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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 9 a 15 de junho de 2025

 

"O Sonho de uma Nova Manhã – Cartas ao Papa" de Tomás Halik é uma reflexão tanto mais oportuna quanto corresponde ao início de um novo pontificado, num mundo de grandes incertezas.

 

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O autor escreveu estas cartas no final do pontificado do Papa Francisco e o certo é que ganharam uma evidente atualidade, pelo que nelas se lê e pelo sentido prospetivo que contêm. A eleição do Papa Leão XIV obriga à consideração de um novo tempo, por diversas razões. Antes de mais, a herança do Papa Francisco exige a ponderação de um método sinodal que ficou delineado quanto ao futuro próximo e que deve continuar. Há um conjunto de exigências que correspondem a desafios múltiplos e complexos, desde a resposta à reorganização da Cúria, à recuperação da credibilidade afetada pelos escândalos morais, passando pela resposta da Igreja Católica, como realidade global, relativamente à crise das vocações, ao papel das mulheres e à mobilização de todas as energias disponíveis. O novo Papa declarou-se missionário, e importa encontrar as melhores respostas relativamente a esse perfil de ação. E importa não esquecer ainda que a leitura dos sinais dos tempos faz-nos regressar ao pressupostos da encíclica “Pacem in Terris”. Num mundo dominado pela incerteza e pela violência, são pedidas ao “Povo de Deus” diligências concretas para que haja avanços no diálogo e na mediação para que a paz não seja uma palavra vã. Em simultâneo, importa tomar-se consciência de que o desenvolvimento humano obriga a recusar a inércia da indiferença, bem como exige a definição de prioridades que correspondem à resposta ao vazio de valores éticos, à situação dramática das desigualdades e injustiças e à dramática crise ambiental.

 

Tomás Halík imagina um Papa surgido num novo tempo, com o nome de Rafael: «um dos temas-chave nas minhas conversas com o papa Rafael é a questão de como passar da reforma, no sentido de apenas mudanças exteriores na forma, à transformação interior do ‘coração das coisas’. Como, no processo de reforma, não perder, mas sim descobrir algo novo e revitalizar aquilo que constitui a identidade cristã, aquilo que é para ela o ‘sal da terra’ e o fermento do pão fresco para os dias de amanhã?» Se falamos de transformação, temos de entender a ideia de metamorfose, que a natureza nos ensina. Há um caminho. Por isso, o método sinodal faz sentido como gradual reflexão e como ação com consequências práticas. «Os movimentos de renovação da Igreja têm de ser avaliados, na medida em que contribuem para que tudo o que é humano na Igreja esteja cada vez mais aberto a esta dinâmica transformadora da presença de Deus. Jesus, na sua famosa parábola, fala sobre o grão que tem de morrer para dar fruto». Mas quem somos? Vivemos numa circunstância perigosa. Pessoas com identidades pessoais fracas e incertas facilmente sucumbem ao mercado das seitas, de ideologias fundamentalistas, fanáticas e totalitárias. Por outro lado, os meios e os fins confundem-se e perde-se o sentido de um tempo que não se esgota no imediato e no instrumental.

 

Charles Péguy e Jacques Maritain falaram dos polos político e profético da vida – ambos são indispensáveis, no primeiro, cuidamos da relação entre as pessoas na cidade; no outro, procuramos sentido para além do imediato. A vida faz-se dessas duas referências. Daí que a sinodalidade seja não apenas “a necessidade de caminharmos juntos e de pensarmos juntos, mas também a oportunidade de percebermos ao longo desse caminho a compatibilidade entre temas que são, muitas vezes, discutidos separadamente. Cada passo no caminho para uma compreensão mais profunda de um dos grandes temas teológicos traz uma nova luz sobre os outros”. Não podemos viver sem transcendência e a liberdade de consciência permite distinguir e completar os planos, de modo que a dimensão espiritual não ponha em causa o espaço plural da polis. E assim Teilhard de Chardin está presente na lição de “Fratelli Tutti”, considerando “a cooperação, a parceria e o apreço mútuo como motores do desenvolvimento em vez da luta pela sobrevivência”. A idade do Espírito Santo de Joaquim de Flora deve, assim, ser lida não como um contraponto relativamente à presença do Pai e do Filho, mas como uma continuidade. O Pentecostes é natural presença do Espírito na História. Afinal, como ensinou o Mestre Eckhart, “o homem exterior tem um deus exterior e o homem interior tem um Deus interior”. Como realidades do mundo da vida, “religare” e “relegere” constituem o fenómeno religioso como natural no seio da humanidade, fator de coesão e de reflexão, de ligação e de confiança. Somos uma comunidade de peregrinos, a quem se pede que saibamos escutar-nos uns aos outros. “A igreja tem a obrigação de ser a voz daqueles que não têm voz e tem de interpretar a mensagem que nos é dirigida e nos é transmitida por Deus fora das fronteiras da fala humana”.

