Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
... como numa pautademúsicaem quecada acção seinscrevenuma linha diferente... diz-nos Paul Claudel ao descrever como imagina a cenografia do seu balé L’Homme et son désir, onde no degrau mais alto desfilariam, todas negras e toucadas de ouro, as Horas da noite. Logo abaixo, a Lua, guiada através do céu por uma nuvem, aia precedendo uma grande dama.E mesmo em baixo, nas águas do velho pântano primitivo, o Reflexo da Lua e da sua Aia seguem a marcha regular desse par celeste. O drama propriamente dito passa-se sobre a plataforma mediana entre o céu e a água... (La Danse, 1921).
Este guião de uma coreografiaem friso animado - conta Michel Wasserman (D´Or et de Neige: Paul Claudel et le Japon, Gallimard, Paris, 2018) - informou igualmente a partição de Milhaud, que repartiu os seus executantes em quatro quartetos (três instrumentais e um vocal mas sem palavras articuladas) que, distribuídos por três níveis, serviam de estojo da ação, mas conservando sempre cada um deles a sua individualidade musical relativamente aos outros grupos: «No terceiro piso, de um lado, um quarteto vocal, do outro, o oboé, a trombeta, a harpa, o contrabaixo. No segundo piso, de cada lado, os instrumentos de percussão. No primeiro piso, de um lado, as flautas e clarinetes, do outro, um quarteto de cordas. Quis manter uma total independência melódica, tonal e rítmica para cada um desses grupos» (Darius Milhaud, Notes sans musique, Julliard, Paris, 1949). Ao que parece, o compositor Darius Milhaud pretenderia sublinhar o cariz encantatório e obsessivo da obra, evocando os invisíveis habitantes da selva brasileira, «esses milhares de bichinhos que, logo após o pôr do sol, como que impelidos por invisível toque, animavam a floresta com variadíssimos ruídos, cuja intensidade rapidamente atingia o paroxismo»... E o poeta embaixador percebia tal intenção, ambos tinham partilhado ao mesmo tempo uma certa comunhão com a cultura brasileira, durante a sua estadia nesse país. Por isso se entende a recusa de Claudel retirar a partitura de Milhaud da versão japonesa de L’Homme et son désir, optando então por escrever outro, novo, guião para o balé: La Femme et son ombre. Só este será levado à cena nipónica, mas como ambos os textos já tinham sido vertidos para japonês, neste idioma também foram publicados. Valerá a pena traduzir aqui a narrativa das circunstâncias e razões da realização de La Femme et son ombre, tal como conta o nosso Wasserman. É longa a citação, mas inclui, porém, palavras do próprio Claudel sobre a sua ideia dessa obra e sua encenação:
Yamanouchi fora contactado através duma das vedetas do kabuki de então, o jovem Nakamura Fukusuke V, que fundara um grupo de investigadores para reexame do repertório clássico de danças de kabuki e constituição de novo acervo. Seguindo o modelo que propunham, no Ocidente, as companhias de Diaghilev e de Maré, Fukusuke rodeara-se de dramaturgos, músicos e artistas plásticos estranhos ao mundo codificado do kabuki, e foi assim que o compositor pressentido para a adaptação de L´Homme et son désir, Yamada Kosaku, criara em 1914, com a Orquestra Filarmónica de Tokyo, os primeiros concertos sinfónicos regulares, e fundara em 1920 uma associação de arte lírica em que dirigira em estreia a audição japonesa de extratos do Tannhäuser e do Enfant Prodigue de Debussy. Assim que Claudel foi posto ao corrente, por Yamanouchi da proposta que lhe era feita, disse logo que não poderia de modo algum aceitar renunciar à música de Milhaud e que como, por outro lado, o palco do Teatro Imperial, prioritariamente concebido para o kabuki, com cena desmesuradamente aberta, mas de baixa altura, tornava impossível a reprodução da cenografia vertical original, propôs escrever um argumento completamente novo, adaptado às condições da cena japonesa. Os seus interlocutores responderam-lhe então que nada lhes agradaria mais, pelo que Claudel meteu mãos à obra e, em menos duma semana, isto é, em Setembro de 1922 entrega o seu manuscrito a Yamanouchi, para tradução, especificando que desejava que a ação japonesa fosse interpretada do modo mais vernáculo possível, começando por uma achega musical tradicional...
