Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O encontro de agora de Amadeo de Souza Cardoso, Sonia e Robert Delaunay em Paris no Centro Pompidou numa exposição memorável, inaugurada há dias, constitui um marco fundamental para a compreensão da história do modernismo no início do século XX. Depois da apresentação no Grand Palais parisiense da grande retrospetiva sobre Amadeo, com curadoria de Helena de Freitas (2016), há agora oportunidade para, através de uma correspondência entre os três artistas de exceção, se proceder à análise (que é disso que se trata para o visitante informado) de um verdadeiro diálogo, baseado em identidades criadoras que se diferenciam e que se completam, dando-se à expressão Correspondência(s) um significado que envolve aproximação e emancipação no domínio do pensamento e da arte. Como diz Helena de Freitas num precioso catálogo: “foi uma escandalosamente (quase) desconhecida correspondência que deu corpo ao histórico da relação destes três artistas, e dos restantes que constituíram os artistas da chamada “corporation nouvelle” reunidos pela guerra (de 14-18) em Portugal e em Espanha”. E o certo é que essa ideia de grupo informal surge como sinal de uma surpreendente modernidade, à volta das ideias de expositions mouvantes, de transferências culturais e de um trabalho transnacional em rede, em tudo contrariando qualquer centralismo parisiense.
A verdade é que a exposição do Centro Pompidou é ela mesma uma ilustração criativa da ideia complexa de correspondência, antes de mais expressa no rico diálogo entre Helena de Freitas e Angela Lampe na apresentação do tema e, em seguida, na demonstração prática sobre os percursos paralelos de Amadeo e dos Delaunay, nos quais nos apercebemos bem da independência de Amadeo, avesso à ideia de escola, em contraponto com o caminho de Sonia e Robert. Como salientaram Laurent Le Bon, presidente do Centro Pompidou, e Xavier Rey, diretor do Museu Nacional de Arte Moderna, a cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian “inscreve-se numa ambição mais alargada de reescrever a história da arte do início do século XX, revelando um panorama artístico complexo e interconectado”. E assim podemos não só reconhecer a grande importância da obra de Amadeo, mas também compreender neste contacto transfronteiras o sentido plural das raízes do pensamento moderno, bem evidenciado no grupo que abrange ainda Eduardo Viana, Almada Negreiros e Samuel Halpert, que Ana Vasconcelos criteriosamente tem estudado.
Contudo, a força criadora capaz de pôr as cores a girar e de garantir o culto da luz, como dizia Sonia, foi perturbada por um episódio grotesco em que a artista foi vítima de uma denúncia anónima, algo delirante, que a acusava de ser espia pró-alemã, por emitir sinais, através dos círculos órficos da sua pintura, para os submarinos alemães ao largo da costa portuguesa. Foi um caso caricato que projetou para fora da dimensão artística uma premonição intelectual que constituiu pano de fundo para estas correspondências que representam a vivência de uma nova mentalidade na arte de pensar e de criar.
Sente-se o ambiente tenso. Amadeo, em 1915, diz: “Esta paz tornou-se demasiado cara (…) e nós estamos a pagá-la”. Mas, perante as acusações absurdas de espionagem, já em 1916, descansa Robert Delaunay: “Fique tranquilo. Tudo acabará por correr bem. A verdade e a razão são muito poderosas. Todo o Porto está ao corrente deste caso e Lisboa também. Depois disto, fará exposições artísticas ainda com mais sucesso…” E dirigindo-se a Sonia: “O meu jardim está pleno de cores de seiva e de luz. Há morangos para encher os cestos, ‘rosas jovens e fortes’. Estou apaixonado. O Rimbaud vive no meu quarto. Vivo sob ‘cúpulas de esmeraldas’. Vejo ‘na minha anca a assinatura do poeta, e sou animal, e isso agrada-me”. E, embrenhado nesse prazer vivido, em Manhufe, Vila Meã, concluía: “Cuido, do que aprendi e herdei”.
Uma componente essencial do espaço público é a sobreposição de funções.
