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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de novembro de 2023


Evocamos um amigo, D. Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), em «A Saga / Fuga de J. B.» a propósito do Encontro de Santiago de Compostela sobre o Património Cultural.


GONZALO, UM AMIGO
Escrevo de Santiago de Compostela onde participo no Congresso Internacional “O Património, uma responsabilidade partilhada”, iniciativa de Hispania Nostra, reflexão sobre o património cultural, encarado não como realidade do passado, mas como fator essencial para a compreensão de uma cultura viva. E nada melhor do que lembrar D. Gonzalo Torrente Ballester, que conheci e que, como José Saramago reconheceu foi um autor digno da estirpe de Cervantes e dos seus Quixote e Alonso Quijano. E recordo Castroforte del Baralla, em uma cidade imaginária, que não vem nos mapas e flutua acima da realidade. José Bastida relata-nos o desaparecimento de uma relíquia, o Corpo Santo. Trata-se de uma verdadeira metáfora sobre cultura, património e memória. A ironia e o picaresco aí estão, entre gritos, vozearia e realidades múltiplas, religiosas e profanas, virtude e pecado, realidade e fantasia. Qualquer cultura viva é, por definição, mestiça. E em Castroforte não existe passado nem futuro, apenas figuras do presente que ilustram mil anos de história. Eis como se põe em diálogo memória e futuro. E J.B. ou José Bastida multiplica-se, graças ao génio de Torrente Ballester, uma vez que o lugar retratado é a imagem da cultura das pedras vivas de Rabelais. E encontramos de tudo um pouco – literatura e mito, sonho e realidade, História e Geografia, psicologia e linguística, lembrança e esquecimento. E a relíquia, o Corpo Santo, simboliza o que importa preservar e defender, como raiz e perenidade, encontro e desencontro. Em torno dela tudo se move, como se nada acontecesse.


A CONVENÇÃO DE FARO
Devo falar de um instrumento de defesa do património, não como abstração, mas como compromisso. A Convenção de Faro de 2005 reconhece o “valor” para a sociedade do património histórico e da cultura, considerados como realidades dinâmicas, resultado de uma dialética entre o que recebemos e o que legamos. Mas os valores não são objetos ideais, são realidades imprevistas. Os fenómenos culturais participam dessa qualidade, não cabendo em “modelos estáticos” ou repetições, devendo, sim, inserir-se no horizonte da “experiência histórica”. Perante uma Convenção com clara referência universalista, como a UNESCO fez relativamente à diversidade cultural e ao património imaterial, torna-se indispensável pôr no centro das preocupações deste instrumento jurídico uma teia complexa de direitos e deveres, de garantias e responsabilidades, de instrumentos de acompanhamento e avaliação, que possam fazer convergir não só a salvaguarda concreta, mas também a proteção do património histórico e cultural no âmbito de uma cultura aberta e universalista, de direitos e deveres fundamentais.


Compreende-se, assim, a novidade do objetivo do Conselho da Europa “de realizar uma união mais estreita entre os seus membros a fim de salvaguardar e promover os ideais e princípios baseados no respeito dos direitos do homem, da democracia e do Estado de direito, que constituem o seu património comum”. Deste modo se entende a “necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural” e de salientar “o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida”. E reconhece-se que cada pessoa “tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural. Com vista “a uma maior sinergia de competências entre todos os agentes públicos, institucionais e privados interessados” reconhece-se “que o direito ao património cultural é inerente ao direito de participar na vida cultural, tal como definido na Declaração Universal dos Direitos do Homem”; “uma responsabilidade individual e coletiva perante o património cultural”; e que a “preservação do património cultural e a sua utilização sustentável têm por finalidade o desenvolvimento humano e a qualidade de vida”. Daí a necessidade de reforçar o “papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural”.  


MOBILIZAR VONTADES… 
Trata-se de mobilizar vontades, através de um instrumento com força própria, no sentido de tornar o património cultural um fator de paz e de cooperação, ao contrário do que muitas vezes aconteceu no passado, em que o património cultural e as diferenças culturais estiveram, ou estão, no epicentro dos conflitos. Um templo com diversas referências históricas e culturais, religiosas e sociais tem de ser visto como um ponto de encontro e de memória, facto que só enriquece a sua atual utilização, religiosa ou profana, em nome do respeito e da preservação do espírito dos lugares, segundo uma cultura de paz. Assim, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunho e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo. O património cultural, material e imaterial, surge, nesta lógica, como o primeiro recurso em prol da dignidade da pessoa humana, de diversidade cultural e de desenvolvimento durável. A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” (longe dos nacionalismos) tem de ser vista como elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e os elos que se reportam a uma história viva, simbolizada e representada por uma herança (heritage), pelo património material e imaterial e pela capacidade de tornar presente essa invocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e de várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, esta ideia visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. O mesmo bem patrimonial está ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua história referências muito diversas. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Mas caberá à sociedade de cidadãos livres encontrar o denominador comum, que permita evitar que uma identidade, tradição ou monumento sejam fontes de conflito. Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado de conflito e a procura de um consenso de valores e ideais no âmbito da cultura da paz. E a saga e fuga de J.B., como caleidoscópio, poderão ajudar.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A CIDADE VELHA…

  


O programa “Visita Guiada” da RTP-2 de Paula Moura Pinheiro regressou, partindo, em boa hora, até à Ilha de Santiago, à Cidade Velha da Ribeira Grande em Cabo Verde. Liga-me uma relação de especial afeto a esta cidade. Acompanhei com muito gosto e entusiasmo a sua classificação pela UNESCO como património da humanidade em junho de 2009 e não esqueço o empenhamento pessoal do Presidente Pedro Pires, o entusiasmo de Mário Soares, que depôs formalmente a favor dessa classificação, do mesmo modo que a defesa dessa causa pelo antigo Diretor-Geral da UNESCO Federico Mayor. Lembro ainda o papel ativo desempenhado pela Embaixadora Graça Andresen Guimarães, então representante de Portugal na Praia, bem como o incansável papel desempenhado pelo grande amigo Conselheiro José Carlos Delgado, meu antigo aluno, então na presidência do Tribunal de Contas de Cabo Verde. E desejo que as duas “visitas guiadas” agora apresentadas sejam oportunidade para aprofundar a qualidade patrimonial da Cidade Velha.


