Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Pierre Nora (1931-2025) foi um incansável mobilizador de ideias. Com Jacques Le Goff lançou o projeto editorial “Faire l’Histoire” de boa memória, fundou em 1980 a revista “Le Débat” com Marcel Gauchet e foi o grande animador de “Les Lieux de Mémoire” (1984). Todas as iniciativas que animou foram marcantes em vários domínios, no mundo do pensamento, na História, na vida política, na atenção à memória e ao património cultural, como realidades vivas. Foi um grande editor, primeiro na Julliard e fundamentalmente na Gallimard. Quando em 2020 foi anunciado o fecho de “Le Débat”, encerrou-se um ciclo não apenas no mundo das ideias, mas com repercussões na vida cívica. Ficou então um espaço em aberto, num tempo em que há um evidente vazio de valores e de ideais. Pierre Nora, membro da Academia Francesa, foi um cidadão ativo, com um pé nos livros e outro na vida política, um democrata para quem o pensamento e a ação vivem sempre juntos. Preocupou-se, por isso, com a perda de relevância das humanidades e do conhecimento da sociedade. “A História é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que já não existe. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido com o presente eterno; a história é uma representação do passado. A memória, porque é afetiva e mágica, apenas se acomoda aos pormenores que a confortam; alimenta-se de recordações vagas, distantes, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, écrans, censuras e projeções”.
Foi este confronto que suscitou a iniciativa dos “lugares da memória”, como sinal de abertura, como antídoto ao fechamento dos nacionalismos e protecionismos. Assim, o estado da educação preocupava-o intensamente. Uma escola desfalecida, complacente com a fragmentação dos saberes e com a ilusão dos especialistas deveria ser objeto de uma ação capaz de fazer compreender o diálogo entre as raízes da memória e os desafios da mudança. Contra “o fim das humanidades”, importaria considerar a exigência da curiosidade e do conhecimento, para que a civilização da leitura não seja posta em causa e para que o encontro entre as culturas e civilizações não se faça de culpabilidades ou de ressentimentos e de análises anacrónicas, mas com o estudo rigoroso das diferentes circunstâncias históricas, seja na relação com o Islão, seja no colonialismo e na escravatura ou no caso da resistência arménia. Em vez de uma história global desenraizada, importaria considerar a complexidade dos diferentes fenómenos e comunidades. Daí Nora ter lançado a diversos historiadores, como Pierre Chaunu, Georges Duby, Jacques Le Goff e René Rémond, o desafio de se fazerem historiadores deles mesmos, em lugar de se apagarem diante do seu trabalho. Como disse Mário Mesquita, haveria que assegurar a transição entre as grandes narrativas, tantas vezes erigidas na pseudociência, e uma nova perspetiva assente no diálogo efetivo entre história e memória. Longe de uma ciência do passado, havia que considerar a História uma ciência do presente. “A História não deveria ser escrava da atualidade nem escrita sob o efeito de memórias concorrentes”. Em vez de um debate funesto sobre as identidades nacionais, importaria olhar a realidade humana como produto de diversas influências e não de qualquer exclusivismo, consciente das raízes históricas, da identidade e da diferença. “A História pertence a todos e a ninguém, o que lhe concede uma vocação universal”.
O património cultural como realidade viva tem na “Visita Guiada” de Paula Moura Pinheiro na RTP-2 uma bela ilustração, que nos permite não apenas conhecer melhor a História, mas também compreender a sua importância, com os seus fatores diversos e complexos. No ciclo sobre a realidade brasileira, deparamo-nos com uma pluralidade de elementos que permitiram ao Brasil ter nos nossos dias dimensão e coesão territorial e linguística, só possíveis e invejáveis graças à coexistência de razões múltiplas, às vezes contraditórias, que conduziram à criação da realidade atual.
Em Ouro Preto, no coração de Minas Gerais, a extraordinária Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, que podemos definir como Portugal em laboratório, como se regressássemos, por magia, ao século XVIII, num tempo em que, depois da cana-de-açúcar, veio a febre do ouro, mergulhamos na coexistência de vontades diversas que permitiram chegar à realidade contemporânea. Em diálogo com a historiadora Júnia Furtado, somos levados aos confrontos gerados pela exploração das novas riquezas, na Guerra dos Emboabas (1707-1709), entre os bandeirantes paulistas capitaneados por Manuel de Borba Gato e os exploradores do ouro, onde se destacou Manuel Nunes Viana, natural de Vieira do Minho. O conflito viria a ser resolvido pela intervenção das forças enviadas pelo Rei de Portugal. A História é muito fecunda em episódios como este e o seu relato permite-nos compreender como o Brasil resultou de um sábio encontro de vários povos e influências que culminou numa unidade complexa que apenas pode ser entendida na dialética de contrários que Sérgio Buarque de Holanda bem compreendeu nas suas Raízes do Brasil. Ouro Preto foi ainda a grande cidade que abrigou em 1789 a dramática Inconfidência Mineira, onde se destacaram Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e o árcade Tomás António Gonzaga, célebre autor de “Marília de Dirceu”, nome grande da literatura da língua portuguesa. Numa realidade multifacetada que envolveu os povos naturais do território, os colonizadores paulistas, os emboabas, os portugueses, os africanos, os jesuítas construtores das reduções, chegamos à influência unificadora decisiva do marquês de Pombal e ao facto de o Império ter-se consolidado quando o Rio de Janeiro se tornou a influente capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A convergência de fatores, na aparência contraditórios, ditou a afirmação do importante Estado que conhecemos. Como disse Antonio Candido: «um jogo de oposições e contrastes impede o dogmatismo e abre campo para a meditação de tipo dialético, (…) em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita, expressa no Brasil do imigrante»… A memória fantástica de Ouro Preto e traz-nos a lembrança da tensão entre povos com diversas sensibilidades, com os seus efeitos projetados no tempo. Em vez de uma ideia ilusória centrada no passado ou nos ganhos imediatos, importa tirar lições de largo prazo, baseadas na complexidade dos estímulos, compreendendo que as raízes históricas são necessárias para lermos a realidade. Trazemos assim connosco uma multiplicidade de razões que nos permitem sentir o Brasil, sem paternalismo, como revelação do que somos e como tomada de consciência das diferenças. O barroco brasileiro encerra uma multiplicidade de influências que permitem conhecer um mundo outro que a aventura do encontro permitiu descobrir.