No livro The Fall of Public Man de Richard Sennett (W. W. Norton & Company, Inc., 2017), lê-se que as ideias de Barão Haussmann, para Paris, no séc. XIX foram baseadas na homogeneização. Os novos bairros da cidade destinavam-se a uma só classe e na cidade antiga central ricos e pobres foram separados. Este foi o início da função única no planeamento urbano, isto é, um desenho urbano em que cada espaço na cidade está destinado a um uso particular. A desagregação da cidade em que um espaço corresponde a uma função, por princípio pode parecer ordenada, operante e rentável. Mas na opinião de Sennett, uma componente essencial do espaço público é a sobreposição de funções. Historicamente, assim que as necessidades funcionais numa determinada área mudam o espaço já não consegue responder a estas mudanças e acaba por ser abandonado.
“Think, for Instance, of what a city of atoms, with a space for each class to live, for each race to live, for each class and race to work, means for attempts at racial or class integration, either in education or in leisure: displacement and invasion must become the actual experiences involved in the supposed experience of intergroup rapprochement. Whether such forced mixings would ever work in racialist or highly class-segregated societies is an open question; the point is that a city map of single-functions, single-spaces makes all such problems worse.” (Sennett 2017, 367)
Se uma cidade se apresentar como uma cidade de átomos - desagregada e fragmentada - com espaços específicos para cada classe e para cada etnia viver e trabalhar, sempre que houver tentativas de integração, quer seja através da educação ou através do lazer, essas experiências de aproximação intergrupal podem agravar problemas que possam existir. Pensa-se verdadeiro que uma cidade que separa classes, etnias e funções possa pôr fim à criação de complexidades incontroláveis. Porém, Sennett escreve que a destruição da multiplicidade de funções e que a conceção do espaço de modo a que os usos não possam mudar à medida que os usuários mudam, é racional só em termos de investimento inicial. A atomização da cidade e a consequente destruição do espaço público, imposta por urbanistas, cria uma comunidade com sede de contacto humano.
Para Sennett, os esforços urbanísticos de Haussmann puseram um término definitivo ao cruzamento entre habitar, trabalhar, educar, tratar e socializar dentro e ao redor de uma única casa - na cidade pré-industrial lojas, escritórios e habitação situavam-se muitas vezes concentrados num só edifício. Quanto mais as cidades se fragmentam e morrem mais as pessoas deixam a cidade. Sennett declara que o desenvolvimento urbano moderno faz com que o próprio contacto social somente através de centros comunitários pareça uma resposta à morte social da cidade. (Sennett 2017, 368)
A cidade moderna opõe a comunidade à sociedade e naturalmente à multidão. Psicologicamente, o indivíduo protege-se contra a multidão: “The bourgeois man in the crowd developed in the last century a shield of silence around himself. He did so out of fear. This fear was to some extent a matter of class, but it was not only that. A more undifferentiated anxiety about not knowing what to expect, about being violated in public, led him try to isolate himself through silence when in this public milieu.” (Sennett 2017, 369)
A multidão é desconfortável e automaticamente coloca o indivíduo em isolamento, confrontado somente com a sua solidão: “Strangers on crowded streets give each other little clues of reassurance which leave each person in isolation at the same time: you drop your eyes rather than stare at a stranger as a way of reassuring him you are safe; you engage in the pedestrian ballets of moving out of each other’s way, so that each of you has a straight channel in which to walk; if you must talk to a stranger, you begin by excusing yourself and so forth…” (Sennett 2017, 369)
Desde o séc. XIX, que se pensa que a multidão tem o poder de pôr em causa a segurança de uma cidade. Desde então, existe a ideia de que a multidão precisa estar sob controlo, porque se acredita que a multidão é o modo pelo qual as paixões do indivíduo se deixam corromper e se expressam sem limites - a multidão tem a fama de ser capaz de transformar um indivíduo banal num monstro. Para Sennett, essa imagem da multidão está associada à ideia de que as pessoas que se expressam ativamente numa multidão são vistas geralmente como potencialmente perigosas: “…the people actively expressing their feelings in crowds are seen usually as the Lumpenproletariat, the under-classes, or dangerous social misfits.” (Sennett 2017, 369)
Sennett explica que no início do séc. XX, estudos relacionados com a psicologia social mostravam e expandiram exageradamente a ideia de que a multidão pode induzir a uma espécie de exaltação e loucura psicótica - a saúde psicológica de um indivíduo ao ser então analisada variava de acordo com o facto de pertencer ou não a um determinado grupo social. Esta suposição, ainda que pouco infundada, implicitamente levou à ideia de que apenas um simples espaço claramente demarcado e que permite o contacto entre um número limitado de indivíduos, mantém a ordem.