Os testemunhos do arqueólogo André Teixeira e do meu amigo António Correia e Silva fizeram luz sobre a importância fundamental da Ribeira Grande como placa giratória das navegações do Atlântico, o último grande oceano a ser conhecido pela humanidade. E a Cidade Velha foi a primeira fundada por europeus ao sul do Saara, dois anos após a morte do Infante D. Henrique (1462), a quem tinha sido atribuído por D. Duarte o senhorio da ilha. A abundância de água e as facilidades para a agricultura na foz da Ribeira Grande foram determinantes na escolha do lugar para centro do povoamento, servindo depois de apoio às rotas marítimas, no abastecimento de água e de frescos e na possibilidade de se efetuarem reparações dos navios. O conjunto monumental da Cidade Velha envolve o altaneiro Forte de S. Filipe, base do sistema defensivo da cidade; a ruína da Sé Catedral construída, sob as ordens de Frei Francisco Cruz, terceiro bispo de Cabo Verde, entre 1556 e 1700, mas com vida curta, já que foi destruída pelo ataque do corsário francês Jacques Cassard; as ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída depois da chegada dos primeiros colonos e ainda a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, do século XV, onde pregou o Padre António Vieira em 1652, que se admirou com a qualidade artística encontrada.


Apesar de ter deixado de ser capital em 1769 em benefício da Praia, nota-se ainda na Cidade a estrutura da urbe antiga – com o Largo do Pelourinho, ponto de encontro de quarteirões irregulares, mas também base de um tecido urbano de desenho claro nas Ruas da Banana e da Carreira, abrindo para os bairros de S. Pedro e S. Brás, com as ruas da Horta Velha e Direita da Cidade. A feitoria de Santiago foi até à fixação em S. Domingos do Cacheu na Costa da Guiné em fins do século XVIII a feitoria portuguesa de África, sendo escala das navegações do Atlântico, porto de abastecimento alimentar e da navegação, reexportador das mercadorias africanas com destino à Península Ibérica e às Índias de Castela. Daí a presença de mercadores andaluzes ao lado dos portugueses, numa partilha ibérica. A evolução cultural e económica é de um grande interesse, pela constituição de uma sociedade com uma rica marca própria, evidenciada na evolução da língua portuguesa e dos crioulos, sendo levados a crer que os africanos se serviram do português, embora o tenham adaptado a uma estrutura gramatical próxima das suas línguas de origem. O híbrido cultural que encontramos tem, assim, uma configuração múltipla, não só fruto do encontro entre o branco e o escravo, mas também de africanos de diferentes origens (balantas, fulas, mandingas, bijagós), marcados pela procura de uma identidade própria. Temas apaixonantes.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

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  De 24 a 30 de abril de 2023

 

As notícias da guerra da Ucrânia sobre o património cultural
são motivo de grande preocupação.

 

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EFEITOS DEVASTADORES DA GUERRA

Cerca de 250 monumentos já foram ou completamente destruídos ou danificados desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022. Segundo a UNESCO, verificaram-se graves danos nos locais de valor cultural do país, correspondendo os prejuízos a estragos irreparáveis. A diretora-geral Audrey Azoulay, estima que serão necessários 6,3 mil milhões de euros para recuperar os valores culturais materiais afetados na Ucrânia se se considerarem os níveis de qualidade próximos dos que existiam antes do início do conflito. Nesse sentido, a diretora-geral manifestou disponibilidade da organização para ajudar as autoridades ucranianas a elaborar um plano de reconstrução nacional para o património cultural do Estado soberano que é a Ucrânia. Deve ficar claro que os objetivos essenciais da UNESCO se relacionam com a Cultura da Paz, que constitui um fator fundamental para a salvaguarda da Carta das Nações Unidas e das finalidades originais da organização, que permitam realizar progressos efetivos nos domínios da educação, da ciência, da cultura e da livre circulação de ideias. Trata-se de contribuir para o desenvolvimento económico e social das nações e para a realização de uma cultura centrada na dignidade humana, em especial nos países e regiões em dificuldades, lembrando em especial desde as situações extremas de guerra às da pobreza, fome e destruição. Se lembrarmos a fórmula do preâmbulo do Ato Constitutivo da UNESCO, temos em vista o objetivo da “prosperidade comum da humanidade”. A construção, a prevenção e a manutenção da paz, bem como a proteção dos direitos humanos, têm, assim, uma essencial componente cultural, que não pode ser menosprezada. Por isso, segundo os fundadores da UNESCO, a manutenção da paz deveria ser uma obrigação superior a todas as outras, à qual se deveria subordinar toda a sua ação. Daí a importância fundamental da cooperação internacional, da compreensão mútua entre as nações, da solidariedade humana, da educação orientada para a liberdade, a igualdade e a justiça, bem como da ciência centrada no saber e na experiência, no saber fazer e da cultura assente no respeito dos outros e das diferenças, no exemplo e no cuidado.

 

A UNESCO E A GUERRA

A Ucrânia conta atualmente com sete bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão diretamente ameaçados, devendo referir-se, como temos lembrado, a Catedral de Santa Sofia de Kiev, o conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk, símbolos da Nova Constantinopla, de um valor cultural e espiritual incalculável (inscrito em 1990); bem como o conjunto e a malha urbana medieval do Centro Histórico de Lviv, além das construções barrocas da cidade (inscrito em 1998 e 2008); dezasseis Tserkvas de madeira na região dos Cárpatos, em territórios da Polónia e Ucrânia, templos da igreja ortodoxa tradicional (inscritos em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa do Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que corresponde aos restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola animado pelos povos grego, romano e bizantino com referências até ao século XV (inscrito em 2013), além do Centro Histórico de Odessa (inscrito com caráter de urgência em 2023); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). No caso de Odessa, foi seguido um procedimento excecional, que permitiu a integração em janeiro de 2023 na lista da UNESCO, tendo a diretora geral afirmado: “Odessa, cidade livre, cidade-mundo, porto lendário que marcou o cinema, a literatura, as artes, passa a estar colocado sob a proteção reforçada da comunidade internacional”. Perante a situação de guerra, esta inscrição corresponde à determinação da UNESCO no sentido de garantir que a cidade, afetada por muitos distúrbios mundiais, seja preservada de novas destruições. Paralelamente ao processo de inscrição, a UNESCO pôs em prática medidas de urgência visando assegurar a reparação dos danos infligidos no Museu de Belas-Artes de Odessa e no Museu de Arte Moderna. A organização forneceu os equipamentos necessários para inventariação de cerca de mil obras e da coleção documental dos Arquivos de Estado de Odessa, além de material de proteção para as obras ao ar livre. Estas medidas fazem parte de uma ação global da UNESCO na Ucrânia que já mobilizou 18 milhões de dólares em favor da educação, cultura, ciência e comunicação. Recorde-se que a Ucrânia é membro do Conselho da Europa e é signatária da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural para a sociedade contemporânea, assinada em Faro em 2005, entrada em vigor em junho de 2011. A Ucrânia assinou a Convenção em outubro de 2007, tendo sido a mesma ratificada em janeiro de 2014 e entrado em vigor em maio de 2014.