José Maria Ballester (1940-2025) era um genuíno amigo de Portugal. Foi um protagonista fundamental no Conselho da Europa em Estrasburgo, no departamento do Património Cultural, que ele conhecia como ninguém. Quando lançou o projeto dos roteiros culturais, recorreu a Helena Vaz da Silva para poder usar o seu entusiasmo e a sua imaginação ao serviço de um projeto matricial da construção europeia. Tantas vezes mo lembrou, dizendo que fizera inesperadamente uma descoberta de que todos beneficiaram. Nada melhor do que avançar com o paradigma dos Caminhos de Santiago, ainda por cima sabendo que a língua galaico-portuguesa como idioma dos trovadores está na origem do falar vulgar que D. Dinis tornou língua oficial dos tabeliães. Pode dizer-se que a Europa de lés a lés está ligada pelo espírito dos Caminhos de Santiago e pelos diversos percursos de peregrinação, descoberta de um destino e de um sentido de vida. E tais vias permitem a ligação entre povos e culturas diferentes. Longe de uma perspetiva passadista ou melancólica do património e da cultura, o que estava em causa era uma visão dinâmica e complexa, considerando as cidades, os territórios, a relação com a natureza, a paisagem, a inovação científica e técnica, o património digital, sem esquecer a criação artística contemporânea.
Foram longas as conversas que tivemos sobre estes temas, e não esqueço como considerou a Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea de 2005 como uma herança viva do seu pensamento, na sequência da Convenção da Paisagem (Florença, 2000). O seu incentivo permanente foi inesquecível. Os valores europeus e democráticos é que estavam em causa, e por isso lembro um outro amigo comum, José Vidal Beneyto (1929-2010), sempre um resistente democrático, que também nos legou uma reflexão muito séria nestes domínios. As causas da liberdade e da paz são cada vez mais necessárias e quando falamos do património cultural material e imaterial, a verdade é que estão em causa pessoas, cidadãos e sociedades. Os acontecimentos trágicos no leste europeu desde o conflito dos Balcãs até à Geórgia ou à Ucrânia recolocaram a reflexão sobre o património cultural na ordem do dia, através do conceito necessário de património comum e de partilha de responsabilidades.
A Europa Nostra e a Hispania Nostra foram iniciativas fundamentais em que José Maria Ballester sempre esteve envolvido, com o objetivo de congregar vontades e de reforçar instituições com vista à defesa da Educação, da Cultura e da Ciência. Para ele não havia compartimentos estanques, separados entre si. A sua personalidade era o exemplo da inteligência e do bom senso. Acreditava nas equipas, nos princípios éticos e na confiança. Todas as decisões que propunha e que adotava eram profundamente ponderadas e com sólida fundamentação, assim se impôs no serviço público que desenvolveu. A democracia apenas se afirma pela cidadania cultural, pela liberdade e pelo respeito das gerações que nos antecederam e das que irão suceder-nos. Ballester era da estipe de Unamuno, de Ortega y Gasset ou de Maria Zambrano, para quem a cultura apenas se afirma em diálogo entre os pensadores e o povo, entre o sentimento trágico e a criatividade da vida. Daí a conceção de património cultural como realidade viva e como apelo permanente ao protagonismo e à emancipação.
O património cultural imaterial está onde menos se espera. As tradições, os hábitos e costumes, o modo de fazer as coisas, a gastronomia – a cada passo encontramos pequenos segredos que explicam o carácter dos povos. José Ruivinho Brasão, meu professor no Liceu de Pedro Nunes e bom amigo, tem-se dedicado à recolha da literatura e das tradições verbais transmitidas pela oralidade. É notável o resultado desse trabalho persistente e insubstituível. Como salientou Arnaldo Saraiva, no que diz respeito às adivinhas, conseguiu reunir o maior número que já alguém recolheu em Portugal, mais de mil, da boca de muitos algarvios, permitindo compreender as questões da oralidade, da poética, da ruralidade e do hermetismo comunitário. E através das adivinhas, chegamos aos provérbios, aos jogos de palavras, aos trava-línguas, ao cerne da sabedoria popular.