Esta imagem moderna, acerca da multidão, teve inevitavelmente ressonância no planeamento urbano moderno. Na cidade moderna persiste a ideia de que quanto mais simplificado o ambiente (reduzindo o número de funções e de interligações) haverá ordem e controlo - numa multidão ninguém se conhece e há mais liberdade. Na opinião de Sennett, uma cidade segregada é assim uma cidade fechada e aprisionada, sob permanente vigilância e escuta.
A vida na cidade moderna apresenta como característica esta contradição permanente - a ânsia de liberdade e abertura associada ao desejo de segurança e de previsibilidade. A cidade moderna aproxima somente os iguais, põem em contacto as pessoas que acreditam nas mesmas coisas, que partilham as mesmas expectativas e que pensam e atuam da mesma maneira. E por isso, qualquer pequeno desentendimento se pode tornar numa luta sangrenta porque os limites estão bem traçados e qualquer sentimento de invasão pode incrementar as diferenças. Num ambiente segregado é mais difícil conviver e aceitar a diferença - a presença do outro torna-se uma constante ameaça. Nestas circunstâncias e numa cidade fragmentada a ideia de pertencer a um mundo maior e mais complexo parece assustador e leva a um isolamento e a uma frustração ainda maior do indivíduo e do seu pequeno núcleo social - uma comunidade é então sinónimo de proteção emocional contra a sociedade em geral e por isso uma barreira territorial dentro da própria cidade: “This new geography is communal versus urban; the territory of warm feelings versus the territory of impersonal blankness.” (Sennett 2017, 372)
Ao lado do brilho da modernidade do plano de Haussmann, as ruínas dos velhos bairros amontoam-se no chão.
O plano da nova cidade de Georges Eugène Haussmann, prefeito de Paris e arredores, consistiu numa modernização urbana em grande escala, porque abriu uma vasta rede de alamedas no coração da velha cidade medieval. Marshall Berman em Tudo o que é sólido se dissolve no ar (Edições 70, 1989) escreve que “…o boulevard (…) foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, o ponto de partida decisivo para a modernização da cidade tradicional.” (Berman 1989, 164) e que “por volta de 1880, os padrões de Haussmann foram universalmente aclamados como o verdadeiro modelo no urbanismo moderno.” (Berman 1989, 166-7)
Siegfried Giedion em Space, Time & Architecture. The Growth of a New Tradition escreve que Haussmann foi o primeiro homem a conceber uma grande cidade, como se de um problema técnico se tratasse, permitindo assim a criação de uma capital para milhões de habitantes (Giedion 2008, 773). Tais vias públicas concebidas como artérias de um sistema circulatório urbano “…eram altamente revolucionárias para a vida urbana do século XIX. As novas avenidas permitiram que o tráfego fluísse pelo centro da cidade e avançasse em linha reta, de um extremo ao outro.” (Berman 1989, 165)
A intenção de Haussmann era a de eliminar as habitações miseráveis e abrir espaços livres no meio da escuridão. O empreendimento deitou abaixo bairros inteiros e deslocou milhares de pessoas. A abertura das alamedas representou apenas uma parte do planeamento urbano de Haussmann - a outra grande parte incluía a construção de pontes, esgotos, fornecimento de água, uma rede de parques, mercados, monumentos culturais e a Ópera: “Foram concebidas grandes e majestosas perspetivas, com monumentos erigidos no extremo das avenidas, de modo que cada passeio conduzisse a um clímax dramático.” (Berman 1989, 166)
No texto ‘La Urbanistica Parisina. Haussmann o las Barricadas’, de Walter Benjamin lê-se que a atividade de Haussmann está intimamente ligada ao imperialismo napoleónico e que todas as instituições dominadas pela burguesia encontraram a sua apoteose nos boulevards.