 

PATRIMÓNIO EM PERIGO

Considerando o património em perigo ou parcialmente afetado, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev e a Catedral da Transfiguração do século XI. Há a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, a noroeste de Kiev, com 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista popular ucraniana, admirada por Pablo Picasso. Algumas obras deste acervo foram salvas por um cidadão local, com risco da própria vida. Representantes da UNESCO e autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens ameaçados na zona do conflito, segundo a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na Haia (1954). O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM, ICOMOS, Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários, com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. Invocar a situação dramática em que nos encontramos na Europa, num momento de guerra, de total incerteza, que podemos designar, como faz o Papa Francisco, como uma terceira guerra mundial em pedaços, significa pôr sobre a mesa os valores éticos que chamem a cultura, a arte e a humanidade à ordem do dia enquanto memória e património cultural como realidades vivas. Há demasiada indiferença, muito egoísmo e esquecimento. Precisamos de estabelecer comunicações entre os seres humanos, uma circulação de culturas e a possibilidade de imaginar, ou seja, de ver longe e largo, em nome da paz.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XIX. FREI DINIS, CARLOS E JOANINHA

 

Em busca de fantasmas da nossa terra, não poderiam faltar num folhetim como este, os paradigmas que ansiamos encontrar. Foi Garrett quem nos deixou o melhor modelo de uma narrativa onde se encontram amores românticos, uma viagem e a defesa de um património único. Eis a janela da menina dos rouxinóis, da Joaninha dos olhos verdes. “Entrámos a porta da antiga cidadela. – Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos: é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo, é ao pé da famosa e histórica Igreja de Santa Maria da Alcáçova. – Há de custar a achar em tanta confusão”…

Almeida Garrett deu-nos conta da falta de cuidado em que encontrou na histórica cidade de Santarém, quando foi ao encontro de seu amigo Passos Manuel. Falava-nos de “pardieiros e entulhos”, que hoje felizmente deram lugar a uma cidade cuidada e limpa. E assim apelava para que não se deixasse ao abandono um legado histórico sagrado. Mas o grande mestre romântico faz o contraste entre as pedras que encontrou decaídas, a honradez das pedras vivas e a formosura do panorama e da paisagem. Nós falamos de pedras no meio do caminho.

“Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos”. Infelizmente, hoje, há secura. Mas então eram o “vale aprazível e sereno” e “o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem”… A seca prolongada deixa-nos hoje severas preocupações, mas aquele glorioso momento foi mais forte que tudo, em nome de uma memória histórica inesquecível.

Que é o património senão vida vivida? Pedro Canavarro é o nosso anfitrião inigualável, sempre a guardar a presença silenciosa de Garrett e de Passos num roteiro da democracia no rico Ribatejo – desde as Cortes de Santarém de 1331, que ilustram a democracia na formação de Portugal e a aclamação em 1580 de D. António Prior do Crato até D. Pedro IV em vésperas de Évora-Monte, sem esquecer Sá da Bandeira, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Oliveira Marreca, Anselmo Braancamp Freire, António Ginestal Machado, José Relvas, Humberto Delgado, Salgueiro Maia…

Para as escolas tem de haver a determinação em criar para os mais jovens o gosto do estudo rigoroso, o culto e o interesse pelo património – seja o monumento antigo, seja a paisagem ou o jardim, seja o cuidado com o uso da língua materna, seja o trabalho do artesão, seja a qualidade na tradição culinária. Temos de cuidar do património – prevenindo-nos contra o descuido, delineando e estudando caminhos que nos permitam conhecer, recordar, alertar e salvaguardar. E eis que o mistério de Frei Dinis se nos revela na paternidade de Carlos. E o cenário da guerra civil lembra-nos o confronto entre a tradição e a modernidade, pleno de incompreensões.

Joaninha, a menina dos rouxinóis e dos olhos verdes, simboliza a visão do Portugal profundo e antigo, que valoriza as raízes históricas. Francisca, a avó de Joaninha, mostra-nos como o tempo andou depressa demais, longe da compreensão das mudanças. Frei Dinis ficou-se no tempo passado e irreal não sendo capaz de justificar-se sem uma revisão de valores e de perspetivas. A morte de Joaninha e a fuga de Carlos para tornar-se barão, representa a própria crise de valores em que o apego à materialidade e ao imediatismo acaba por fechar um ciclo de mutações de caráter incerto e instável. Eis um romance puro de fantasmas. Carlos deambula sonâmbulo, o exemplo de Joaninha é a referência inesquecível e Frei Dinis esconde-se da história.

Agostinho de Morais

 

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de março a 3 de abril de 2022.


A guerra da Ucrânia está a pôr em grave perigo um património cultural de valor incalculável, que aqui referimos. É a humanidade que está em causa, uma vez que a memória histórica é a memória das pessoas e das culturas.

 


CULTURA EM PERIGO! 
Quando o património cultural está em perigo é a própria humanidade a estar em causa. E temos insistido em que não falamos de pedras mortas, mas de pessoas, como pedras vivas, na expressão do “nosso” António Sérgio, mas também de Rabelais. Longe do entendimento tradicional de um património visto como referência do passado, falamos de uma realidade viva, que abrange transversalmente todos os domínios dos direitos humanos. Quando a Diretora-Geral da UNESCO Audrey Azoulay lançou um dramático alerta a propósito dos bombardeamentos indiscriminados a que temos assistido nas últimas semanas na Ucrânia, afirmou expressamente: “Devemos salvaguardar este património cultural, como testemunho do passado mas também como vetor de paz para o futuro, que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar para as gerações futuras. É também para proteger o futuro que as instituições de ensino devem ser consideradas santuários”.