... A ação de La Femme et son Ombre situa-se «na fronteira entre dois mundos». O fantasma da mulher morta aparece ao amante, que assim é unido nesse lugar «selvagem e solitário» pela nova concubina. Esta, para provar que os receios por ele manifestados não têm sentido, pois que a ilusão cria ilusões, projeta na parede de nevoeiro os ramos de pessegueiro e as borboletas que as palavras dela evocam. Todavia, quando ela toca alaúde, ou "shamisen", e quando canta, a música e o canto continuam mesmo depois dela se ter calado. Enquanto a sombra da morta reaparece, a mulher viva surge diante dela. Como a Sombra imita os gestos da mulher, o homem corta com um golpe de sabre o invisível laço que as une. A mulher cai. O homem dá um golpe de sabre na direção da Sombra. Ao retirar a arma, vê que está coberta de sangue. A mulher morre.
Este enredo justifica que, proximamente, venha falar do teatro Nô. Por agora, contudo, volto aos relatos da metamorfose de L’Homme et son désir em La Femme et son Ombre... chamando desde já a atenção para o facto de, no primeiro título, désir aparecer iniciado por minúscula, enquanto que Ombre surge com maiúscula no segundo, talvez por se tratar de uma personagem da peça, tal como Femme. Diz Claudel, no seu diário (16/02/1923), que escutou a música de La Femme et son Ombre em casa do compositor Kineya Sakichi IV: Música cheia de animação e poesia. E Michel Wasserman conta-nos que o mesmo compositor japonês retomara a Milhaud a ideia de distribuição por grupos instrumentais (o mundo dos mortos, o dos vivos, o guerreiro, a lua e a água, na partitura, são cada um deles, dotados de um clima musical e de uma instrumentação específica, partilhando, à vez, o papel principal e o de acompanhamento) vindo assim a prever um enorme efetivo: cinquenta e oito músicos tradicionais, entre os quais cinco flautas (shakuhachi), sete traversos (fue), uns vinte shamisens ( vários dos quais, do tamanho de violoncelos e destinados a almofadar o registo dos baixos, foram fabricados especialmentesegundo instruções desse grande renovador da fatura instrumental), um violoncelo de origem chinesa (kokyu), muitas percussões de madeira e metálicas e três cantores. Como o Teatro Imperial dispunha de um fosso para orquestra, aí se dispõe o conjunto, coisa inaudita no kabuki, em que o efetivo instrumental e vocal das cenas dançadas está sempre à vista, em degraus por detrás dos atores. Mas Claudel precisa, no seu guião, que «o fundo da cena é feito de um vasto painel de papel que representa o nevoeiro... ...sobre ele surgindo uma vaga sombra que se vai tornando progressivamente mais precisa, até se fazer a sombra de uma mulher»...
As representações realizaram-se, no Teatro Imperial de Tokyo. de 26 a 31 de março de 1923, ano em que se viria a dar o grande terramoto de Kanto.
Sinal do que estou dizendo pode mesmo ser a própria história dessa experiência de Kurodero (Claudel) - L´Oiseau Noir dans le Soleil Levant - na cultura musical e cénica do Japão. Curiosamente, o alter-ego nipónico do poeta francês nessa história foi um tal Yamanouchi Yoshio (1894-1973), universitário francófilo e francófono, que, depois da morte de Claudel, se tornou no fundador e primeiro presidente, em 1962, da Nihon Kuroderu Kyokai (Associação Claudel do Japão) e, três anos mais tarde, na data do centenário da conversão de Paul Claudel, também se converteu ao catolicismo, escolhendo, para nome de batismo, esse mesmo de Paulo. Mas agora seguirei o relato de Michel Wasserman (D´Or et de Neige: Paul Claudel et le Japon - Les Cahiers de la NRF, Gallimard, Paris, 2018):
Este universitário francês, professor na faculdade de relações internacionais da Universidade Ritsumeikan de Kyoto, depois de referir os antecedentes do poeta embaixador na colaboração com criadores e artistas das artes musicais e cénicas, tais como Milhaud, Honegger, Ida Rubinstein ou Jean-Louis Barrault, aproveitou a sua estadia nipónica para repetir a experiência, elaborando com reconhecidos artistas locais obras coletivas que, para além do seu próprio interesse, fomentassem a miscigenação de duas culturas. E escreve:
Chamo desde logo a atenção para o "mimodrama" La Femme et son Ombre, de que Claudel, no pós-guerra, aquando duma reposição com nova música de Alexandre Tcherepnine (Ballets de Roland Petit, Théatre Marigny, 1948) se recordará com divertida nostalgia de que o mesmo outrora lhe merecera «no mundo das gueixas e dos artistas, uma agradável popularidade».