Leia-se Adivinhas Portuguesas Recolhidas no Algarve, onde o património imaterial vive na inesgotável tradição oral, não fechada em arcas de registos mortos, mas para ser partilhada em roda de conversas, onde se recria, perdurando no tempo. Os exemplos são múltiplos e obrigam a seguir com atenção a recolha. “À meia-noite se levanta o francês / sabe a hora, não sabe o mês / tem um picão, não é cavador; / tem uma serra, não é serralheiro; / tem esporas, não é cavaleiro; / escava no chão e não acha dinheiro”. Eis-nos diante do galo, o coq francês. O rol é vasto e pleno de graça. “Alto está, / alto mora. / Ninguém o vê, / todos o adoram”. É o sino da igreja, mas há quem formule o enigma, exatamente ao contrário: “Todos o veem, ninguém o adora”. A criatividade não tem limites a não ser a da razão… E há ainda os jogos lógicos que eram apanágio dos serões ou do professor primário que se prezasse. “O barqueiro tinha uma cabra, um lobo e um repolho para transpor para a outra margem do ribeiro. Como é que o barqueiro conseguiria manter intacta a mercadoria, sem que a cabra comesse o repolho e o lobo se baqueteasse com a cabra. Teria de levar primeiro a cabra, depois viria buscar o repolho, traria de volta a cabra, levando o lobo, vindo, por fim, buscar a cabra, para garantir não haver perturbação… A série multiplica-se. “Qual é coisa, qual é ela, / anda sempre a correr, / Não tem mãos, não tem pés, / Bate-te quando quer, / Só a sentes, não a vês?” É o vento, aliás um dos exemplos mais repetidos pela sua subtileza. E “o que corre mais que o vento?”. Também aqui não há mistério, pois é o pensamento que a ninguém pede meças. E há as referências clássicas: “Quanto mais quente ele está, pois mais fresco ele é”. Pela manhãzinha, o padeiro sabe bem que a sua arte se mede nessa prova paradoxal. E quando as horas marcam o nosso dia-a-dia, novamente vem à baila o tempo, um protagonista sempre presente: “São doze meninas, / Cada uma, quatro quartos. / Todas elas, têm meias / e nenhuma tem sapatos”. Os exemplos vão e veem, e não esquecemos Manuel Viegas Guerreiro, que em Querença mantém viva a memória. E lembro as últimas conversas que tive com ele e com Agostinho da Silva, incansáveis perscrutadores do português à solta, sempre amantes devotados da língua: “Em lençóis de fina holanda / E cortinas de carmesim / Está deitada uma madona / Que parece um serafim”. De que se trata, afinal? Da extraordinária língua que falamos e que nos constrói.
Evocamos um amigo, D. Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), em «A Saga / Fuga de J. B.» a propósito do Encontro de Santiago de Compostela sobre o Património Cultural.
GONZALO, UM AMIGO Escrevo de Santiago de Compostela onde participo no Congresso Internacional “O Património, uma responsabilidade partilhada”, iniciativa de Hispania Nostra, reflexão sobre o património cultural, encarado não como realidade do passado, mas como fator essencial para a compreensão de uma cultura viva. E nada melhor do que lembrar D. Gonzalo Torrente Ballester, que conheci e que, como José Saramago reconheceu foi um autor digno da estirpe de Cervantes e dos seus Quixote e Alonso Quijano. E recordo Castroforte del Baralla, em uma cidade imaginária, que não vem nos mapas e flutua acima da realidade. José Bastida relata-nos o desaparecimento de uma relíquia, o Corpo Santo. Trata-se de uma verdadeira metáfora sobre cultura, património e memória. A ironia e o picaresco aí estão, entre gritos, vozearia e realidades múltiplas, religiosas e profanas, virtude e pecado, realidade e fantasia. Qualquer cultura viva é, por definição, mestiça. E em Castroforte não existe passado nem futuro, apenas figuras do presente que ilustram mil anos de história. Eis como se põe em diálogo memória e futuro. E J.B. ou José Bastida multiplica-se, graças ao génio de Torrente Ballester, uma vez que o lugar retratado é a imagem da cultura das pedras vivas de Rabelais. E encontramos de tudo um pouco – literatura e mito, sonho e realidade, História e Geografia, psicologia e linguística, lembrança e esquecimento. E a relíquia, o Corpo Santo, simboliza o que importa preservar e defender, como raiz e perenidade, encontro e desencontro. Em torno dela tudo se move, como se nada acontecesse.