Segundo Benjamin, Haussmann expulsou os parisienses de Paris, e foram esses mesmos que começaram a ter consciência do caracter inumano da nova cidade. Segundo Benjamin, Haussmann chega até a manifestar publicamente ódio em relação à população parisiense desenraizada. É através da subida das rendas que o proletariado é transportado para os subúrbios e os bairros de Paris perdem assim a sua distinta fisionomia e forma-se a cintura vermelha.
Haussmann denomina-se ‘artiste démolisseur’ e vê sempre o seu trabalho como sendo visionário, como sendo uma espécie de chamamento. Benjamin afirma que o verdadeiro objetivo de Haussmann foi o de assegurar a cidade contra uma guerra civil. Queria fazer para sempre impossível a construção de barricadas em Paris - as novas ruas muito largas são mais fáceis de controlar e estabelecem a ligação mais curta rápida entre os quartéis e os bairros operários. Contemporâneos de Haussmann denominam a operação de ‘l’embellissement stratégique’. (Pateta 1997, 383-4)
Para Giedion, o planeamento de Haussmann antecipou em muito o futuro e foi concebido para ser entendido só por gerações ainda por nascer, mas entrou muitas vezes em conflito com os desejos actuais da população: “Haussmann’s work on the incorporation of the banlieue, the suburban zone of Paris, was just such a coup de génie. (…) His intention was to give the great mass of the people a chance to live outside the city.” (Giedion 2008, 773)
Giedion afirma que, na altura ninguém conseguira prever que as largas vias públicas, estendidas ao longo do horizonte, pudessem ser o resultado mais produtivo das despesas públicas e abriria o futuro espaço da vida de Paris.
Para Berman, Haussmann contribuiu para a produção de uma sociedade que exacerba a visão que cada um tem de si próprio - as largas avenidas são uma multidão de olhos, um lugar onde se pode ver e ser visto, onde o mundo privado e o mundo público se mistura incessantemente. O que importa é o que as pessoas têm para exibir nas longas e largas avenidas. O indivíduo já não se pode perder nem desaparecer porque os grandes boulevards não deixam nada por desvendar, e a nova velocidade que se impõe intensifica esse deslumbramento. Berman escreve que os últimos poemas escritos por Baudelaire, aquando da reconstrução de Paris, revelam com muita clareza, que a modernização de qualquer cidade força a modernização da alma dos seus habitantes, tendo uma ressonância profunda na vida de cada um. Ao lado do brilho da modernidade, as ruínas dos velhos bairros amontoam-se no chão. Walter Benjamin nos seus escritos sobre Paris e Baudelaire oscila entre a total imersão do eu moderno na cidade moderna e o total alheamento em relação a ela, mas tenta mostrar que “…todo esse mundo luminoso é decadente, oco, viciado, espiritualmente vazio, opressivo em relação ao proletariado, condenado pela história.” (Berman 1989, 161)
Berman afirma que também os mais pobres querem ter um lugar na luz. Por isso, a vida da cidade moderna revela sobretudo ironias e contradições. As transformações físicas haussmannianas tinham sobretudo como objetivo a retirada da miséria e da escuridão do alcance da visão de todos - mas as grandes avenidas ao serem totalmente abertas não conseguem esconder nada. Para Berman, o brilho das avenidas ilumina os escombros e a vida sombria das pessoas de maneira a que as luzes mais brilhantes continuem a brilhar. A manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no eu moderno. A presença dos pobres na nova cidade lança sem piedade uma sombra sobre a luminosidade dessa mesma cidade. Sob a luz da cidade moderna, a vida parece um privilégio de classe. A avenida obriga cada um a reagir, ou pelo menos a ter uma consciência política. E a cidade moderna revela sobretudo isso o ressoar das contradições dentro do próprio indivíduo. (Berman 1989, 168-9)
A curta-metragem Place d l’Étoile, de Eric Rohmer, feita para o filme Paris vu par… (1965) explora o espaço público como meio primordial da nova cidade planeada por Haussmann. Neste caso específico, Rohmer ao conhecer bem toda a área circundante à Place de l’Étoile e por ter trabalhado no topo dos Champs Élysées, queria mostrar o seu interesse por este espaço aberto e circular.