De facto, o apelo envolve os monumentos históricos, mas também as escolas e as instituições da ciência e da cultura. Lembramo-nos do hediondo assassinato de Khaled Al Assad, estudioso e guardião de Palmira, que demonstra a ligação íntima que se estabelece naturalmente entre a defesa dos direitos das pessoas concretas e a salvaguarda da sua memória cultural e histórica. Como se sabe, quando se começam por queimar livros ou a destruir a memória humana, acaba-se por matar as próprias pessoas. No fundo, a criação cultural, a sua preservação e a sua comunicação têm a ver com a essência do ser humano. O avanço na UNESCO e no Conselho da Europa relativamente aos conceitos de património cultural e de direitos culturais tem contribuído, de facto, para ligar os direitos da Declaração Universal de 1948 à vida e à dignidade humana no sentido mais essencial. O caso da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005) é bem demonstrativo disso mesmo. Por isso, o património cultural envolve direitos e deveres, não retrospetivos mas prospetivos, abrangendo o presente e o futuro, de modo a acrescentarmos valor ao que recebemos das gerações que nos antecederam. E o que está hoje em causa no tocante à necessidade de respeitar a Carta das Nações Unidas é a defesa de uma verdadeira cultura de paz e de respeito mútuo. João XXIII disse-o claramente na Encíclica “Pacem in Terris”.


DIREITO PATRIMONIAL COMO DIREITO HUMANO
Quando um tirano viola claramente o direito internacional comummente aceite, e até se propõe erradicar da face da terra um Estado soberano e um povo, de um modo unilateral, recusando o Direito e a própria História, compreende-se que a invocação de direitos culturais assuma uma importância insofismável. Falamos dos fundamentos dos valores éticos, morais e jurídicos.  Julgar que se pode tornar a Carta das Nações Unidas letra morta, esquecendo garantias essenciais como o primado da lei, o multilateralismo, a estabilidade de fronteiras, a soberania legitima, ou o direito de fazer a paz e a guerra são gravíssimos atentados de natureza humanitária, que tocam a essência da memória cultural dos povos e da partilha de um património comum da humanidade. Desde 1945 que a dúvida se não punha, e qualquer incerteza neste domínio a todos prejudicará, uma vez que o que os direitos protegem, os direitos garantem; o que os deveres salvaguardam, os deveres consolidam. O primado do direito a todos interessa, porque assenta no respeito mútuo.


A Ucrânia conta atualmente com diversos bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão, agora, diretamente ameaçados: a Catedral de Santa Sofia de Kiev, conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk,, símbolo da Nova Constantinopla, de um valor espiritual e unificador incalculável (inscrito em 1990); o Conjunto do Centro Histórico de Lviv, onde que se encontra praticamente intacta a topografia urbana medieval, a que se acrescentam as construções barrocas e posteriores (inscrito em 1998 e 2008); Dezasseis Tserkvas de madeira da região dos Cárpatos, nos territórios da Polónia e Ucrânia, trata-se de templos da igreja ortodoxa tradicional (inscrito em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa mantida pelo Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que apresenta os restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola envolvendo relações entre os impérios grego, romano, bizantino com referências atá ao século XV (inscrito em 2013); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). Além destes casos, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev, agora sob ameaça direta, com referência à célebre Catedral da Transfiguração do século XI. Há já a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, localidade a noroeste de Kiev. A instituição apresentava 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista fortemente influenciada pelo folclore ucraniano, elogiada por Pablo Picasso, pelo seu caráter percursor. Segundo a imprensa local poucas obras terão sido salvas por um cidadão local, que enfrentou sozinho as chamas. Note-se que a grave situação no terreno levou alguns especialistas, a duvidarem do efeito positivo do pedido de proteção, com receio de atrair atenções…


ESCUDOS AZUIS PARA PROTEÇÃO
Entretanto, representantes da UNESCO e das autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens patrimoniais ameaçados na zona do conflito. Além dos casos referidos, foi também assinalado o centro da cidade e o porto de Odessa. Esta prevenção insere-se na aplicação da Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na cidade de Haia em 14 de maio de 1954. O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM (Conselho Internacional dos Museus), ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários e Instituições com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. O acompanhamento deste tema torna-se neste momento melindroso em virtude de o Comité do Património Mundial ser presidido por Alexander Kuznetsov, de nacionalidade russa, estando prevista em junho uma reunião na cidade de Kazan do referido Comité, o que é fortemente contestado. O fundamental é deixar claro que é motivo muito sério de preocupação por parte das organizações multilaterais o facto de haver na comunidade internacional dificuldade evidente em fazer prevalecer a perspetiva dos direitos humanos, dos valores democráticos e a ligação efetiva destes ao desenvolvimento humano e à cultura.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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  De 27 de setembro a 3 de outubro de 2021

 

Quando hoje nos deparamos com a capa da revista “O Tempo e o Modo”, nascida em janeiro de 1963, encontramos, ao lado do fundador António Alçada Baptista, os nomes de dois futuros Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

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CULTURA COMO MEIO NATURAL

De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.

Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.

 

LIBERDADE AUTÊNTICA

Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.

 

O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA

“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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   De 9 a 15 de novembro de 2020

 

Orhan Pamuk diz-nos que o património cultural se assemelha ao amor, enquanto atenção profunda e compaixão sentida.

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«O MUSEU DA INOCÊNCIA»

“Enquanto passearem de vitrina em vitrina e de caixa em caixa, observando todos estes objetos”, compreenderão como o escritor pôde ficar a olhar para a protagonista do romance durante um jantar ao longo de oito anos - é Orhan Pamuk quem o diz em relação ao seu “O Museu da Inocência”. O amor é como o património cultural, uma atenção profunda e uma compaixão sentida. Na sequência do romance, Pamuk criou um museu em Istambul de pequenos e diversos objetos que se relaciona com o encontro entre os afetos e as lembranças da vida quotidiana. De facto, “O Museu da Inocência” tem a ver com um amor total, persistente, sereno, possível em cada momento e depois tornado impossível. Podemos dizer muito sobre o património cultural, mas ninguém o compreenderá se não o considerarmos uma realidade viva. E eis-nos perante a melhor metáfora sobre o património, a herança e a memória. A identidade não pode ser um quarto escuro, um lugar sem janelas para o mundo – como muitos pretendem. Porque o autocomprazimento esquece, afinal, que só nos compreendemos se entendermos que o outro é a outra metade de nós, como afirmou o Padre Matteo Ricci. Os nacionalismos esquecem, contudo, a essência do patriotismo, que é aberto e disponível, capaz de aceitar as diferenças e de as tornar fatores de enriquecimento pessoal e mútuo. Patriotismo significa afinal amar as raízes e dar-lhes asas para o futuro, a partir da compreensão do horizonte como limite. “Porque nada pode ser tão surpreendente como a vida. Exceto a escrita. Exceto a escrita, sim, evidentemente, exceto a escrita que é a única consolação”. O património como um museu ou como uma tradição, é um lugar de consolação, também porque é onde encontramos objetos ou referências antigas ou novas que amamos, mas sobretudo porque perdemos a noção de tempo. Falo de um tempo fugaz e imediato, porque ganhamos o conceito de duração. E desejamos também a procura melancólica do diálogo entre hábitos, afetos, tradições e culturas e isso leva-nos a considerar hoje o património cultural como uma permanente metamorfose.