 

A noção de ecumenismo alarga as fronteiras e chega à compreensão franciscana da “Laudato Si’”. Tomás Halik crê, assim, sinceramente numa renovação sinodal, numa partilha de responsabilidades, num encontro de todas as mulheres e homens de boa vontade. Não se trata de alimentar qualquer ilusão, mas de compreender quem é o nosso próximo e de fazer da atenção e do cuidado a nossa ordem do dia. E esta renovação sinodal “inclui o aprofundamento do respeito mútuo e do diálogo entre três componentes da Igreja; a hierárquica (representando a continuidade da tradição), a democrática (representando o sensus fidelium, a experiência da fé de todo o povo de Deus) e a carismático-profética (representando a presença do Espírito de Deus). Se a Igreja realmente enveredar por esse caminho, a relação entre a fé do indivíduo e a fé de uma Igreja assim entendida será muito mais dinâmica, mais rica, e mais profunda. Não se tratará de uma obediência de tipo militar, mas de uma escuta comum, de um enriquecimento mútuo, uma complementaridade, uma busca comum, uma viagem comum a profundidades inesgotáveis”. Eis a atualidade de uma obra que nos põe perante os desafios fundamentais do mundo contemporâneo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

QUE FRATERNIDADE HUMANA?

  
    Visita do Papa Francisco a Lampedusa, Foto: AFP/Getty Images


Várias vezes Eduardo Lourenço me confessou que o grande mistério que gostaria de ver desvendado era o de saber o que Jesus Cristo teria escrito com o dedo no chão, no episódio da mulher adúltera. Esse é o único momento do “Novo Testamento” em que o Filho de Deus escreve. E compreende-se que para o intelectual e o ensaísta fosse muito importante desvendar esse lado oculto do Nazareno. Tal circunstância tem tudo a ver com a personalidade do Papa Francisco, que em vários momentos nos lembrou a importância dessa passagem. “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! E inclinando-Se novamente recomeçou a escrever no chão. Eles, porém, quando isto ouviram, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou Jesus com a mulher, que continuava ali no meio…” (Jo, 8, 7-9). Em diversas circunstâncias o Papa Francisco recordou este episódio, não como gesto teórico, mas como exemplo de vida.

A marca da diferença foi o sinal único de um magistério que perdurará por certo, qualquer que seja o desenvolvimento histórico. Serão inúteis as especulações sobre o que irá acontecer agora, a verdade é que presenciámos o lançamento à terra de pequenas sementes, como grãos de mostarda, de simplicidade e de sobriedade. O contraste com os gestos de barbárie, de ódio e de caos que presenciamos é evidente – e sentimos a angústia do Papa nos seus últimos dias de vida perante a inaudita violência  da guerra mundial aos pedaços que, antes de tudo, oportunamente diagnosticou. Com grande coragem defendeu os temas fundamentais de uma cultura humanista: uma Ecologia integral, uma Economia justa, o papel da mulher, uma Solidariedade com os pobres, os excluídos, os migrantes.

A viagem a Lampedusa está na memória de todos. E a palavra todos tornou-se para o Papa uma bandeira que congrega os projetos de renovação, que se tornaram essenciais na Jornada Mundial da Juventude de 2023. Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020) constituem gritos de alerta que suscitaram contestação de quantos preferem o dogmatismo e a intolerância que o Papa combateu até ao último dia. Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz – eis a grande lição de alguém que usou as palavras e o exemplo para fazer um mundo melhor. E esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, mas uma perda para o mundo.

O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento de rara importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permitiu a afirmação de uma cultura de paz fundada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria.  Frederico Lourenço faz uma síntese com que concordo plenamente e que subscrevo: “Com Francisco foi-nos dada a visão daquilo que a Igreja poderá ser. Desse ponto de vista, foi um Papa que veio do futuro” (Expresso, 25.4.2025). Todos os sinais do seu percurso e as suas palavras merecem, pois, especial atenção e cuidado. E desejamos que não fiquem no esquecimento ou votadas à indiferença.   