A Place de l’Étoile é o ponto de encontro de doze grandes avenidas cujo centro é definido pelo imponente Arco do Triunfo (1906-1936). No filme, Rohmer explica que a praça em si, supostamente assinalada como um lugar de prestígio, é uma espécie de terra de ninguém, pois é totalmente ignorada e subestimada por seus transeuntes ativos e apressados que conhecem e percorrem somente o seu perímetro. A cada 50m uma rua tem de ser atravessada. Os semáforos que regularizam o movimento dos carros nas ruas periféricas em nada facilitam a circulação dos peões - resultando assim num desconforto descontínuo somente superada pela idade ou pelo carácter de cada indivíduo. As obras, que desde 1964 constroíem na praça o metro regional, também contribuem para aumentar o problema da circulação automóvel e pedestre.
Ora Jean-Marc, o herói desta história, antigo corredor dos 400m, trabalha como vendedor numa loja de fatos para homem na Avenida Victor Hugo. Todas as manhãs, Jean-Marc apanha o metro para ir para o trabalho. A sua última paragem é L’Étoile. Um dia ao sair da estação de metro e aborrecido por uma mulher ter pisado o seu pé, choca sem querer com um senhor que passa na Place de l’Étoile. Uma desavença aí se inicia até que o senhor colapsa no chão e Jean-Marc com medo foge em corrida, pensado que o senhor está ferido ou até mesmo morto. Durante as semanas seguintes, Jean-Marc prudentemente evita a Place de l’Étoile. Cuidadosamente tenta contornar a praça utilizando as suas ruas periféricas, mas nem sempre é bem sucedido. Mas para seu grande alívio um dia vê o senhor no metro.
A história deste filme depende totalmente da estrutura geométrica da Place de l’Étoile. A sua configuração é capaz de determinar os encontros, o itinerário, os desvios, a corrida, as interrupções que descrevem a história de Jean-Marc.
Por isso Jean-Marc é a figura necessária para estabelecer a ligação entre o espaço físico e o espaço psicológico daquele lugar específico.
Rohmer, a propósito deste filme cita Guy Débord e a sua teoria da Dérive. Debord define a Dérive como o modo experimental que liga o comportamento humano às condições de uma determinada sociedade urbana. Rohmer escreve que todo o ser humano gosta de ter a possibilidade de se deslocar a um lugar através de duas ou mais maneiras diferentes, porque o seu devaneio será sempre capaz de o conduzir até lá. E aqui Rohmer crítica abertamente a vida urbana moderna que ao proibir a divagação, o desvio e o acaso contribui para a destruição de Paris. (Baecque e Herpe 2014, 181)
A cidade moderna de Haussmann trouxe a definitiva cisão entre o humano e a natureza - é o triunfo do artificial esplendoroso sobre o natural, o tecnológico funcionalista sobre o intuitivo, a ordem longa e larga sobre o imprevisível.
«Notre-Dame de Paris», de Victor Hugo, de 1831-32, foi escrito como um grito de alerta contra a degradação do monumento e o risco da sua destruição. A obra deve ser revisitada quando há dias presenciámos o trágico incêndio.