A CONVENÇÃO DE FARO Devo falar de um instrumento de defesa do património, não como abstração, mas como compromisso. A Convenção de Faro de 2005 reconhece o “valor” para a sociedade do património histórico e da cultura, considerados como realidades dinâmicas, resultado de uma dialética entre o que recebemos e o que legamos. Mas os valores não são objetos ideais, são realidades imprevistas. Os fenómenos culturais participam dessa qualidade, não cabendo em “modelos estáticos” ou repetições, devendo, sim, inserir-se no horizonte da “experiência histórica”. Perante uma Convenção com clara referência universalista, como a UNESCO fez relativamente à diversidade cultural e ao património imaterial, torna-se indispensável pôr no centro das preocupações deste instrumento jurídico uma teia complexa de direitos e deveres, de garantias e responsabilidades, de instrumentos de acompanhamento e avaliação, que possam fazer convergir não só a salvaguarda concreta, mas também a proteção do património histórico e cultural no âmbito de uma cultura aberta e universalista, de direitos e deveres fundamentais.
Compreende-se, assim, a novidade do objetivo do Conselho da Europa “de realizar uma união mais estreita entre os seus membros a fim de salvaguardar e promover os ideais e princípios baseados no respeito dos direitos do homem, da democracia e do Estado de direito, que constituem o seu património comum”. Deste modo se entende a “necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural” e de salientar “o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida”. E reconhece-se que cada pessoa “tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural. Com vista “a uma maior sinergia de competências entre todos os agentes públicos, institucionais e privados interessados” reconhece-se “que o direito ao património cultural é inerente ao direito de participar na vida cultural, tal como definido na Declaração Universal dos Direitos do Homem”; “uma responsabilidade individual e coletiva perante o património cultural”; e que a “preservação do património cultural e a sua utilização sustentável têm por finalidade o desenvolvimento humano e a qualidade de vida”. Daí a necessidade de reforçar o “papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural”.
MOBILIZAR VONTADES… Trata-se de mobilizar vontades, através de um instrumento com força própria, no sentido de tornar o património cultural um fator de paz e de cooperação, ao contrário do que muitas vezes aconteceu no passado, em que o património cultural e as diferenças culturais estiveram, ou estão, no epicentro dos conflitos. Um templo com diversas referências históricas e culturais, religiosas e sociais tem de ser visto como um ponto de encontro e de memória, facto que só enriquece a sua atual utilização, religiosa ou profana, em nome do respeito e da preservação do espírito dos lugares, segundo uma cultura de paz. Assim, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunho e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo. O património cultural, material e imaterial, surge, nesta lógica, como o primeiro recurso em prol da dignidade da pessoa humana, de diversidade cultural e de desenvolvimento durável. A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” (longe dos nacionalismos) tem de ser vista como elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e os elos que se reportam a uma história viva, simbolizada e representada por uma herança (heritage), pelo património material e imaterial e pela capacidade de tornar presente essa invocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e de várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, esta ideia visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. O mesmo bem patrimonial está ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua história referências muito diversas. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Mas caberá à sociedade de cidadãos livres encontrar o denominador comum, que permita evitar que uma identidade, tradição ou monumento sejam fontes de conflito. Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado de conflito e a procura de um consenso de valores e ideais no âmbito da cultura da paz. E a saga e fuga de J.B., como caleidoscópio, poderão ajudar.
A última conversa com o meu amigo Manuel Brito, há cerca de uma semana, terminou com a combinação de que avançaríamos nos vários projetos em carteira. Estava um pouco cansado fisicamente, mas não lhe faltava o entusiasmo de sempre. Com votos de melhoras, encontrar-nos-íamos dentro de dias para acertar os pormenores. Por isso, não me perdoaria se hoje fizesse aqui um obituário. O que importaria sempre mais seria o futuro e os novos projetos. Nos vários domínios em que se empenhou ao longo da vida, era um exemplo de competência, de rigor e de solidariedade. Nos últimos anos, tivemos um contacto permanente, na sua função de auditor financeiro. Nunca falhava e estava sempre disponível para as mais complexas tarefas ou para os mais diversos pormenores. Como algarvio dos quatro costados, além da sua principal ação profissional, lançou-se nos últimos anos em dois projetos que o apaixonavam. A editora “Sul, Sol, Sal” e a “Casa do Meio Dia” depressa ganharam a ribalta no campo da criação e das artes e da defesa do património cultural. E insistia em dizer: “o nosso objetivo é editar obras que valorizem a cultura e o património algarvio e façam com que a visão exterior do Algarve saia reforçada e deixe de ser tão negativa… Os projetos que tenho (dizia) não obedecem a critérios financeiros de rentabilidade, vivo do que já trabalhei e com o conforto que considero adequado. O que eu procuro são projetos