GOM

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

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A melhor homenagem a Francisco

 

Um jornalista perguntou uma vez ao Papa Francisco:
Como gostaria de ser recordado depois de morrer?

E Francisco respondeu textualmente com estas palavras:
“Era um bom homem e fez o que pôde.”

Estou convicto de que, agora que partiu, a melhor homenagem que se lhe poderia prestar seria cada um, cada uma, nas suas respectivas condições de vida, fazer sinceramente seu o mesmo desejo de recordação após a sua própria morte: “Era uma boa pessoa e fez o que pôde.”

Não haja dúvidas: o mundo seria diferente.

 

3 de maio de 2025
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia

A VIDA DOS LIVROS

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   De 5 a 11 de maio de 2025

 

O Papa Francisco deixou-nos um testamento pessoal que considerou dever ser lido depois da sua morte. Tudo se precipitou a doença, a incerteza e por fim o seu falecimento. Damos espaço, a um texto que merece ser lido e meditado.
 
 

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A memória do Papa Francisco ficará ligada à ideia de um novo 
rejuvenescimento. Ao chamar a atenção para as margens e para as periferias, procurou mobilizar novas energias, apesar das dificuldades que sentiu e das atitudes corajosas que teve de tomar para limpar alguns sinais de acomodação e de abuso, que não deixou de considerar como vergonha. «Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais» como afirma a Exortação Pastoral “Evangelii Gaudium” (EG). Na mesma linha em que o Papa João XXIII apelava ao reconhecimento da importância dos “sinais dos tempos”, o Papa Francisco disse: «É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. (…) Nas grandes cidades, pode  observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, 
constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e violência». 
 
Fidelidade e mudança foram marcas profundas do pontificado de Francisco, cuja primeira Encíclica, Lumen Fidei foi escrita em colaboração com Bento XVI. Os temas de uma cultura humanista, de uma Ecologia integral, de uma Economia solidária constituem projetos de renovação, que se tornaram essenciais na mensagem das Jornadas Mundiais da Juventude de 2023: «A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo». Eis por que razão o Papa Francisco pedia com insistência que se prestasse atenção às culturas locais, mais diretamente, “quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como constituída pelos monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente» (Laudato Si’, 143). Com efeito, a nossa relação com a cultura obriga à necessidade da compreensão da gratuitidade, da partilha, em vez de uma cega atitude consumista, esquecida da justiça e da solidariedade. «A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem de vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas» (EG, 223). E importa ainda lembrar que «a cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas» (EG,74). Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz. Esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente pelo Papa em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, é uma perda para o mundo. 
 
O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento da maior importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permite a afirmação de uma cultura de paz baseada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria. “A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos iguais pela sua Misericórdia -, o crente é chamado a expressar a fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo, apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres». Há, porém, um longo caminho a percorrer.

O Documento Final do Sínodo dos Bispos merece uma especial atenção e 
uma leitura cuidada, porque aí se sente a intervenção do Papa. Saliente-se a tendência para não referir de modo fechado uma Igreja universal, preferindo-se a fórmula abrangente e a lógica de rede com diversas ramificações periféricas. Torna-se, de facto, necessária uma linguagem adequada ao tempo presente: há a comunhão de Igrejas, reportando-nos ao povo de Deus, unido em Cristo. O universalismo não pode, assim, confundir-se com uniformização. As igrejas locais correspondem a diferentes maneiras de viver as relações entre cristãos. Deste modo, quando o Papa Francisco afirmou que o Documento sinodal "não é normativo", preferiu indicar um caminho a ser tomado por todos. "Não se trata, portanto, de leis vindas de uma instância central para serem adaptadas nas periferias, mas de responder a um apelo à conversão, ou seja, a viver as relações eclesiais de modo diferente".