SUBLIME E MAJESTOSA Se a Catedral de Notre-Dame era sublime e majestosa, o jovem Victor Hugo (1802-1885) não podia deixar de se indignar, ao lado do Abbé Gregoire, contra o vandalismo, “perante a degradação e as mutilações de todo o tipo que os homens e a passagem do tempo infligiram a este venerável monumento”. A publicação do romance constituiu o detonador de uma grande campanha, que culminaria em julho de 1845, com a aprovação de uma importante decisão no sentido do restauro e conservação da catedral, cuja concretização se deveu ao arquiteto Eugène Viollet-Le Duc (1814-1879). Victor Hugo escreveu o seu romance quando ainda não tinha trinta anos e foi inspirado por Walter Scott e pelas referências do romantismo. A história concebida pelo romancista situa-se na cidade de Paris, no ano de 1482, e é protagonizada pela própria Catedral e por um enredo centrado em Esmeralda, jovem cigana que dançava na praça fronteira à Catedral de Notre-Dame, no arcediago Claudio Frollo, que se deixa atrair pela beleza da bailarina e em Quasimodo, um homem disforme que vivia na catedral, onde fora abandonado em criança. O arcediago pede a Quasimodo que rapte a jovem, mas Esmeralda é salva por um grupo de soldados, comandado pelo capitão Phoebus de Châteaupers, por quem se deixa envolver amorosamente. Apesar de comprometido com Fleur de Lis, Phoebus fica seduzido pela cigana e marca um encontro para um local recôndito. Claudio Frollo surpreende-os, porém, nesse encontro e mata o capitão, apunhalando-o. Num sórdido processo de chantagem, Esmeralda é acusada de assassinato, mas recusa entregar-se a Frollo, ainda que essa fosse a única forma de escapar à pena capital. No momento terrível da execução, no átrio da catedral, aparece Quasimodo, que também ama a bailarina cigana, tomando-a nos braços e levando-a para dentro do templo, onde estaria protegida, segundo as leis da cidade. Quasimodo passa a noite a cuidar de Esmeralda. Contudo um grupo de amigos de Esmeralda vem libertá-la, forçando a entrada da Catedral. Quasimodo defende sozinho a igreja, com o que dispõe: pedras, barras de ferro, madeira e chumbo derretido. Mas Frollo aproveita-se do tumulto para fugir com Esmeralda, que resiste. Furioso com esta recusa, o arcediago entrega a jovem a uma velha considerada louca, que vivia no "buraco dos ratos". Ao invés de lhe fazer mal, a velha reconhece em Esmeralda a sua própria filha e a poupa-a. Mas esta não consegue desfrutar de uma paz muito longa. Os guardas da cidade encontram-na e encaminham-na novamente para o lugar da execução, na praça da catedral. Do alto da Notre Dame, Quasimodo e Claudio Frollo assistem à execução. Quasimodo, louco de desespero, atira o clérigo do alto da torre e desaparece para sempre. Muito tempo depois, ao ser aberto o ossário de Montfaucon, local onde Esmeralda foi sepultada, foram encontrados dois esqueletos abraçados; um deles, com uma visível deformação...
DEFENDER O PATRIMÓNIO CULTURAL Haveria que preservar o património medieval e daí a escolha da Notre-Dame, sobretudo porque nesse tempo a Catedral estava ameaçada pelo vandalismo e pelos projetos de renovação da cidade. O grande sucesso do livro permitirá lançar a celebridade do seu jovem autor e suscitar a tomada de consciência para a necessidade absoluta do restauro desse património cultural de valor incalculável. Se lermos a literatura desse tempo, fácil é de verificar como Victor Hugo se tornou o grande defensor da Catedral, como coração da cidade de Paris. Michelet disse mesmo que, desejando falar da Notre-Dame, tinha de reconhecer que Victor Hugo definiu uma “marca de leão” para o monumento, a ponto de ninguém mais poder tocar-lhe, já que construiu ao lado da velha catedral uma verdadeira catedral de poesia, “tão firme como os fundamentos da outra, tão alta como as suas torres”. Também Nerval escreveu no incerto ano de 1830: “A Notre-Dame é bem antiga, mas vê-la-emos talvez enterrar Paris, a cidade que a viu nascer”. E imagina as pessoas daqui a mil anos a virem contemplar o monumento, relendo a obra de Hugo. Théophile Gautier (em 1838) em “La Comédie de la Mort” invoca a glória desse lugar que « permite alargar a alma ». E Paul Claudel, em “Ma Conversion” (1913), considera, porém, que Hugo de certo modo tira espiritualidade à Catedral – fazendo dela cenário de um romance cheio de paixões mundanas. Foi na Catedral de Notre-Dame, em lugar que perfeitamente se conhece, que ocorreu a célebre conversão religiosa do poeta, em 25 de dezembro de 1886, com 18 anos, tocado por uma “revelação inefável”. Também Charles Péguy, no célebre poema sobre a Esperança, tão justamente invocado por João Bénard da Costa, enumera os santos padroeiros de Paris esculpidos nos portais da Catedral. Não devendo esquecer-se ainda Louis Aragon, em “Paris 42” e em “Aurélien”, que identifica a Notre-Dame, ela mesma, como “catedral de poesia”.