... No Verão de 1922, Yamanouchi recebera, de meios ligados ao teatro kabuki, uma proposta de reposição, em Tokyo, de L´Homme et son Désir, com argumento de Claudel e música de Darius Milhaud que, no ano anterior, fora criado em Paris pelos Balés Suecos e obtivera um êxito de escândalo, tendo a música de Milhaud suscitado "alguns protestos", e a nudez audaciosa e "soberba" do protagonista, o coreógrafo Jean Borlin, alguma agitação. A gente do kabuki pensava retomar o argumento claudeliano, mas confiar a recomposição musical ao maestro Yamada Kosaku que fora, em Berlim, aluno de Max Bruch, e desempenhava, de regresso ao Japão, o papel de propulsor do arranque da música ocidental. Admire-se, a talho de fouce, a qualidade da informação sobre a atualidade artística ocidental, inclusive as suas manifestações vanguardistas, tal como a rapidez de reação dos meios do teatro tradicional japonês nesses longínquos anos vinte [Os tais anos ditos loucos, lembro eu].
Creio que Claudel descobriu Nijinsky em 1917/18, no Brasil, onde o bailarino russo dava uma série de espetáculos com os Balés Russos, e o poeta diplomata se encontrava então colocado como secretário de embaixada. E o que descobriu foi um bailarino que nostrazia o salto, isto é, a vitória da respiração sobre o peso... Fascinado também pelo encanto da música de L´Après-Midi d´un faune, de Debussy, e em companhia de Darius Milhaud, logo se deixou tentar pela ideia de escrever um guião para uma peça de balé, L´Homme et son désir, levada à cena, em Paris, no Théatre de Champs-Élysées, em junho de 1921, com direção musical de Inghelbrecht. O guião de Claudel põe em cena um homem adormecido a sonhar com o fantasma da «Mulher Morta», à luz da lua e seus reflexos. Apaga-se o fantasma, acorda o homem para dançar a paixão: «é a dança eterna da Nostalgia, do Desejo e do Exílio, bailado dos cativos e dos amantes abandonados, e que, durante noites a fio, leva a marcar passo, de uma a outra ponta da varanda, esses seres febris que a insónia atormenta, ou os animais encerrados que se atiram, uma vez mais e outra, às grades intransponíveis»... (cf. LA Danse, Junho de 1921).
Como terá o público japonês em seu coração recebido esta obra que, vinda de fora dele, por ele tão aplaudida foi? E por que meditações, hesitações e trabalhos, terão passado os artistas nipónicos que se dedicaram, com o autor francês, a lhe descobrir e encontrar uma expressão musical e cenográfica que a traduzisse? Mais do que tentação do modernismo, gosto da moda e emulação talvez os movesse - e comovesse - esse desejo inato de comunhão universal, de participação e partilha que, por vezes demais, infelizmente esquecemos. No caso presente, a criação desta obra de Claudel, em língua japonesa, num teatro japonês e para uma assistência japonesa, foi certamente um ato amoroso e de aturada procura de entendimentos e correspondências, como aliás deveria ser sempre até a simples tradução de um texto literário. Logo veremos o seu como e porquê. E nos surpreenderemos com a complexidade e atenção ao pormenor que exige qualquer encenação intencional, atenta e cuidada.