A liturgia é ainda um tema que ainda deve ser avaliado. No entanto, onde for 
apropriado deve haver mais participação. Há experiências já existentes que exigem aprofundamento. Quanto ao diaconato feminino, persiste a questão 
em aberto, mas para o Papa a participação das mulheres na Igreja terá de ser alvo de especial atenção. "Devemos tornar-nos uma espécie de centro no qual as diferentes pessoas possam reconhecer-se como irmãos e irmãs, filhos de um único Pai". Estamos perante uma ideia diferenciada de serviço, que pode ser vivida de forma integrada e dinâmica, não podendo os leigos ser subalternos ou substitutos. O Papa Francisco lembrava Gustav Mahler, a defender que a fidelidade à tradição não consistiria em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Por isso, perguntava, ao defender o método da colegialidade: antes de começarmos o caminho sinodal, a que estaremos mais inclinados: a cuidar das cinzas da Igreja, do grupo restrito de cada qual, ou a conservar o fogo? Infelizmente, há mais tendência para adorar as coisas que nos encerram e não as que nos fazem viver. “Sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo, ou sentimo-nos chamados a guardar o fogo do Espírito?”
 
 
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
 
 

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    Theodor Adorno e Max Horkheimer


Homenagem a Francisco: A dívida para com as vítimas inocentes


Recordando Francisco, o Papa de uma Igreja aberta a todos e que até ao fim quis estar próximo dos últimos, fica aí este meu texto sobre a dívida incomensurável da História para com as vítimas inocentes.

Na sua encíclica sobre a esperança — Spe salvi (Salvos em esperança) —, Bento XVI, o Papa antecessor de Francisco, debruça-se sobre uma pergunta decisiva – “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer): o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, um grito sem fim e ensurdecedor percorre a História.

No mundo moderno, conduzido em grande parte  pela ideia de progresso, ergueu-se, nos séculos XIX e XX, um ateísmo moral por causa das injustiças do mundo e da História. “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”.

Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral.

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”, escreveu o Papa.

Aqui, Bento XVI apela para a Escola Crítica de Frankfurt, nomeadamente para Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável  “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, mas então não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”.

Esta esperança tem de traduzir-se numa práxis solidária tal que “não se possa pensar que não existe um Além”. Nesta práxis, está implicado o pensamento do Absoluto, não para afirmá-lo, mas como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo.

Também neste sentido, Adorno escreveu que “o pensamento que se não decapita desemboca na Transcendência”. Frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da História dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal. 

Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconhecia que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra” convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. 

Na Sexta-Feira Santa, como já aqui escrevi, lembra-se Cristo na cruz, que morre, inocente, e gritando uma oração em pergunta in-finita, que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Os cristãos acreditam que o Deus do amor, seu Pai — o Papa Francisco escreveu que “o nome de Deus é Misericórdia” —, respondeu, ressuscitando-o dos mortos, dando assim esperança ao clamor das vítimas da História.

Francisco ainda saudou a multidão no passado Domingo, Festa da Páscoa. Morreu na manhã de Segunda-Feira, Segunda-Feira de Páscoa. Adeus, Francisco.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia

A VIDA DOS LIVROS

  
De 3 a 9 de fevereiro de 2025


Recentemente terminado o Sínodo da Igreja Católica debruçou-se sobre o papel das mulheres e chegou a conclusões que podem prenunciar um caminho renovador, a que devemos estar atentos.


UMA LEITURA CUIDADA
É fundamental estar atento às conclusões do Sínodo da Igreja Católica no tocante ao papel das mulheres. Torna-se necessário fazer uma leitura cuidada do que aí se disse. É verdade que se poderia ter ido mais longe, mas numa instituição bimilenária é indispensável dar passos seguros, sem esquecer a audácia e a coragem. Se virmos bem, tudo aqui está dito, e não podemos esquecer que a sociedade humana compreende que a dignidade da pessoa humana, no sentido universalista, tem de abranger todos de um modo aberto e paritário. Releia-se, por isso, o texto fundamental do Sínodo, que deve estar bem presente: «Em virtude do Batismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum».


Sem tergiversações, sigamos diretamente o texto aprovado. Não pode haver qualquer ilusão sobre qual o sentido das Escrituras nesta matéria. De facto, «as Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos lecionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da história da Igreja confirmam o contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras testemunhas da fé nas famílias. São ativas na vida das pequenas comunidades cristãs e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da justiça social. As mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela comunidade».