 

CELEBRAR A MEMÓRIA

Devo dizer-vos que aquele tempo que passei em Estrasburgo com os meus colegas na feitura da Convenção de Faro de 2005 correspondeu a mais do que um exercício normativo, mas a uma verdadeira interrogação sobre o futuro, quando estava bem fresca a memória de uma guerra como a dos Balcãs. Parece um paradoxo tratar do património cultural e pensar no futuro, mas não há contradição alguma nisso, uma vez que é a interrogação sobre a eternidade que está em causa. São as marcas da humanidade com todas as suas diferenças que vamos encontrando. Como definir, afinal, o património como realidade comum e fator de paz? Foi já há quinze anos e parece que foi ontem – e em cada momento que reconhecemos a atualidade do documento (a Convenção Quadro) podemos perceber que as dificuldades que sentimos e tivemos foram positivas, uma vez que permitiram anteciparmos, prevenirmos, corrigirmos e superarmos a tentação da obra fechada. A Convenção designa-se como quadro porque lança um campo novo e é uma obra aberta que recusa, porém, o aleatório, visando reconhecer um elo que torne a humanidade e as humanidades fatores de emancipação e de justiça – distinguindo a “excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos”, no dizer de George Steiner. Mas se falo de obra aberta, não esqueço a compreensão dos limites e a exigência permanente de uma aprendizagem que permita a troca de conhecimentos e a ligação entre exemplo e experiência… Sempre com os limites do horizonte presentes… Deparámo-nos, porém, com a desconfiança de alguns relativamente à ideia de comunidade, e daí a nossa preocupação de salvaguardar a definição do Património cultural como “conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução”. Nesta perspetiva, “inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo. Isto, enquanto “uma comunidade patrimonial é composta por pessoas que valorizam determinados aspetos do património cultural, que desejam, através de iniciativa pública, manter e transmitir a gerações futuras”. Partimos da singularidade e reconhecemos a liberdade como valor primeiro que nos leva à dignidade, ao bem comum, a fraternidade e à justiça.

 

CULTURA E PATRIMÓNIO

Estão na ordem do dia o património material e imaterial, a natureza, a paisagem, a tecnologia e o património digital, que apenas têm pleno sentido e fecunda virtualidade se se ligarem à criação contemporânea e se forem oportunidade de direitos e responsabilidades. O Ano Europeu do Património Cultural 2018 pôde pôr as escolas, as comunidades educativas em diálogo, sempre escolhendo o próximo e o mais distante, a nossa terra e a terra dos outros que nos contemplam. E agora, nesta tremenda pandemia, percebemos melhor o valor da cultura, que corresponde à compreensão do essencial, devendo preservar o cuidado do que é permanente. Quem há um ano pensaria chegarmos onde chegámos – com um choque entre o que julgávamos elementar e o que se tornou mais raro. E que podemos concluir? Que a liberdade exige que se revalorize a cultura e que aquilo que tem mais valor é exatamente essa arte que não tem preço, a começar na vida. A reconstrução económica obriga a que a cultura, como fator de tomada de consciência da liberdade, ponha a economia ao serviço das pessoas. O sentido de responsabilidade exige-nos que sejamos capazes de colocar um dique numa pandemia descontrolada. Isso obriga a verdade, vontade, resistência e recusa da facilidade. Temos de saber que o domínio de nós mesmos é a única maneira de recuperarmos a liberdade, protegendo-nos mutuamente – e esse é um desafio cultural. A maturidade significa sermos capazes de concentrar esforços e não de apostar na ilusão. Património cultural significa sermos nós, compreendendo os outros e fazendo da autonomia força e complementaridade. A cultura tornou-se mais importante como sinal de criatividade e apelo de justiça. E desejam uma ilustração nesta mágica Convenção de Faro do que falamos, quando falamos de património cultural como realidade viva? Veja-se como o “Guia de Portugal” de boa memória fala das nossas chaminés algarvias, símbolos da nossa especificidade: “canudos, caixinhas perfuradas, espigueiros, coruchéus, minaretes, zimbórios, agulheiros, chapéus de bico, turbantes, numa exuberância decorativa que revela a persistência do gosto e da tradição mouriscas e a intenção deliberada de fazer diferente, caprichando cada qual na fantasia mais pródiga mais imaginosamente sugestiva”… Aqui se encontram singularidade, memória e criação.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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  De 26 de outubro a 1 de novembro

 

Maria Aliete Galhoz é uma referência fundamental na cultura portuguesa, para quem a cultura era uma só, apesar das cambiantes erudita e popular.

 