por meio da minha varinha mágica uno uma réstia de sol a um fio de chuva
Tentando manter o aspeto que Claudel pretendeu para a disposição dos seus versos em francês, traduzo em português uma das Cent Phrases pour Éventails, omitindo "apenas" a caligrafia dos kanjique o próprio poeta fez questão em traçar para exprimir vernaculamente o íntimo sentido do curto poema. É pois este um dos 100 (na realidade 172) reunidos naquela antologia, cujo autor tão bem assim prefacia:
É impossível para um poeta ter vivido algum tempo na China e no Japão sem considerar como estimulante o arsenal que ali acompanha a expressão do pensamento: o pau de tinta da China, primeiro, tão negro como a nossa noite interior; esfregamo-lo, borrifado de água, numa placa de ardósia e numa tacinha recolhemos o sumo mágico. Depois, basta nele molhar o pintor da ideia, esse pincel leve, quase etéreo, que, ao longo das nossas falanges do fundo de nós comunica a deflagração do poema. Alguns traços deliberados, tão firmes como os do inseto que, como longa broca, pela casca da árvore paralisa a presa invisível. Cuidemos apenas com levantar bem a nossa manga e precaver qualquer imprudente exalar da nossa narina que pudesse chocar com o sopro do espírito - e eis-nos em poucas palavras libertos do arnez da sintaxe e composta, sobre a brancura, somente pela simultaneidade, uma frase feita de relações! Escrita, digo eu, mas sobre quê? sobre o bojo, dessa olaria que, para nós, foi agora mesmo tirada do forno? - ou, melhor ainda, sobre essa asa que o leque é, pronta a propagar o sopro? Acolhe tu, na escuta do teu coração, essa palavra muda despachada por um hálito saído da mão!
[Fica-nos pensarsentir como o poema é uma respiração do corpo e da alma, a obra que só a união ontológica do corpo e da cabeça consegue produzir, e traduzir por um gesto natural e inconsciente da consciência. Gesto sempre mágico, pois apenas controlado pela sua própria secreta intimidade.]
O Cent Phrases pour Éventails é a coletânea que hoje, pela primeira vez ao fim de dezasseis anos, faço desses poemas, prontos para levantar voo neste nosso céu de França, depois de ter atrevidamente procurado misturá-los ao ritual dos enxames de haikai para que, no Japão, encontrassem a sua sombra. Quem me teria permitido - por certo não este pincel já vibrante no mais lasso das minhas falanges, nem este papel que se oferece, tão estaladiço como seda, tão tenso como corda no arco posta, tão fofo como o nevoeiro - resistir à tentação, ali tão ambiente em toda a parte, da caligrafia? Não sou, eu também, um especialista da letra? E a letra ocidental que, tal como pensada, se integra em palavras e em letras, não será ela, no gesto que a liga às suas vizinhas, algo tão animado e perentório como a sigla chinesa?
Não prolongarei aqui a tradução deste passo de Claudel, que poderá ser lido na íntegra no original publicado pela Gallimard em 1967 (Bibliothèque de la Pléiade: Paul Claudel - Oeuvre Poétique - pág. 697). Deixo todavia a sugestão de uma leitura atenta e reflexiva de um texto breve mas prenhe de inspirações essenciais a qualquer achega mais íntima desse real absoluto que Novalis descobriu na poesia.