A PRIMEIRA PREFEITA COM DICASTÉRIO ATRIBUÍDO
Há, deste modo, um sinal muito importante que acaba de ser dado: pela primeira vez na história da Igreja Católica, uma mulher foi nomeada Prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se da irmã Simona Brambilla, religiosa das Missionárias da Consolata, doutorada em Psicologia pela Universidade Gregoriana. Quando Emmanuel Mounier afirmou que “a mulher também é pessoa”, houve quem considerasse a afirmação como óbvia ou supérflua, mas a verdade é que ainda hoje estamos confrontados com incompreensões e dúvidas incompreensíveis a esse respeito, o que obriga a tirarmos as devidas consequências.


Até hoje, a Igreja Católica reconheceu 36 doutores, entre os quais quatro mulheres: Teresa de Ávila (1515-1582), Catarina de Sena (1347-1380), Teresa de Lisieux (1873-1897) e, por último, a monja beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179). Poderemos falar, certamente no futuro próximo, ainda da Santa Teresa Benedita da Cruz, a filósofa reconhecida mundialmente com uma importante obra publicada, Edith Stein (1891-1942). E quando lemos os contributos teológicos destas mulheres compreendemos bem a força da sua fé e da sua reflexão em termos de extraordinária relevância. Demonstram, afinal, como o tempo confirmará por certo, a exigência do reconhecimento da dignidade humana com todas as suas consequências. Daí o Sínodo convidar a uma plena concretização «de todas as oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres, particularmente nos lugares onde estas continuam por cumprir. Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redação dos documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas, teólogas e místicas».


SINAL PROMETEDOR
Se temos agora um sinal prometedor, somos chamados à coragem e ao uso coerente da sabedoria. Daí a importância de uma leitura atenta de um texto notável onde está tudo dito, importando tirar consequências. Eis o desafio fundamental: partir de cada uma destas considerações, para podermos com determinação avançar no reconhecimento da dignidade humana para todos nas suas justas consequências. Como afirmou o Papa Francisco, “penso em todas as mulheres: agradeço-lhes pelo seu compromisso em construir uma sociedade mais humana, por meio da sua capacidade de compreender a realidade com um olhar criativo e um coração terno”.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de dezembro de 2024


O Papa Francisco propõe para o Novo Ano de 2025 o tema da Esperança como mobilizador dos cristãos e das pessoas de boa vontade num tempo muito exigente, pleno de incertezas e ameaças, a exigir o compromisso de todos para desfazer os sérios perigos que nos perseguem.
 


Papa Francisco © Paulo Novais/Lusa


“Exorto-vos a todos a viver este tempo forte de Natal com uma oração vigilante e uma esperança ardente”, sendo um “tempo de graça, irradiando a alegria que é fruto do encontro com Jesus” – acaba de proclamar o Papa Francisco. Mas acastelam-se nuvens negras no horizonte e o apelo é mais necessário que nunca.


Lembremo-nos que a singularidade e a solidariedade são faces da mesma moeda, obrigando-nos à recusa da indiferença e à noção positiva de compromisso. A nossa relação de uns com os outros, baseada no respeito mútuo, obriga-nos a uma ligação essencial entre pessoa e comunidade. A pessoa humana parte do que somos e do que nos distingue dos outros, segundo a própria etimologia, enquanto máscara do teatro grego. Já a comunidade é o que nos liga intrinsecamente, tornando-nos responsáveis uns pelos outros. E assim a autonomia individual demarca-se do egoísmo e do narcisismo, constituindo-se como valor ético, como eixo de abertura, de generosidade e de disponibilidade. Não nos reportamos, porém, a qualquer visão idílica de vida, destituída de diferenças e conflitos. Referimo-nos, sim, à necessidade de recusa da tentação do isolamento e da autossuficiência.