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SURPRESA E DESLUMBRAMENTO

Toda a vida ouvi falar de Maria Aliete. Era da mesma geração e conterrânea de minha Mãe. As referências e a admiração foram sempre indiscutíveis e uma constante. E com o tempo fui seguindo o seu percurso de professora, de investigadora, de referência fundamental da cultura portuguesa, no sentido mais amplo. Se foi das primeiras a desvendar o lado menos conhecido de Fernando Pessoa, em especial com “O Livro do Desassossego”, cuja revelação se deve ao trabalho minucioso da infatigável estudiosa, com Teresa Sobral Cunha, na equipa de Jacinto do Prado Coelho, também foi e é uma referência essencial na descoberta da cultura popular, com fantásticas revelações, que nos permitem compreender as raízes da dimensão meridional da nossa identidade. De facto, ao lermos a interpretação que foi fazendo de um material riquíssimo recolhido na tradição oral algarvia, facilmente percebemos como a cultura portuguesa que herdámos e continuamos a construir se foi fazendo no continente em curiosos movimentos das gentes e das tradições, de norte para sul, de sul para norte, e internamente em trocas complexas, fruto dos movimentos migratórios entre regiões diversas e de uma rica oralidade, numa sociedade com muito analfabetismo. Há dias, trocando mensagens com Lídia Jorge, partilhámos a grande admiração por Maria Aliete Farinho das Dores Galhoz (dela vos falo), e considerámos ser essencial manter viva a sua memória, não como mera recordação de quem foi - e isso é indispensável para quem, como nós a conheceu e admira -, mas por fidelidade ao trabalho que lançou e fez, nos vários domínios em que se empenhou, para que não se perca e para que continue, em nome dessa simbiose necessária entre a cultura popular e a cultura dita erudita. Em bom rigor, as duas culturas fazem parte de uma mesma realidade, mas só seguindo a orientação que a investigadora adotou podemos enriquecer o património cultural, como realidade viva. De facto, quando aprofundamos o conhecimento do património imaterial, as tradições, os falares, as crenças, as artes, as estórias, é que podemos entender melhor o conjunto do património, da herança e da memória. Quando saiu a primeira edição de O Dia dos Prodígios logo se notou a presença forte dessa oralidade algarvia, palavrosa e criativa. E a razão de ser dessa mágica criatividade está muito explicada no que Maria Aliete foi estudando e investigando. Não esqueço, de muito pequeno, ouvir as estórias mirabolantes de lobisomens aparecidos nas encruzilhadas dos caminhos no breu da noite, dos fantasmas aparecidos e desaparecidos, e das mouras encantadas… E se isto assim era na memória letrada de meu avô Mateus, também o era nas canções e toadas transmitidas por quem não sabia ler nem escrever, mas tinha em si uma reserva literária incomensurável. As mulheres, enquanto faziam empreita de esparto ou de palma, faziam gala em praticar o cancioneiro popular, com os inevitáveis versos-bordão e muita ironia e escárnio… A poesia de António Aleixo está impregnada dessa influência. Muitas narrativas populares misturavam invariavelmente a verdade e o sonho, a realidade e a imaginação. E quando estudamos a rica história algarvia descobrimos a verosimilhança de muitas referências reais, desde a memória moçárabe e da presença da cultura e poesia em língua árabe, até à lembrança da presença dos piratas, vindos do norte, mas também do Mediterrâneo, numa costa vulnerável e plena de inesperados sortilégios.

 

CULTURA ERUDITA E POPULAR

Insistindo na compreensão da cultura popular, Maria Aliete Galhoz considerava que a ideia de um Cancioneiro ajuda a proteger o “perfil ecológico da ecúmena”, ou seja, da grande casa que habitamos: a Terra. E assim “todo o cancioneiro popular é coerente na sua expressão total da natureza do homem integrado no Cosmos, relacionado numa sociedade, confrontado consigo mesmo”. O trabalho partilhado com Idália Farinho Custódio no caso do Cancioneiro Popular vale pela ligação entre a tradição oral (como acontecia na antiga Grécia com os aedos) e a compreensão etnográfica, antropológica e historiográfica de uma das regiões mais ricas de Portugal no campo da memória cultural. Na linha de Ataíde Oliveira e Estácio da Veiga, permito-me ainda referir o trabalho de José Ruivinho Brasão que tem sido fundamental nesta procura da riqueza cultural de uma verdadeira encruzilhada de influências, num cadinho inesgotável de identidades e diferenças. Este trabalho baseia-se numa lição muito fecunda em que nos é dito que deveremos aproveitar os ensinamentos da tradição que nos podem ajudar a mudar de vida – num sentido de valorizar mais o ser, em relação ao ter, e de praticar a existência simples, o contacto com a natureza viva, e a procura da natureza das palavras, dos afetos e menos das aparências – “Não há luz como a do sol / nem água como a da chuva, / nem pão como o do trigo / nem vinho como o da uva”… Lídia Jorge fala de “uma sombra luminosa, muito amada” – e recorda Maria Aliete “passeando na Praia dos Olhos de Água, com um barrete às riscas, era ela então muito jovem. E mais tarde, já nos anos 60, vejo-a no mesmo areal, levando um pequeno cesto no braço. Dentro desse cesto, guardava umas tiras de papel que decifrava” (cf. JL, 7 a 20 de outubro de 2020). Sim, essa é a verdade. Não há que ter dúvidas. Tenho, na distância, a mesma memória de uma menina muito jovem, célebre por lidar com a melhor literatura, de uma investigadora prestigiada, a revelar um Fernando Pessoa que não se suspeitava que existisse – novo semi-ortónimo, para além dos heterónimos. Isto, para não falar de Mário de Sá Carneiro ou José Régio e da sua própria poesia, em Poeta Pobre (1960), Não choreis meus olhos (1971) ou em Poemas em Rosas (1985). E Luiz Fagundes Duarte tem razão ao afirmar que, nos estudos pessoanos, Maria Aliete Galhoz veio introduzir um novo paradigma: “a obra de um autor é aquela que ele efetivamente escreveu, e tal como a fez: é solidária na sua variedade com a unidade do autor (Campos, Caeiro e Reis são heterónimos, mas todos eles são Pessoa) e, num autor de grande envergadura, como é o caso de Pessoa, é tão válida a obra que ele deu por terminada e que publicou, como aquela que, por qualquer razão, ele entendeu não publicar” (Ibidem.). De facto, Maria Aliete Galhoz foi em Portugal a primeira pessoa a entender o trabalho filológico aplicado aos textos modernos – transmitindo a interpretação dos textos aos leitores e estudiosos, de forma clara, persistente e sempre disponível para repensar o sentido das palavras. E não esqueço a dedicatória de amizade que me enviou quando na Edição crítica das obras de Fernando Pessoa publicou Rubaiyat. Como disse da sua frequência da Biblioteca Nacional, a experiência que mais a entusiasmava era “sempre a surpresa e o deslumbramento”, como em Fernando Pessoa, “poeta da fulguração, do ‘encontro’ de um fulcro de poema à altura dessa primeira fulguração: tenteando, riscando, optando, retomando e, ao fim, a impecabilidade do conseguido”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

O PATRIMÓNIO CULTURAL COMO MAIS-VALIA…


Nos anos oitenta do século XX, a França criou as Jornadas de Portas Abertas dos monumentos históricos que o Conselho da Europa adotou com o apoio da União Europeia em 1991 como Jornada Europeias do Património, que Portugal coordenou no início dos anos 2000 graças a Helena Vaz da Silva no Centro Nacional de Cultura. Este ano o tema é “Património e Educação – Aprender para a Vida” com os objetivos de fazer conhecer melhor a riqueza e a diversidade culturais da Europa, suscitar o interesse pelo património cultural, lutar contra o fechamento e a xenofobia e encorajar a abertura ao outro e a outras culturas e informar os cidadãos e a sociedade sobre a necessidade de proteger o património cultural como realidade viva – de acordo com a Convenção Cultural Europeia, assinada em Paris a 19 de dezembro de 1954 e hoje bem viva na Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea assinada em Outubro de 2005 em Portugal. Cada presente reconstrói o passado histórico como sinal perene da cultura e da dignidade humana. Está em causa não a invocação do passado, mas a compreensão da memória como sinal de humanidade e de aprendizagem, enquanto emancipação e desenvolvimento.