Esta é fulcral na cultura clássica chinesa e na japonesa, em cuja literatura encontrou pistas e pausas novas de expressão e desenvolvimento. Tal qualidade da alma de uma cultura nem sempre é bem abrangida por tradutores, historiadores, críticos ou, simplesmente, gente de letras de outras origens. Sobretudo por aqueles que pouco resistem à tentação do recurso a nomenclaturas e ferramentas de análise próprias a culturas mais próximas das suas. Em Portugal, por exemplo, onde todas as obras editadas - de tradução, história, análise e "imitação" de haiku - não se alimentam de originais japoneses, mas vão beber a outras versões estrangeiras, quase sempre, aliás, com parca ou nenhuma informação sobre as fontes utilizadas e respetivas circunstâncias... Mas volto ao Claudel, para lhe pedir ajuda na abordagem pretendida, já que ele procurou até uma aproximação quase física - a prática da arte caligráfica - à escrita poética sínica e nipónica. Recorrerei agora a outro exemplo, o de um livrito de poemas editados em 1945, mas escritos por volta de 1936, creio que para uma conferência dada pelo autor, em Paris, sobre La Poésie Française et l´Extrême Orient, e então publicados, não sei se integralmente, na Revue de Paris: os Dodoitsu que, na edição em volume pela Gallimard, eram ilustrados a cores pelo pintor japonês Ricadu Harada. De acordo com Georges Bonneau, então professor no Institut Franco-Japonais no Japão, dodoitsu é um poema de vinte e seis sílabas (três heptassílabos e um pentassílabo final), modo natural de expressão da poesia camponesa japonesa: mas, testemunho humano de inaudita riqueza, fica a meio caminho entre a canção e o poema em ritmo fruste, curto de respiração, simplista na composição, demasiado fácil tecnicamente. Ao que se sabe, foram precisamente estas facetas populares que seduziram Claudel. Traduzo um trecho do brevíssimo prefácio que o próprio poeta escreveu em Março de 1944, para a edição em livro dos seus dodoitsu:
Estranha asa do poema! quando a canção ganhou voo, abandonado já o solo natal, quem dirá que feições, que reflexos ela será chamada a despertar em inesperados espelhos, que inspiração trará ao eco, que variações irá propor, numa qualquer riba distante, ao ouvido atento do pássaro trocista? Assim além, no Sol Nascente, sob os pés do camponês atrelado ao seu rodízio, do marinheiro içando a vela, ou no batimento rítmico do pesado malho que descasca o arroz, ou no embalo sonhador da jovem mãe (de pé calçado em curta peúga branca, ah!, mais do que o berço, é o bater do coração do seu menino que lhe transmite a sua pulsação!) nasce uma melopeia a que se vêm afeiçoar, como vindas delas mesmo, humílimas palavras. Do zumbido ingénuo, nativo, nasceu o dodoitzu, irmão rústico - mas a meu ver bem mais saboroso - do sapiente uta. Poucas linhas, alguns versos à medida de uma gorja de pássaro ou de elitro de cigarra. Um amador autóctone ouviu-os e transcreveu-os, da música nativa já só resta o resíduo verbal. Por sua vez, um estrangeiro, neste caso Georges Bonneau, professor no Instituto Franco-Japonês de Kyoto, interessou-se por eles, traduziu-os e fez uma antologia. E este acervo vem parar debaixo dos olhos de um velho poeta com longas estadias por lá, pelo país da Serenidade Matinal. [Abro aqui este parêntese, só para dizer que, nos anos em que estive acreditado no Japão e na Coreia do Sul, nunca vi tal designação ser referida ao primeiro, mas apenas, e tradicionalmente, à península da Coreia].
Vem-me à memória Michel Giacometti, corso e francês, que levou anos de vida a percorrer o Portugal rural que amava e a recolher tantos dodoitsu das nossas regiões. Graças a ele, conservamos o som e o sentido de muitas vozes que iam, em trabalhos, lazeres, festas e amores dos campos, exprimindo a alma das gentes que mais próximas viviam da relação à terra de Portugal... Quantas, tantas, dessas expressões já se calaram! Outras ficaram, algumas já de antes de Giacometti, como a do canto da mulher da Beira Baixa, cujo pisar faz rodar o rodízio da água de rega: temos o som e as imagens gravadas pelo corso, como a memória de uma canção de Coimbra que lhe reproduz a lírica e, na voz já morta de Edmundo Bettencourt, fiel, rezava assim:
Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos, já era para te ver!
Quando um dia eu for velhinha, acabada de morrer, olha bem para os meus olhos, sem vida inda sei te ver!
Mas lembrado daquele dito de ser o Japão o país em que o contrário também é verdadeiro, deixo - em francês para não escamotear intenções, nem sequer rimas - estes dois dodoitsu compostos por Claudel sobre as respetivas transcrições já feitas por Bonneau:
L´eau s’en va de la rizière L´eau s´en retourne à la rivière Hélas! c´est comme l´amour! On ne peut pas s´aimer toujours!
Sous la neige qui commence La montagne a fait silence Mais sensible à l´eau qui court Le moulin tourne toujours!