que sirvam e valorizem o Algarve”. O mesmo entusiasmo tinha com a empresa de embarcações movidas a energia solar, a “Sun Concept”, em cujo desenvolvimento colocava a maior esperança. Mas, como sonhador realista, dizia-me que a “Sul, Sol e Sal” é um “embrião cultural improvável para o Algarve”. E era sua intenção editar obras em várias áreas, em especial nos domínios da história e do património, mas também do urbanismo, da agricultura biológica e da ecologia. Escolheu uma designação quase mágica e como símbolo a maravilhosa canoa da Picada, embarcação veleira de tradição mediterrânica, utilizada até finais do século XIX que, devido à sua rapidez e facilidade de manobra, transportava o peixe vindo do alto mar para chegar às cidades. A metáfora da pesca milagrosa adaptava-se plenamente à difusão do livro e da leitura. Aliás, logo no início, o saudoso professor Joaquim Romero Magalhães propôs uma “Algarviana Breve”, lembrando Mário Lyster Franco, e projetou a publicação da “Crónica da Conquista do Algarve”, nunca editada, ou dos textos de Raul Proença no “Guia de Portugal”. Essa a linha estratégica de um projeto pleno de virtualidades que envolverá a cooperação da Universidade do Algarve e dos melhores especialistas. Não por acaso, a tónica em que Manuel Brito insistia era que a editora “é um projeto que não procura o lucro, mas tem de ser sustentável”. E o Algarve bem precisa da valorização do que tem de mais rico – as raízes, a economia, a natureza e o desenvolvimento humano. As obras editadas, como “Olhão fez-se a si próprio” do também saudoso António Rosa Mendes, ou “A Pesca no Algarve Medieval” de José Marcelino Castanheira e o texto fundamental de Joaquim Romero Magalhães “O Algarve Económico durante o século XVI” constituem bons exemplos da defesa do património cultural como realidade viva, não numa lógica retrospetiva, mas sempre como conceito em movimento. Por tudo isso, refiro o exemplo de alguém que nos deixa como legado um desafio de responsabilidade, ligando a memória das raízes antigas, o diálogo entre culturas e a necessidade de encarar o desenvolvimento humano como uma ligação permanente entre o conhecimento, a compreensão, a ciência, a educação, as artes e a cultura. Tenho no ouvido a nossa última despedida “até ao nosso próximo encontro”. É duro dizê-lo, mas vamos continuar!
António Manuel Couto Viana (1923-2010) comemoraria cem anos e invocamos a pedagogia da cultura popular e a preocupação especial que teve com os mais jovens e com a importância do teatro no ensino.
PEDAGOGO DA CULTURA POPULAR
Celebra-se o centenário de um poeta e homem de teatro, que influenciou decisivamente muitas gerações de jovens nos anos cinquenta e sessenta. António Manuel Couto Viana foi, antes de tudo, um pedagogo da cultura popular portuguesa. Pode dizer-se que foi esse seu papel de ativo educador através da leitura e do teatro que deixou uma marca indelével. Filho de um português e de mãe aragonesa, cultivou sempre as suas raízes galaico portuguesas e minhotas. Poeta, dramaturgo, ensaísta, memorialista e tradutor, fez os seus estudos no seu Minho e em Lisboa. Desde sempre foi um entusiasta do teatro, como a arte que melhor permite ligar a criatividade popular e a necessidade da cultura, tendo recebido de seu avô, com suas irmãs, em herança o Teatro Sá de Miranda de Braga. Cedo começou a colaborar no Teatro Estúdio do Salitre, como ator, cenógrafo e encenador (1948-1950), sendo ainda um dos animadores do Teatro de Ensaio do Monumental (1952), bem como diretor do Teatro do Gerifalto (1956-1960) – onde também estiveram Cecília Guimarães, Henriqueta Maya, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro. Participou na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade (1961-1965). Como ator, encenador e mestre da arte de dizer e de representar, encenou na televisão portuguesa (RTP) espetáculos de teatro e animou conversas e programas, com grande repercussão entre o público de todas as idades, mas especialmente entre os jovens, atraindo uma nova geração de atores e artistas para a arte de Talma. Lecionou no Liceu D. Leonor e foi membro do Conselho de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Estreou-se na escrita em 1948 com o livro de poemas O Avestruz Lírico, muito bem recebido pela crítica. Foi autor de mais de uma centena de obras escritas.
ATIVIDADE INTENSA DE PROMOÇÃO DA CULTURA
De 1950 a 1954, dirigiu com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo as folhas de poesia Távola Redonda, e em 1956-1957 a revista de cultura Graal, participando na revista Tempo Presente em 1959-1961. A sua obra poética procurou reabilitar as tradições líricas populares e um certo culto do passado e da paisagem. Além da poesia e do teatro, dedicou-se à literatura infantil, a partir dos principais autores europeus e dos romanceiros portugueses antigos, estudando-a em ensaios, escrevendo e traduzindo livros destinados aos mais jovens. Dirigiu o Camarada (1949-1951). Uma boa parte da sua atividade teatral como ator, encenador e autor dirigiu-se também aos jovens e às crianças, o que se relaciona com a sua obra poética onde perpassam marcas dos temas dos contos tradicionais. A referência ao Gerifalto, que marcou o mais importante grupo que animou, tem a ver com a simbologia de uma ave semelhante ao falcão, que representava a altivez e a valentia. Couto Viana está representado nas principais antologias de poesia portuguesa, e os seus poemas foram traduzidos para castelhano por Angel Crespo e para inglês por Joan R. Longland. Foi em 1960 premiado com o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, além de um conjunto dos principais galardões relativos à poesia e ao conto.