A mais antiga Convenção sobre proteção de monumentos refere-se a conflitos armados. De facto, a Conferência Internacional da Paz, realizada em Haia em 1899, estabelece acordos ou convenções sobre a resolução pacífica de conflitos internacionais, dispondo que em caso de “cercos e bombardeamentos” devem ser “tomadas todas as medidas necessárias para poupar os edifícios dedicados à religião, à arte, à ciência, à assistência e hospitais”. Estas convenções de 1899 viriam a ser revistas e aumentadas em 1907. 


Então passa a referir-se, expressamente, além dos edifícios citados, os ”monumentos históricos”, devendo em caso de conflito ou bombardeamento naval haver sinais, definidos em formas e cores, a colocar nos edifícios a proteger. O que se passou no outono de 1991 em Dubrovnik, cidade classificada como património da humanidade pela UNESCO, em 1979, é ilustrativo da grande dificuldade na concretização das medidas de proteção. Apesar da missão de paz levada a cabo por Jean d’Ormesson, André Glucksmann e Bernard Kouchner, a missão tentada com a guerra em curso não teve sucesso. Os bombardeamentos continuaram. O mesmo se diga das bárbaras destruições de agosto de 2015, em Palmira, classificada pela UNESCO em 1980, com a trágica morte por decapitação do arqueólogo Khaled al-Asaad, que entregou toda a sua vida ao estudo de uma das mais importantes estações arqueológicas do mundo. A grave destruição de monumentos de valor incalculável foi acompanhada do assassinato do cientista que melhor conhecia a história do lugar. Visou-se, assim, uma destruição simultânea quer do bem material, mas também da base do conhecimento que existia.


Apesar das convenções internacionais serem explícitas, não tem sido possível intervir positivamente nas situações mais graves e dramáticas. O 6.º Congresso Internacional de Arquitetos, realizado em Madrid em 1904, com uma ampla representação portuguesa, distinguiu monumentos mortos e monumentos vivos, devendo os primeiros ser conservados para evitar que caiam em ruínas e os segundos continuar a servir. Prevaleceu, então, a ideia de que deveria ser respeitado o “estilo primitivo do monumento”, sem prejuízo da salvaguarda doutros estilos “sempre que tenham mérito e não destruam o equilíbrio estético do monumento. No imediato pós-guerra, depois de 1945, houve importantes desenvolvimentos. As diversas Cartas de Atenas tiveram grande influência nos domínios patrimonial e arquitetónico. Além da Carta referida de 1931 (sobre conservação e restauro), deve citar-se a que foi aprovada no mesmo ano pela assembleia geral do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Atenas (julho-agosto de 1933), dedicado à cidade funcional. Durante este congresso, que contou com a liderança de Le Corbusier, foi elaborada a Carta sobre o urbanismo moderno, não confundível com a Carta dedicada ao restauro de monumentos. Mesmo assim, o capítulo 5º da Carta de 1933 sobre urbanismo e a cidade moderna trata do património histórico das cidades, referindo que os valores arquitetónicos devem ser salvaguardados, quer sejam edifícios isolados ou conjuntos urbanos. Importa ainda lembrar que a tentativa de elaborar uma Convenção Internacional para a proteção de monumentos e obras de arte em tempo de guerra (1936) não pôde ser aprovada em virtude da precipitação dos acontecimentos internacionais que culminaram na tragédia de 1939-45. Vindo, porém, a constituir a base da Convenção de Haia (de 1954) para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado.


Com a criação, com sede em Paris, da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, que sucedeu à Comissão Internacional de Cooperação Intelectual, o património cultural assume um papel de maior importância – nascendo, no seu âmbito: o Conselho Internacional de Museus (ICOM), em Paris, organização não-governamental criada a 16 de novembro de 1946, que sucede ao Serviço Internacional de Museus; o Centro Internacional de Estudos para a Conservação e o Restauro dos Bens Culturais (ICCROM), com sede em Roma e fundado em 27 de abril de 1957; bem como o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS) criado, com sede em Paris, a 21 de junho de 1965. Importa referir que, após a realização da Conferência de Washington D.C. em 1965, foi feita uma recomendação no sentido da aprovação da Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, que viria a ser assinada a partir de 1972, englobando hoje 1121 referências culturais, 213 naturais e 39 mistos, localizados em 167 países, e num total de 39 transfronteiriços, estando 53 estão em perigo. A Itália é o país com maior número de sítios classificados, com 55, tal como a R. P. da China, também com 55, seguida da Espanha com 48, da Alemanha com 46 e da França com 45. No diz respeito à distribuição por grandes áreas geográficas, verificamos que na Europa localizam-se 529 bens classificados em 50 países, em África 96 em 35 países, na América Latina e Caraíbas 142 em 28 países, na Ásia e Pacífico 268 em 36 países, nos Estados Árabes 86 em 18 países. Neste contexto, Portugal tem 17 bens na lista do Património Mundial. A Convenção considera a cultura humana e a natureza como valores indissociáveis e parte da ideia de que há património cultural ou natural de uma região ou de um país que tem um valor excecional, não só para a comunidade, mas também para todos os povos do mundo. Daí a ideia de uma lista onde são inscritos monumentos, conjuntos, paisagens e elementos do património imaterial, considerados mais significativos, segundo critérios previamente definidos. Em 2003, a UNESCO aprovou a Convenção para a Proteção do Património Imaterial, destacando o património vivo que abrange outras tipologias de bens culturais, como tradições e expressões orais, lugares de memória, saberes e manifestações tradicionais. Neste âmbito, inserem-se 7 bens imateriais no território português, como o fado, a dieta mediterrânica e o figurado de Estremoz.


Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e as diversas expressões da criatividade e da tradição estamos, assim, a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento.


A esta luz se entende o apelo da Convenção de Faro à “reflexão sobre a ética e sobre os métodos de apresentação do património cultural, bem como o respeito pela diversidade de interpretações”, aos “processos de conciliação a fim de gerir, de modo equitativo, as situações em que são atribuídos valores contraditórios ao mesmo património cultural por diferentes comunidades”, ao “conhecimento do património cultural como um modo de facilitar a coexistência pacífica, promovendo a confiança e compreensão mútua, tendo em vista a resolução e prevenção de conflitos” e à integração destes desígnios “em todos os aspetos da educação e formação ao longo da vida”. E tudo se liga ao enriquecimento dos “processos de desenvolvimento económico, político, social e cultural”, bem como ao ordenamento do território, aos estudos de impacto do património cultural e às estratégias de redução dos danos.

 

Agostinho de Morais

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXXI) UM ESTRANHO EPÍLOGO

 

Chegamos ao fim do folhetim. Muitas coisas ficaram por dizer.

Finalizo, como comecei, com palavras de Garrett, a terminar “Viagens na Minha Terra”:

«Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra. Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar. Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal! Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra»...

E completando o folhetim, imagino-me, beneficiando da hospitalidade do meu Amigo Pedro Canavarro, na sua casa de Santarém. Aí reencontrei diletos viajantes que me disseram ter sido tratados nesta viagem com excesso de simpatia. E quem foram eles? Garrett, naturalmente, maravilhado com os benefícios que a cidade escalabitana foi sofrendo. Herculano e o seu amigo dedicado Raimundo Bulhão Pato, agradados com o sucesso do seu azeite e dos seguidores do senhor Jerónimo Martins – e animados com a conversação afável de Manuel da Silva Passos, o extraordinário proprietário da casa, sobre a procura necessária destas boas razões para Portugal, em nome de uma boa instrução pública.

E calculem que descobri nessa cavaqueira de bons e aprazíveis companheiros, a paixão de Almeida Garrett pelas histórias de quadradinhos e pelo facto de, nas aventuras de Tintin, Oliveira da Figueira ser o símbolo do português. Garrett percebeu bem a importância da ilustração, Bulhão Pato também manifestou curiosidade e interesse – e até o velho Herculano, com algum ceticismo, manifestou atenção, sabedor que as suas lendas e narrativas têm sido boa matéria para todos os principais ilustradores. Com a ajuda de Pedro Canavarro lá explicámos quem era este Oliveira da Figueira que conheciam mal…

A sua primeira aparição foi em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o jornalista encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu e Oliveira da Figueira pôs-se-lhe à inteira disposição: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias, além dos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu literalmente carregado, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além do inevitável despertador – confessando: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis». Na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua extraordinária arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E diz orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». Apesar de tudo aparece alguém a protestar porque parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz o óbvio mal-estar originado pelas bolas que o atormentam - «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»…

Depois a rotunda personagem é encontrada no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. E ajuda Tintin a encontrar os segredos do temível Dr. Müller, descobrindo um sagaz subterfúgio. Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, quase invisual com uma estória de contornos mirabolantes. É extraordinária a capacidade fabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido nunca chegamos a conhecer…

Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna de Tintin, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a sua captura. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». O português conta o que se passa. Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir… Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes com as suas burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis escandalizada. O desastre anuncia-se, mas tudo se arranja, graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira.

A charla continuou e os convivas assinalaram temas que poderiam ter sido acrescentados aos célebres 30. Bulhão Pato foi o mais loquaz – falou da gastronomia que poderia ser acrescentada, elogiou o Mestre João da Matta, falou de Paulo Plantier, e assinalou as maravilhas do Queijo da Serra e do seu sucedâneo de Azeitão (com a ajuda de Periquita, boa pomada) e saudou o esclarecimento da confusão das ameijoas, que nunca ele cozinhou, mas com que se deleitou no Central… Garrett, atentíssimo ao espírito do tempo, falou, imaginem lá!, dos desportos e dos ídolos, e deu nota que lá no assento etéreo onde se encontra se apercebeu dos sucessos desde Eusébio a Cristiano. Uma cultura popular faz-se dessa ligação aos ídolos e aos efémeros sucessos. Herculano, circunspecto, preferiu chamar a atenção para a necessidade de uma visita ao Convento de Tomar, charola, janela manuelina, memória de Gualdim Pais, rio Nabão e à importância do monumento como património vivo. Achou justa a referência a Camilo e a Júlio Dinis. E lembrou ainda a Biblioteca Joanina de Coimbra, a inesgotável Livraria da Ajuda, que ele conhece como as suas próprias mãos, a Torre do Tombo e a Portugaliae Monumenta Historica… Pato e Garrett falaram de música, lembraram os “Tentos” de Frei Manuel Correia, mas também José António Carlos Seixas e o tempo joanino, Luísa Todi na corte de Catarina da Rússia… Garrett insistiu especialmente em João Domingos Bontempo, seu amigo e colega de lides na formação musical do Conservatório Nacional. Bulhão Pato, especialmente loquaz, falou da importância das peregrinações, antigas e modernas – e lembrou o Almirante D. Fuas Roupinho e o milagre da Nazaré. Afinal a língua galaico-portuguesa nasceu em campo de peregrinação a Santiago de Compostela. E Pedro Canavarro, concordando com o que era dito, lembrou a importância da XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura (1983), sob os auspícios do Conselho da Europa e de tão boa memória, onde imperavam as boas razões para Portugal, e lembrou ainda os caminhos de Fátima e a fundação do Centro Nacional de Cultura no ano de 1945, oito dias depois do fim da guerra no continente europeu – bem como o projeto cultural moderno dos “Caminhos de Fátima”, idealizado por Gonçalo Ribeiro Telles e Helena Vaz da Silva.

As rotas do Património nasceram, assim, dos caminhos de peregrinação, per agros, pelos campos… Hoje o peregrino é o que cuida de ir ao encontro do património cultural, material e imaterial, natural e paisagístico, tecnológico e digital, sem esquecer a contemporaneidade e a sua criação.  

E nessa tarde imaginária à vista do Tejo, Bulhão Pato, pegou num livro e leu-nos pausadamente: «Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que creem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba»… E assim Herculano despediu-se e foi até à sua quinta, acompanhado de Pato – e Garrett como Passos Manuel foram discretear um pouco, olhando o belo Vale de Santarém.

GOM

 


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