Não seria altura de separar as águas e despir o Papa das últimas vestes de César? Não seria esse o próximo passo da Igreja no caminho do despojamento e do desprendimento?”


Paulo Rangel reconhece que são muitos os que vão neste sentido de uma “despolitização” do Vaticano e da Igreja, que deveria entregar-se à sua missão puramente espiritual e pastoral. Mas, por outro lado, quando se olha para o contributo do Papa e da rede diplomática do Vaticano para a paz, para a justiça, na defesa da dignidade das pessoas (refugiados e marginalizados), na denúncia do capitalismo selvagem, das perseguições e violências, é preciso perguntar também: “O mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste “aparelho” estadual? É evidente que não”. E conclui: A Igreja, não há dúvida, precisa de se reformar e converter, mas essa conversão “não exige nem postula o abandono de um dos grandes ministérios de que dispõe para servir a Humanidade — a sua diplomacia em favor da justiça e da paz, decorrente do reconhecimento internacional da sua natureza de Estado. Pelo contrário, pode mesmo reclamar essa natureza e identidade  como forma supina de servir.”


2. Foi neste quadro que o Papa Francisco esteve, entre 31 de Janeiro e 5 de Fevereiro, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul, massacrados pela violência, pela exploração, numa dor sem fim. No Sudão do Sul, esteve acompanhado pelo arcebispo anglicano de Cantuária, J. Welby, e o moderador da Assembleia geral da Igreja da Escócia, I. Greenshieds, irmãos numa peregrinação ecuménica ao serviço da paz. Foi Welby que recordou aquele gesto inesquecível em Roma, em 2019, quando Francisco, num esforço fisicamente tão penoso, se ajoelhou diante dos três líderes do Sudão do Sul e lhes beijou os sapatos, suplicando um esforço para avançarem na paz.


E nestes dias juntaram-se multidões para saudar Francisco, ouvi-lo nas denúncias sem rodeios de tanta exploração económica e bélica mundial, suplicando pontes de entendimento em ordem à paz. O Papa, na sua debilidade física, em cadeira de rodas, mas firme na sua missão profética, foi exemplo evangélico, cristão, de entrega ao cuidado da Humanidade  na justiça, na fraternidade e na paz. Também se alegrou quando presidiu àquelas celebrações a que acederam multidões cantando e dançando num ritmo que só os africanos sabem e têm. E comoveu-se tantas vezes, no contacto com mutilados de guerra, e certamente nunca esquecerá aquela menina a oferecer-lhe uma esmola.


3. Também deixou recados para o interior da Igreja, nomeadamente para o clero. Assim: “Se vivermos para ‘nos servirmos’ do povo em vez de ‘servir’ o povo, o sacerdócio e a vida consagrada tornam-se estéreis. Não se trata de um trabalho para ganhar dinheiro ou ter uma posição social nem para resolver a situação da família de origem, trata-se de ser sinais da presença de Cristo, do seu amor incondicional, do perdão com que quer reconciliar-nos.” “Que não suceda que nos julguemos autossuficientes, muito menos que se veja no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e de exercer o poder. O espírito malvado do carreirismo! E, sobretudo, que não entre o espírito mundano, que nos faz interpretar o ministério segundo critérios de benefício pessoal, que nos torna frios e distantes.” “Não somos os chefes de uma tribo, mas pastores compassivos e misericordiosos; não somos os donos do povo, mas servos que se inclinam a lavar os pés dos irmãos e irmãs.”


O essencial da mensagem transmitida nos dois países foi retomado na conferência de imprensa, já no regresso a Roma. Assim:


“Vi no Congo muita vontade de avançar, muita cultura. Têm tantas riquezas naturais que atraem quem vem explorar o Congo, perdão pela palavra. É preciso abandonar a ideia de que África é para explorar. Dá dor: as vítimas dessa guerra, amputados, tanta dor, tudo para levar as riquezas. Não, não pode ser.”


“A violência é um tema quotidiano. É doloroso ver como se provoca a violência. Um dos problemas é a venda de armas. A venda de armas creio que é a maior praga do mundo. O negócio! Alguém me disse que, se não se vendesse armas durante um ano, se acabaria com a fome no mundo. Também é certo que se provoca a luta entre tribos vendendo armas  e depois  explora-se a guerra entre tribos. Isto é diabólico.”


“O mundo todo está em guerra (Síria, Iémen, Myanmar, na Améria Latina, quantos focos de guerra!). O mundo está em guerra e em autodestruição. Paremos a tempo, porque uma bomba traz outra maior e outra maior e, na escalada, não sabes onde acabarás.”


E a sua saúde? Felizmente, sempre com humor: ”Este joelho chato!, mas, como se sabe, erva ruim nunca morre!”. Continuará, pois, o combate contra “a globalização da indiferença, presente em todo o lado.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de fevereiro de 2023

BENTO XVI MORREU. E AGORA, FRANCISCO?