«O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana» - afirmava João XXIII na encíclica «Mater et Magistra» (1961). Os poderes públicos devem orientar-se no sentido do respeito, da harmonização, da tutela e da promoção dos direitos invioláveis prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Se uma autoridade não reconhecer os direitos ou os violar «não só perde a razão de ser, como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência», insistia João XXIII há cinquenta anos, num documento moderno que se tornou mais atual do que nunca. De facto, a noção de serviço público não se pode ater apenas ao Estado e ao mercado, mas à comunidade. O Estado social tem de representar a sociedade e os cidadãos, devendo o serviço público corresponder sempre a uma rede de iniciativas e de cidadãos criadores e participantes. Falamos do catálogo de direitos aceites e reconhecidos pelas Nações Unidas, que a encíclica «Pacem in Terris» refere: a existência de um padrão de vida digno; o respeito pelos valores morais e culturais; o prestar culto segundo o imperativo da reta consciência; a liberdade de escolha do estado de vida; a satisfação justa de necessidades económicas; para além dos direitos de reunião, de associação, de migração e de participação política – assim o Concílio Vaticano II consagrou a liberdade religiosa e de consciência. E este conjunto completa-se com o elenco dos deveres de cidadania (e não deveres de servos ou de súbditos): reciprocidade entre direitos e responsabilidades, colaboração mútua entre pessoas, convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, bem como salvaguarda de uma ordem moral, cujo fundamento para os cristãos é o próprio Deus. Deste modo, encontramos um fundamento universal e não uma mera lógica de hierarquia formal. Não se trata de referir um modelo de bem comum ou uma noção estereotipada de democracia – mas sim de considerar que a pessoa humana é a medida comum dos direitos e responsabilidades.


Não esquecemos que Hannah Arendt coloca entre as Origens do Totalitarismo a atomização radical do indivíduo e a eliminação da espontaneidade e da liberdade política. O colapso da distinção entre os domínios público e privado conduz à invasão ilegítima do puro utilitarismo. Afinal, o crescimento livre dos interesses privados torna-se incompatível com a necessidade de termos instituições políticas estáveis e com a existência de instâncias de mediação capazes de representar os interesses legítimos, de suscitar a participação cívica, de garantir representação cidadã e de regular os conflitos de forma racional e pacífica. Afinal, o totalitarismo, distinto do mero autoritarismo, torna a ação política impraticável, através da capacidade de falar e de ouvir, porque destrói pelo terror a possibilidade de ações espontâneas entre as pessoas. A solidão e o abandono são causas que subjazem a todos os movimentos totalitários, ainda segundo H. Arendt – lembrando a pensadora o conceito de Santo Agostinho de “Amor ao mundo”. A pessoa humana sente-se em casa, podendo preparar-se na espera do bem e do mal. E assim, em lugar do isolamento e do abandono, o cidadão torna-se um participante comprometido, capaz de agir em prol do comum. E a essência dos direitos torna-se um direito a ter direitos, fundamento da coesão social e da confiança.


Eis por que razão a noção de liderança não se confunde com a aquisição de poder e de proeminência, mas deve corresponder ao serviço, à atenção e ao cudado. Serviço, na medida em que se trata de dar resposta e de corresponder ao que nos é solicitado pelos outros e se espera de nós. Atenção, uma vez que resulta de termos de estar despertos perante o nosso próximo – tornando viva a pergunta bíblica: “onde está o teu irmão?” E devemos considerar o cuidado, entendendo que, mais do que uma solidariedade formal do que se trata é de garantir que precisamos uns dos outros. Daí a necessidade de superarmos a superficialidade e o imediatismo, uma vez que quanto mais cedermos a tais condicionantes mais provável será deixarmo-nos aprisionar pelo mal e pelo desrespeito da dignidade. Jacques Maritain numa das suas conferências do período do exílio americano durante a guerra afirmou: «Dizer que o homem é uma pessoa, quer dizer que, no fundo do ser, ser é mais um todo que uma parte, e mais independente que servo».


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 14 a 20 de outubro de 2024


O Papel da Literatura na Educação
(Paulinas, 2024) da autoria do Papa Francisco constitui uma importante reflexão sobre a importância da leitura, da literatura e da arte como fatores de enriquecimento humano e de emancipação.


 