Um dos seus poemas mais célebres, publicado em “Versos de Caracacá”, intitula-se “A Maçã”, que recordamos: «Na relva cheia de pó, / cai uma maçã pequena / que ao ver-se tão suja e só/começa a chorar de pena. / O galo do catavento, / temendo alguma desgraça, / pára logo o movimento / e pergunta: - O que se passa? / - Quero ver o Mundo! – diz / a maçã, a soluçar. / - O escaravelho é feliz, / pois tem patas para andar! / / De um alto ramo pendente / via o Sol, o Céu, a estrela / com gatos e cães e gente. / Mas, no chão, não vejo nada! / Eu tenho uma rica ideia! / - diz o galo (e bate as asas). / - Dou-te esta noite boleia / para veres gentes e casas. / E assim fez. Voa da igreja, / põe às costas a maçã / que vê tudo o que deseja / até ao romper da manhã. / - Olha outro galo tão lindo, / a voar! – Maçã pateta! – / responde-lhe o galo, rindo. / - Aquilo é uma borboleta! // Olha uma casa amarela! / Desço até ela. Já está! / Espreita pela janela / e diz-me o que vês por lá. / - Vejo uvas numa taça – / diz a maçã. - Por favor, / chega-te mais à vidraça, / para eu espreitar melhor. / E a maçã pôde, assim, ver, / sobre a toalha engomada, / o garfo, a faca, a colher. / Viu tudo e ficou cansada. // O galo regressou à sua / torre da igreja aldeã / para, aí, contar à Lua / a viagem da maçã. //E a maçã muito contente, / diz, na relva, para consigo: / - Vi o Mundo, finalmente! / E o galo é meu amigo!»
O CULTO DAS TRADIÇÕES
Como afirmou um dia sobre o Alto Minho: «A família toda foi uma apaixonada pela sua terra, que é encantadora: meu pai, um etnólogo, um homem que fez o ressurgimento do trajo à lavradeira (aquilo a que se chama «trajo à minhota», mas que é apenas do concelho de Viana do Castelo) e escreveu sobre Viana; minha irmã mais velha também tinha uma grande paixão por Viana e escreveu muito sobre ela e o mesmo com a minha outra irmã... O Luís d’Oliveira Guimarães dizia que o meu pai amava tanto a própria terra que até a usava no nome (Couto Viana). Eu identifico-me com a cidade e tenho recebido dela um carinho e uma admiração muito grandes – recentemente foi edificada a Biblioteca Municipal de Viana, que tem quatro salas: a sala Camões, a sala Fernando Pessoa, a sala José Saramago e a sala Couto Viana; sou cidadão de mérito da cidade; a Câmara Municipal tem publicado muitos livros meus de poesia e ensaio. A cidade tem correspondido ao meu amor”. Esta referência significa que a obra de António Manuel Couto Viana procura ligar, a partir da poesia, a literatura, a língua e a procura da compreensão da cultura como ponto de encontro entre as gerações – numa verdadeira noção de património cultural como realidade viva. Assim, a leitura da sua obra constitui um ensinamento permanente sobre o cadinho complexo e heterogéneo que vai construindo a língua portuguesa – de Camões a Eça de Queiroz, passando por Vieira e Garrett, por Sá de Miranda e Antero, sem esquecer os antigos trovadores, de que o poeta se considerava seguidor. Um pedagogo da cultura popular não poderia ser outra coisa do que um ouvinte fiel das tradições e leitor atento da melhor língua erudita.
Todos os dias se ganham novas palavras, enquanto outras levam sumiço. Quando se fala de património cultural imaterial é o mundo das palavras um dos que mais importa. A língua é uma realidade viva que nos interpela, não como gramáticos, mas como pessoas que precisam de comunicar, usando a tradição e a criatividade. António Mega Ferreira, que nos tem dado maravilhosos reportórios culturais, acaba de nos presentear com o Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas (Tinta da China, 2022). É um pequeno e delicioso dicionário de inesperadas palavras, que vão desaparecendo do uso comum, mas que nos dizem muito. Muitas desapareceram por falta de uso e pela evolução natural da sociedade moderna, e outras foram-se perdendo, quase por encanto, pelo empobrecimento da expressão popular ou pela influência de outras culturas e dos meios audiovisuais.