  


Bento XVI morreu no passado dia 31 de Dezembro. As suas últimas palavras foram: “Senhor, eu amo-te.” Não há dúvida de que o seu grande legado para a História foi a renúncia, sinal de humildade e dessacralizando o papado. Para lá disso, fica também, como sublinhou José Manuel Vidal, “o milagre da coabitação e da transição tranquila”. Francisco punha fim a uma Igreja piramidal, clerical, carreirista, autorreferencial, e, agora, a caminho de uma Igreja sinodal, circular, “hospital de campanha”. E podemos imaginar o sofrimento de BentoXVI ao “ver como a sua obra era derrubada” ao mesmo tempo que era “duro para o Papa Francisco este trabalho de desmontagem  perante os olhos de Bento XVI… No entanto, de modo geral, a convivência durante quase dez anos foi delicada e até fraternal”. Seja como for, não se deve de modo nenhum ignorar a diferença entre Bento XVI e Francisco, bem clara ao ler a obra póstuma de Bento XVI, Che cos’è il Cristianesimo (O que é o cristianismo), onde, por exemplo, defende uma ligação, dir-se-ia intrínseca, entre a ordenação sacerdotal e a obrigação do celibato.


Durante o seu funeral houve quem pedisse a canonização rápida — lá apareceu o cartaz do tempo do funeral de João Paulo II com “Santo subito”.  Creio que isso não vai acontecer nem seria bom que acontecesse, como se prova ao pensar hoje na precipitação em canonizar João Paulo II. Nesse sentido se pronunciou o cardeal Walter Kasper, antigo prefeito do Dicastério (Ministério) para a unidade dos cristãos, usando até uma nota de humor: “Para o Céu não se vai em comboio de alta velocidade”.


Esta é mais uma iniciativa dos conservadores no sentido de “utilizar” Bento XVI contra Francisco, com a finalidade de precipitar a queda deste. É sabido que enquanto Bento XVI vivesse a renúncia de Francisco seria muito difícil.  Por isso, alguns ultraconservadores e opositores de Francisco apressaram-se na luta de ataques contra ele, a começar pelo secretário de Bento XVI, o arcebispo G. Gänswein, que se precipitou a publicar as suas  memórias no livro anunciado ainda antes do funeral: Nient’altro che la verità (Só a verdade). O arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn, criticou-o: “Uma indiscrição indecorosa. Não me parece bem que se publiquem coisas tão confidenciais, sobretudo por parte do secretário pessoal”. W. Kasper também disse que “seria melhor estar calado”.


De qualquer forma, no livro não há grandes revelações. Uma delas refere a dor de Bento XVI pelo facto de Francisco praticamente ter acabado com a possibilidade da Missa em latim. Pessoalmente, pergunto: porquê lamentar a proibição da Missa em latim? De facto, reclamar a possibilidade da celebração em latim e de costas para o povo é, nem que seja só inconscientemente, uma forma de clericalismo, pois só o clero (bispos, padres) teria a possibilidade de falar directamente com Deus, como se Deus só entendesse latim!


O cardeal Pell, entretanto falecido, apontou o pontificado de Fancisco como “um desastre”. E o cardeal Gerhard Müller, antigo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no seu novo livro de entrevistas com a vaticanista Franca Giansoldati, publicado ontem, In buona fede (Com boa fé), ataca frontalmente Francisco, também por causa da Constituição Apostólica sobre a reforma da Cúria, Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho). Para Müller, existe uma “tendência para reformar a Igreja no sentido protestante” e que deriva de “uma visão liberal que despreza a tradição”.


E Francisco vai resignar? Já afirmou: “Se vir que não posso continuar ou estou a causar dano ou a ser um estorvo, espero ‘ajuda’ para tomar a decisão de retirar-me e, chegado esse dia, prefiro ser considerado simples Bispo emério de Roma em vez de Papa emérito”. Note-se que, de facto, teologicamente, não é aceitável o título “Papa emérito”. E também disse a que gostaria de se dedicar: “Se sobreviver à renúncia, gostaria de fazer coisas deste tipo: ouvir as pessoas em confissão e ver doentes.”  


No entanto, a resignação não está para breve. Ele próprio acaba de declarar em entrevista à Associated Press que está “bem de saúde” e que a dor no joelho praticamente tinha desaparecido. De qualquer modo, “governa-se com a cabeça e não com as pernas.” Repetiu que, no caso de renúncia, seria “Bispo emérito de Roma” e viveria na residência para padres reformados da diocese.


Para já, continua com os seus compromissos: na semana próxima, visitará a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul; em Agosto, está em Portugal para a Jornada Mundial da Juventude e já advertiu que a JMJ não pode ficar reduzida a turismo religioso e espectáculo, e eu, pessoalmente, estou convencido de que não gostará que a celebração da Eucaristia final seja num altar-palco com o custo de mais de 4 milhões de euros.


Dedicar-se-á intensamente à continuação da preparação e celebração do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade em Outubro próximo, continuando no ano de 2024. De facto, a Igreja atravessa uma das suas mais dramáticas crises e precisa de uma mudança estrutural. Para ele, é bom haver críticas, “porque isso quer dizer que há liberdade para falar. A única coisa que peço é que mas digam na cara, porque assim crescemos todos, não é verdade?”


O legado de Francisco será precismente uma Igreja sinodal, caminhando todos em conjunto, sem “imperador” e “uma ditadura da distância”. 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 de janeiro de 2023