UMA CARTA OPORTUNA
A carta intitulada O Papel da Literatura na Educação (Paulinas, 2024) da autoria do Papa Francisco constitui uma boa surpresa e uma leitura para todos, que pretende despertar para o amor pela leitura, propondo uma nova atitude para os cristãos em geral, para os candidatos à formação eclesiástica e para os leitores em geral, visando abrir espaço à leitura de obras literárias. A função pedagógica da obra é, assim, evidente, constituindo um precioso apelo à valorização do livro e da leitura. De facto, a literatura tem um efeito, inequivocamente positivo, de "educar o coração e a mente do pastor" para "um exercício livre e humilde da própria racionalidade", bem como para o "reconhecimento fecundo do pluralismo das línguas humanas". Deste modo, ler amplia a sensibilidade humana e permite "uma grande abertura espiritual". De facto, deve haver uma preocupação dos cristãos de "tocar o coração dos seres humanos contemporâneos para que eles possam comover-se e abrir-se diante da proclamação do Senhor Jesus". "A contribuição que a literatura e a poesia podem oferecer é de valor inigualável". Contudo, se o Papa refere em especial o caso dos cristãos, pode considerar-se que esta carta é dirigida a todas as pessoas, considerando a leitura e a arte fatores de aproximação entre todos no sentido do respeito mútuo, da imaginação, do pluralismo e da criatividade.  São incontestáveis os benefícios de um bom livro que, "muitas vezes no tédio das férias, no calor e na solidão de alguns bairros desertos", torna-se "um oásis que nos distancia de outras escolhas" e que, em "momentos de cansaço, raiva, deceção, fracasso", pode ajudar-nos a superar tais momentos e a "ter um pouco mais de serenidade". Porque talvez "essa leitura abra novos espaços interiores" que nos ajudem a não nos fecharmos "naquelas poucas ideias obsessivas", que "nos prendem de maneira inexorável". Aliás, muitas vezes as experiências com redes sociais têm conduzido a um fechamento ou a uma lógica de circuito fechado, que a literatura e a reflexão contrariam. E o Papa Francisco recorda que as pessoas costumavam dedicar-se à leitura com mais frequência "antes da onipresença dos meios de comunicação social, das redes sociais, dos telefones celulares e de outros dispositivos". Enquanto um produto audiovisual pode ser "mais completo", a verdade é que "a margem e o tempo para 'enriquecer' a narrativa ou interpretá-la são geralmente reduzidos", todavia a leitura de um livro desafia o leitor a um papel mais ativo, porque a obra literária é "um texto vivo e sempre fértil". Acontece que, quando lê, “o leitor é enriquecido com o que recebe do autor", tantas vezes distante no espaço e no tempo, mas que nos permite ir além e isso permite fazer florescer a riqueza de sua própria pessoa. Assim, importa alcançar um acesso privilegiado, através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. Porque, na prática, a literatura tem a ver "com o que cada um de nós deseja da vida" e "entra em uma relação íntima com nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados".


AS VIRTUALIDADES DA LEITURA
O Papa Francisco adverte ainda para que não se leia por obrigação, devendo-se selecionar as leituras "com abertura, surpresa e flexibilidade". E assim enuncia as consequências positivas que decorrem do "hábito de ler", como ajuda a "adquirir um vocabulário mais amplo", a desenvolver a própria inteligência, a estimular a imaginação e a criatividade, permitindo que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica, melhorando a capacidade de concentração, reduzindo os níveis de deficit cognitivo, e acalmando o stress e a ansiedade. Em termos concretos, a leitura "prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida", continua Francisco, "ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida". E com Jorge Luis Borges podemos chegar a definir literatura como a possibilidade de "ouvir a voz de alguém". E esse alguém, próximo ou distante no tempo e no lugar, torna-se um valioso companheiro, com quem temos possibilidade de dialogar, transformando esse intercâmbio num fator de compreensão mútua e de reconhecimento comum.


A literatura permite, afinal, “fazer eficazmente a experiência da vida”. E se a nossa visão ordinária do mundo é “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos do nosso agir exercem sobre nós “também o serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se” somente algo a fazer, o risco passa a ser o cair na busca duma “eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade”. Assim, na "nossa vida quotidiana", devemos aprender “a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro. É necessário “recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento: ocorre distância, lentidão, liberdade para uma abordagem da realidade, em palavras simples, a literatura nos permite "treinar o nosso olhar para buscar e explorar a verdade das pessoas e das situações", "nos ajuda a dizer nossa presença no mundo". Além disso, insiste o Papa, "lendo um texto literário" vemos através dos olhos dos outros, desenvolvemos "o poder empático da imaginação", "descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só”. E assim descobrimos que aquilo que sentimos não é apenas nosso, é universal, e por isso descobrimos alguém que nos acompanha.


Guilherme d'Oliveira Martins
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O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (3)

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3. O contributo da literatura

 

Enquanto regi a cadeira de Antropologia Filosófica na Faculdade de Letras, em Coimbra, esforcei-me sempre por aliciar os estudantes para a leitura da grande literatura mundial, concretamente das tragédias e dos romances, na convicção de que seria esse um dos lugares indispensáveis para poderem penetrar de modo substancial na urgência do conhecimento da realidade humana no seu enigma e mistério.