UMA HISTÓRIA CONTRA A INDIFERENÇA Mas a história da Notre-Dame está cheia de vicissitudes – que começam antes do século XII, quando foi decidido edificá-la, uma vez que está construída num campo com profundas raízes histórico-religiosas, gaulesas, romanas, merovíngias. Sem cuidar duma existência medieval muito rica, lembremo-nos apenas da história recente. Em 1793, em plena Revolução Francesa, vinte oito estátuas representando os reis de Judá, que ornavam a fachada, foram decapitadas. Ainda na Revolução, a Catedral foi fugazmente consagrada como Templo da Razão durante a Convenção, voltando a ter uso religioso no Consulado, após a assinatura em 1801 da Concordata com o Papa Pio VII. Como se vê no célebre quadro de Jacques Louis David, aí tem lugar a sagração de Napoleão como Imperador dos franceses. Mas, sendo um tempo de incertezas, o muito jovem Victor-Hugo em 1825 dirá: “há duas coisas num edifício, o seu uso e a sua beleza: o seu uso pertence ao proprietário; a sua beleza a todos, a vós, a mim, a nós”. E é a partir daqui que empreende uma guerra contra os “demolidores”, que se preparavam para sacrificar essa joia insubstituível. E é neste ponto que Victor-Hugo, à maneira romântica, transforma a Catedral em personagem, tornando-a verdadeiro exemplo de um património comum dos franceses. Com o tempo, viria a ser reconhecida como Património da Humanidade, pela UNESCO – sendo naturalmente Património comum europeu, de acordo com os objetivos da Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea. E o exemplo da Notre-Dame é pioneiro. Na sequência da campanha do jovem Hugo, referência maior do romantismo europeu, Prosper Merimée (1803-1870) é nomeado Inspetor-Geral dos Monumentos Históricos e o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc dirige as obras de restauro e reconstrução da Notre-Dame a partir de 1843, durante a monarquia de julho. As orientações do arquiteto não são isentas de crítica, mas assentam num pensamento baseado na necessidade de valorizar o Património Cultural (que entre nós é partilhado por Gerrett e Herculano). Aumenta o número de gárgulas, com exuberância decorativa, nasce o pináculo de madeira coberta de chumbo, que agora ficou destruído – e define-se um novo cânon para a salvaguarda do património. Mas a relação política da França para com a Catedral vai ser ambígua. É certo que a valorização da Notre-Dame se insere no ambicioso plano urbanístico de Haussmann. Napoleão III casa-se na Catedral em 1853 com Eugénia de Montijo, mas a III República vai ignorar o monumento, que apesar de tudo admira, mas de que desconfia ao mesmo tempo. Mesmo a sociedade laica respeita, contudo, o lugar de memória – que lembra as raízes mais profundas e ricas da identidade nacional. O general Charles De Gaulle na célebre jornada de 26 de agosto de 1944, na libertação de Paris, fez celebrar uma cerimónia religiosa na Notre-Dame, na condição de não ser presidida pelo então Cardeal Arcebispo de Paris, Emmanuel Suhard, dadas as suas simpatias colaboracionistas. De Gaulle e Mitterrand terão as suas exéquias na Catedral de Notre-Dame, o que constitui uma exceção. No caso de François Mitterrand, só as cerimónias oficiais aí tiveram lugar, distinguindo as esferas pública e privada. E Françoise Giroud disse: “houve qualquer coisa de extraordinário no facto de o único discurso pronunciado ao longo desses dias de luto ter sido a homília do Cardeal Lustiger, como se a República não tivesse outros meios para honrar os seus grandes mortos senão o de os confiar à Igreja”. Porque decerto pesou o lugar de memória… Notre-Dame está, assim, bem presente na memória de todos – a sua reconstrução constitui um dever de fidelidade à História e à Cultura…
Guilherme d'Oliveira Martins
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