Os sopros e aromas dos ares que respiramos, o murmúrio das águas, o sussurro das árvores, os silêncios e segredos da natureza nossa mãe, e a voz íntima do espírito em cada um de nós, tudo nos ensina, na serenidade do nosso acolhimento, bem mais do que uma ciência que não saiba a diferença entre ter e ser... Vou chamando cultura - muito heterodoxamente para a intelectualidade reinante - ao conjunto de referências que vão constituindo a nossa ecologia mental e espiritual... Não sei o que é essa "cultura" de que por aí tanto se fala, quer no sentido de qualquer arte que nos deva merecer atribuição de subsídios, quer no do que possa ser uma qualquer aprendizagem da primazia ou fundamentalismo de conceitos, estilos ou autores "indispensáveis ou insubstituíveis", espécie de indispensável erudição.
A cultura será então, em meu entender, tão somente, o exercício de diálogo do meu espírito crítico com outros. Cada um formado a seu modo e em seu tempo, é certo, mas sempre independente, não necessariamente das suas heranças e memórias, mas do confinamento (como está na moda dizer-se) aos seus próprios limites. Porque suficientemente forte e generoso para entrar nas liças que o desafiam. A cultura é um convívio, uma forma serena, construtiva, de confrontação. A capacidade laboriosa de aprendermos uns com os outros.
E já que falávamos de Claudel, tem aqui cabimento recordar o que o mesmo, então embaixador de França em Tokyo, disse no discurso proferido por ocasião da inauguração, em 14 de Dezembro de 1924, da Casa ou Instituto Franco-Japonês na própria capital do Sol Nascente, acentuando a ideia inspiradora daquela instituição e a de "conhecimento", palavra esta ali bem sublinhada pela sua carga claudeliana de "nascimento com" (co-naissance):
É muito importante conhecer os povos estrangeiros, mas sem esquecer que esse conhecimento não se adquire nos livros, nem, uma vez por todas, que os povos vivem, se modificam e desenvolvem, de modo que é impossível conhecê-los sem um íntimo e contínuo contacto com eles.
Voltarei a referir Claudel diplomata, quando escrever sobre os contactos desenvolvidos entre potências europeias (com relevo para a Alemanha, o Reino Unido e a França) e o Japão das eras Meiji e Taisho, anteriores à era Showa (imperador conhecido por Hirohito), período em que se afirmaram as forças militares e industriais nacionalistas que levariam o Império do Sol Nascente à catástrofe da guerra. Aproveitarei a oportunidade para incluir a figura coeva de um Portugal apagado. Por agora, e para não deixar a poesia, traduzo um Haikai, escrito em francês e inserido numa coletânea de poemas (todos em japonês) de poetas nipónicos, publicada em Dezembro de 1923, em memória do terrível terramoto de 1 de Setembro desse ano. O então embaixador de França foi o único estrangeiro convidado a participar. Recorda a sua própria experiência dessa noite em que se deslocava a caminho de Yokohama, para encontrar a filha de que estava sem notícias. Tal poesia ilustra, sem pretensiosismos, como é possível aculturar a expressão de emoções e sentimentos. Acrescento a lembrança de que Paul Claudel (ou Kuralodero, na fonética do apelido escrito em katakana, aqui reproduzida em romaji) deu a um tratado constitutivo do seu Art Poétique o título de Traité de la Co-naissance au monde et de soi-même. Passo ao haikai:
À minha direita e à minha esquerda uma cidade arde a lua entre as nuvens é como sete mulheres brancas. Com a cabeça em cima de um carril o meu corpo mistura-se ao corpo da terra fremente ouço a última cigarra. Sobre o mar sete sílabas de luz uma só gota de leite.
Perdi-me (?) um pouco por outros devaneios, e só agora regresso à descoberta do haiku, seguindo citações de escritos de Mutsuo Takahashi, retomando uma análise do desempenho do hokku enquanto ovo da independência do haiku como poema:
Embora não fosse totalmente independente, o hokku continha dois elementos que lhe permitiam uma certa independência: o kireji (palavras cortantes) e o kigo (palavras sazonais). A inclusão de kireji diferencia formalmente o hokku dos outros versos. O kigo é o elemento vital que sustém, do interior, a independência do hokku. Gostaria de falar do kigo com mais vagar.