Foi, por isso, para mim, uma surpresa feliz entrar em contacto com algo totalmente inédito na história das publicações papais: a Carta do Papa Francisco sobre o papel da literatura na Educação, publicada com a data de 17 de Julho de 2024. Ela teria sido escrita pensando na formação dos futuros padres, mas, pensando bem, é para todos, reconhecendo “o valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal”.


Francisco tem consciência de que é necessário “ultrapassar a obsessão dos ecrãs, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar de livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto”.


Pessoalmente, quero lembrar, entre outros, o neurocientista Michel Desmurget, autor de A Fábrica de Cretinos Digitais e, mais recentemente, de Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais, que mostrou como a dependência dos ecrãs pura e simplesmente estupidifica: “Ler influencia positivamente todas as dimensões fundamentais da nossa humanidade.”


Concordando, Francisco lamenta que, “com poucas excepções, a atenção à literatura é considerada como algo não-essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspetiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros padres, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. De uma forma ou outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados.”


Ele próprio foi professor de Literatura, sabendo, pois, do que que fala, e dá um exemplo: “Eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão.” Na verdade - e cita Karl Rahner -, a literatura inspira-se na quotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como “a acção, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida”.


É urgente ir ao encontro do Homem, não do Homem abstracto, mas de um ser humano concreto, do “mistério daquele ser concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida”. E para isso está também o recurso assíduo à literatura, que, entre tantas outras vantagens, “melhora a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.” E cita M. Proust: os romances desencadeiam “em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber”. E C. S. Lewis: “Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de pessoas sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo”, e continua: “Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca.”


Para que serve a literatura? “Ela ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais.” Mais: o seu olhar “forma para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.”


E Francisco conclui luminosamente: “Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: ‘Quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível’.” E eu lembrei-me de Paul Klee: “A arte não reproduz o visível, ela torna visível.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de agosto de 2024

O CÓMICO E O RISO NO VATICANO

  


1. Este texto foi escrito antes da realização de um acontecimento que julgo muito significativo e que teria lugar no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco com mais de 100 humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e Ricardo Araújo Pereira.


Um encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da Comunicação. O seu objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os humoristas”.  “Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo da cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do riso nos dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica. Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um mundo mais empático e solidário”, referia o comunicado do Vaticano, acrescentando que “o encontro entre Francisco e os actores cómicos do mundo pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover uma mensagem de paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de diálogo intercultural de partilha de alegria e esperança.”


2. Estando a escrever antes do acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o tema, deixo aí algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.


A Igreja oficial nunca se deu muito bem com o humor e o riso.  Por exemplo, ainda vivi tempos nos quais durante o Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do Santíssimo Sacramento” e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se penitência em reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.


Até se generalizou a ideia de que Jesus nunca se riu.  Na verdade, de Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém...  Não se diz que riu. Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos?  Uma boa piada pode estabelecer pontes, o riso são cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras da vida, o Céu deu-nos três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.


Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode ajudar a curar. Só nas ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes instituídos. Ai de cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si mesma, das suas manias e disparates…  O que não se pode — não se deveria — é cair no riso alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência. Ah! o riso também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca: "Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu", escreveu Montaigne.


Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Elegia-se, entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado “Bispo”. Esse subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia,  era vestido de Bispo, colocado em cima de um burro, e entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em certos momentos, o celebrante e o povo zurravam. Na entrega simbólica do “báculo” episcopal entoava-se o Magnificat — o hino de louvor que o Evangelho coloca na boca de Maria — naquele passo: "Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes."  Sobre a Festa dos Loucos pronunciou-se a Faculdade de Teologia de Paris em 1444, justificando-a: "Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita?” Neste descalabro burlesco, dever-se-ia ver, no limite, a urgência de não confundir o Sagrado em si mesmo com as mais variadas formas idolátricas com que tantas vezes os crentes se lhe dirigem.


A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores, com mitras, tricórnios, alguns vestidos de púrpura… Aconteceu que São Pedro veio à janela do Céu e viu aquilo.  Estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas disse: "E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado pelos poderes do Templo e do Império... Lembras-te?"


Sim, Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a “Oração do bom humor”, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem falta o bom humor divino: "Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./ Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá - me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os outros./ Ámen."


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de junho de 2024