A lista de palavras é elucidativa e em cada uma delas lembramos porventura uma pessoa concreta a dizer essas palavras perdidas – que já não está cá para as repetir. Hoje é impensável ouvirmos uma tia velha perguntar pelos petizes lá de casa. Os aeroplanos também há muito despareceram; os alfarrábios existem apenas em baús antigos que se perdem na nossa lembrança; o anis está no olvido de muitos; as botas de elástico, associadas pelo autor a Salazar, por associação à memória do antigo integralista Hipólito Raposo, desapareceram dos discursos e das sapatarias e os que eram designados como botas de elástico tomaram outras designações, já sem a companhia dos “mangas de alpaca” … Ninguém vai rebater uma cautela da lotaria à tabacaria da esquina, e também as capelistas de bairro, a vender linhas, botões, colchetes ou fitas de nastro e veludo, desvaneceram-se, tendo-se perdido a origem da designação, do Pátio da Capela Real, quando reinava o rei magnânimo. As chitas ficaram nos antigos bailes de carnaval e no gáudio dos foliões de Entrudo. E vai longe a referência de Jorge Ferreira de Vasconcelos, na comédia “Ulissipo” a um volumoso “cartapácio” – “Per algum cartapácio ledes vós, que vos faz tão sengo” (prudente e atilado). A minha mãe falava de desaustinados e de despautérios, e os meus tios iam desopilar depois de jantar nas ruas pacatas do Campo de Ourique. A palavra espampanante era comum para significar algo de assombroso – lembrando Silvana Pampanini, miss Itália de 1946 e um espada era um automóvel impressionante nas linhas e no aparato (como um Pontiac, um Chevrolet ou mesmo um Riley) …
Almeida Garrett foi modelo de excêntrico, com o seu colete amarelo, as luvas cor de alfazema ou as almofadinhas para disfarçar a magreza e Fradique Mendes era um “génio excêntrico e correto” … Por seu lado, o estafermo era mais que um boneco de picadeiro, desafiado por um cavaleiro numa pileca, era um imbecil, que só causava transtornos; enquanto um famigerado, de alguém com fama, degradou-se semanticamente, gerando desprezo e trampolinice. Um comerciante simpático desfazia-se em finezas, obséquios e “tenha a bondade”, num “métier” de agradinhos à mistura com sortidos finos. E um professor primário não se ensaiava em distribuir galhetas, por uma conta errada ou um verbo mal conjugado. Quanto aos nomes das refeições, nos períodos que passava com meus avós no campo, estas ganhavam outras designações – o almoço era a primeira das refeições e o jantar a do meio do dia, enquanto a merenda era leve, pela tardinha, entre o jantar e a ceia… E nos pregões de Lisboa, ouvíamos “quem quer figos quem quer merendar” … Enfim, como para António Mega Ferreira, também o “Cavaleiro Andante” de Adolfo Simões Müller foi “a minha Bíblia pauperum, uma bíblia dos pobres, porque as imagens me contavam as histórias que ainda não conseguia ler” – e daí parti para Júlio Verne, Alexandre Dumas e tutti quanti, e para as Enciclopédias e mapas de meu avô, para deslindar muitos dos mistérios suscitados pela geografia e a história de vasta literatura disponível.
É João Abel Manta quem nos ajuda a fechar este folhetim de folhetins, que propositadamente fez um sobrevoo exaustivo sobre as várias leituras (e tantas ficaram por fazer) que a lusitana língua tem para nos dar do lado de cá do Atlântico. É Fernando Pessoa, qual Hamlet, a fazer a pergunta enigmática que esta série encerra. E devemos alguns esclarecimentos.
Antes do mais, porquê este título esotérico de “Pedras no meio do caminho”? De facto, é Carlos Drummond de Andrade o inspirador desta fórmula, pelo poema que bem conhecemos.
No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.
Parece estranho, mas não é. Os nossos leitores sabem que, ao longo do tempo – a memória e o património cultural representam-se metaforicamente, como quis Rabelais, entre pedras mortas e pedras vivas – e as pedras vivas são as pessoas. Não há cultura sem memória, sem interrogação, sem enigma. Monumentos, habitações, documentos, crónicas, idiomas, tradições, natureza, paisagem, técnicas, instrumentos, comunicação, criatividade. E foi assim que ao longo das semanas lidámos com fantasmas, propositadamente, com os seus caprichosos espíritos que, em vez de terem desaparecido, se mantêm presentes e vivos de diversas maneiras – pelo que escreveram e disseram, pelo que viveram e legaram. E do princípio ao fim lidámos com Carlos Fradique Mendes, heterónimo exclusivo de uma geração, símbolo heterogéneo, surgido na absurda história da Estrada de Sintra, filho de Eça e Ramalho, espécie de pirata cultor de um pensamento mefistofélico; depois Antero e Jaime Batalha Reis inventam-no como um poeta singular e marginal – e, por fim, Eça de Queiroz, liberto do pendor romântico da Ramalhal figura, deu-lhe nervo e espírito, com autonomia, como verdadeiro símbolo de uma geração maior. Não por acaso, demos dois exemplos de folhetins romanescos. As “Viagens” de Garrett renovaram a literatura (como fez Almada Negreiros em “Nome Guerra”) e o “Mistério da Estrada de Sintra”, sem ser obra genial, é o anúncio em parte (a de Eça) do naturalismo e depois do simbolismo. E voltamos a Fradique, que é muito mais do que filho de uma escola, representa a transição que nos conduz de Afonso e Carlos da Maia até Jacinto e Gonçalo Mendes Ramires – da Regeneração à Renascença Portuguesa, de 1870 a 1915 e ao “Orpheu”. Tivemos um Romantismo muito longo, libertado com Antero, Cesário e Pessanha de uma escola decaída de elogio mútuo, enterrada no Bom Senso e Bom Gosto e nas Conferências do Largo da Abegoaria.