Porque a forma de cinco-sete-cinco sílabas é a mais curta forma poética fixa imaginável, o hokku deve conter nele o elemento que lhe confira a sua própria vitalidade. Tal elemento pode achar-se a emergir na mudança de estações capturada no kigo. As flores desabrocham na primavera; os cucos cantam no verão; a lua é mais linda no outono; a neve cai e cobre o chão no inverno.
No kigo, as flores que desabrocham na primavera, especialmente as de cerejeira, são escolhidas para representar a essência das florações; a lua outonal para representar a lua de todas as estações. Claro que há flores que podem abrir no verão e no outono; e também a lua brilha no inverno e na primavera. Assim, ao facultar a uma imagem a exemplificação de um importante aspeto das estações, o kigo pode ser visto como um leque de convenções em que concordam os poetas que escrevem renga e haiku.
Os kigo são reunidos em saijiki (almanaques sazonais), onde são classificados por estações e ilustrados por haiku. Tais saijiki acabam assim por ser quer compilações do sentido japonês das estações, quer antologias de excelentes hokku e haiku. [Não sei porquê, tais almanaques, mutatis mutandis, lembram-me um tantinho os nossos Borda d´Água...]
Ele mesmo poeta e compositor de haiku, Mutsuo Takahashi não deixa de realçar até que ponto saijiki e haiku pertencem e partilham uma herança comum do povo japonês, visto que, hoje ainda, cerca de 10% da população escreve haiku e consulta saijiki. Lembra-me, a mim, o lugar da quadra, por exemplo e sobretudo, na poesia popular portuguesa. E surgem-me, nesta manhã tão chuvosa de Maio, imagens de manjericos de Santo António com as suas bandeirinhas de versos amáveis que, dentro de um mês, ou menos ainda, virão perfumar-nos os ares e as almas... Regra alguma, nem conceito, nem preconceito poderão tornar-nos mais belo, transparente ou acessível o som essencial dessas vozes todas que um simples amor, aquém e além de nós desperta. E só as traduzimos sentindo nos com elas, como criança cujo choro se afoga na ternura da voz amiga que lhe fala.
Como adiante veremos, há, por esse mundo, alguns, raros, grandes poetas que procuram, como disse Paul Claudel, aplicar nas suas línguas, transformando-os conforme o seu próprio gosto, os princípios da poesia japonesa, animados pelas seguintes ideias: cada poema é muito curto, de uma frase apenas, aquilo que possa sustentar, em som, sentido, palavras, um hálito, um sopro, ou o bater de asa de um leque. Por isso terá Claudel chamado ao seu livro de poemas curtos - a que voltarei - Cent frases pour éventails... Mas por aí também anda muito pretensioso - e alguns bastantes poetas medíocres - a "explicar técnicas" do haiku e até a publicar livros, supostamente obedientes a essa forma japonesa, de composições suas próprias... Mas desses não rezará a história. Mas vamos então aos casos bons e sérios, e volto a citar Mutsuo Takahashi:
Poetas eminentes de muitos países do Ocidente, e não só, andaram a tentar escrever haiku na sua língua. Na maioria dos casos, tentam adaptar cinco-sete-cinco às sílabas nas suas próprias línguas, e utilizar uma palavra que exprima natureza. Tive certa vez a oportunidade de traduzir para japonês todos os dezassete haiku que Jorge Luís Borges compusera segundo a forma nipónica. (Borges escreveu dezassete haiku em cinco-sete-cinco, por outras palavras, dezassete poemas de dezassete sílabas!). Gostei de traduzir os seus haiku.
Quais poderiam ser as possibilidades do haiku na futura literatura global, no movimento poético global? Gostaria de deixar aqui uma previsão. Devido à sua extrema brevidade, o haiku muitas vezes coloca o seu tema no plano da frente, escondendo atrás a primeira pessoa do singular do poeta. Em muitos casos tal tema é uma coisa concreta, e tais coisas frequentemente se exprimem por kigo. Consequentemente, pergunto-me de isso nos poderá dar ou não um palpite sobre como os humanos deverão habitar a terra no futuro.
Aqui deixo a dica e a interrogação. Mas no texto de Em rebusca do Japão III, voltarei a Claudel e à união entre poesia e caligrafia...