Como podem compreender, o folhetim é caricatural e trágico. Poderíamos ter ido mais adiante. Chegámos aos Barbelas e aí pudemos ver quem somos na dimensão plural da história, mas poderíamos ter falado ainda de Agustina e da sua “Sibila”, de Quina e Germa e do mesmo ano emblemático: “Há uma data na varanda desta sala que lembra a época em que a casa se construiu. Um incêndio por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva”. Que data estranha esta, recorrente, tantas vezes encontrada.
Reunidos numa sala ampla, Jaime Ramos interroga comigo os suspeitos e protagonistas: todos fantasmas, Fradique, Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa… uma algazarra.
Duas horas de interrogatório. Jaime Ramos é sistemático. E o veredicto é duro. «Todos, mas todos sem exceção, são culpados”. A condessa de W., ainda pretendeu assumir, ela só, todas as culpas. Mas Ramos pô-la à prova com o detetor de mentiras. A culpa dela era a mesma de todos os outros… um pequeno golpe para cada um. O que estava em causa era a culpa para manter, pura e impura, a lusitana língua e, como no “Crime do Expresso do Oriente”, a culpa era de todos, todos, próximos ou distantes!
Houve broaá, e pronto, a cortina desceu apressadamente, para paz de todos. Um compasso de espera e houve palmas…
Aqui estamos nós! Neste ponto, temos uma interrogação. Mais importante do que saber qual o desenlace do folhetim idealizado como um entretimento ou uma brincadeira por Ramalho e Eça, importa saber qual a pergunta que está subjacente a todo o folhetim. Do vaqueiro do Monólogo da Visitação (ou do Auto da Lusitânia de Todo o Mundo e Ninguém) até às dúvidas de Antunes perante Judite, passando por Fernão Mendes ou pelo próprio Garrett, transformado não em autor, mas em personagem, eis a essência da trama. Mas não ficamos por aqui, uma vez que não podemos esquecer Blimunda e Baltazar no “Memorial do Convento” nem Bernardo Soares e Fernando Pessoa do “Livro do Desassossego” ou Ricardo Reis, junto ao Adamastor. E qual a interrogação? Afinal, sejamos claros: o que significa a portuguesa língua? Tudo o que ficou neste folhetim de folhetins tem a ver com esta pergunta, que é a mesma que Almada Negreiros pintor (como o escritor de “Nome de Guerra”) formula magistralmente nos painéis que visitámos, com um sentido irónico e sério. Do mesmo modo, Ruben A., em “A Torre da Barbela” apresenta com nitidez a panorâmica global sobre tal pergunta sacramental. Quem somos? O que desejamos? O que sentimos? O que queremos, nós falantes da nossa língua comum?
Todas as tardes ao cair da tarde, quando os visitantes abandonavam a visita turística à Torre edificada por D. Raymundo, que nos simboliza, os Barbelas que habitaram esse lugar ao longo dos séculos ressuscitam, trazendo de regresso as suas vivência de antanho. E assim uma torre única triangular com a altura de trinta e dois metros, torna-se palco e representação de um diálogo entre várias gerações de uma família antiga. Os amores e os ódios, as lembranças e as aventuras identificam um longo património cultural e histórico que se traduz na resposta a um enigma apaixonante. Em volta da Torre transfigurada em gente, reúnem-se a parentela moderna e antiga da família, "primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época". Entre eles estão Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques, ao lado de quem combateu; o Cavaleiro de aventuras, que percorre os montes com Vilancete, grande garrano da Ribeira de Lima, seguido por Abelardo, o falcão que o auxilia na caça. Isto, além de Frey Ciro, o santo da família, e da bruxa de São Semedo. Os eternos contrastes. Todavia, há ainda a linda D. Mafalda, com imagem e formato de vestidos cópia dos modelos de Watteau e Fragonard, correspondendo-se com William Beckford, o fértil viajante. E há a princesa D. Brites, célebre no século XIX; mas sobretudo Madeleine, a "prima que veio de Paris cheia de cores". Sim, esse amor do Cavaleiro mais lendário com a sua prima francesa é absolutamente emblemático no culminar desses oito séculos de paixões e de enguias fumadas, com pessoas a falar da véspera, do que já passou outrora e de um lugar, que nos representa, onde é impossível fazer qualquer coisa que não tenha sido estabelecida quatro séculos atrás. Mas como é difícil responder a essa pergunta sacramental, com tantos pressupostos e tão diversos perguntadores… Nós mesmos ainda somos em parte os Barbelas, à mistura com o vaqueiro aturdido (pelos arrepelões) ou com a capacidade de encenador e de personagem de A. Garrett ao lado de Ruben A..
E fazemos uma nova e breve pausa. Temos ainda Luísa em suspenso. E perguntamos ao dileto leitor. Que outra pergunta lhe assalta ao espírito, depois de ler esta representação plural das pedras no meio do caminho, que Drummond tão bem nos apresentou. Pedras vivas, as pessoas, pedras mortas, os monumentos, as obras, as artes, as crónicas, natureza que nos rodeia? Todas as tardes, ao cair da tarde, quando os visitantes abandonavam a visita turística à Torre, que vem à baila?