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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

103. GUERRA E PAZ E A REPETIÇÃO DA HISTÓRIA


O pacifismo, ao defender a paz como bem supremo, faz o seu percurso ideológico e político desenvolvendo-se, no seu sentido mais restrito, ao recusar o uso de meios violentos contra toda a criação ou a espécie humana (ecologistas), quer no mais amplo, ao incluir as doutrinas defensoras da conciliação internacional, na base de organizações   e de políticas como a SDN, a ONU, a DUDH, a Ostpolitik e o desanuviamento. 

Baseia-se numa antropologia tida essencialmente como otimista, onde predomina a paz, tendo como base filosófica a Paz Perpétua de Kant e a ideia de que o homem é naturalmente bom.     

É uma ideia culturalmente e espiritualmente revolucionária em termos civilizacionais, que não tem qualquer tipo de reflexo de uma ordem natural das coisas, o que é demonstrado pela repetição da História ao longo dos tempos, não justificando o otimismo excessivo do pacifismo.   

Com efeito, ao lado do aprofundamento da globalização, integração regional e aumento da cooperação, materialização e positivação do conceito de complementaridade de ação das organizações internacionais, reapareceram violentas e agressivas afirmações de nacionalismos e violações dos direitos humanos. Algumas das mais recentes nos Balcãs (ex-Jugoslávia), no Ruanda-Burundi e Síria. E, atualmente, com a invasão da Ucrânia, após duas guerras mundiais com epicentro europeu, contrariando quem tinha tal factualidade como uma regressão improvável.  

É a antropologia pessimista que tem por fundamento filosófico a teoria de Thomas Hobbes de que o Homem é mau, é um lobo para o Homem, defendida pelos belicistas, dada a inevitabilidade da guerra que acompanha, em permanência, o ser humano, adaptada pelos realistas para quem o Estado é o único ator internacional válido relacionando-se com os outros (Estados) movido pelo interesse nacional, maximizando o poder, se necessário o militar, através da guerra, sendo esta boa se for um meio para atingir os fins.   

Tem havido sempre uma repetição da História, quanto a guerra e paz. 

O desejável seria nunca haver repetição da guerra, havendo sempre paz.

Movimentos generalizados da opinião pública a favor da paz são louváveis, mas há obstáculos à sua realização, como o terrorismo, tensões religiosas, intolerâncias étnicas, xenofobia, racismo, supremacias imperialistas ou outras, fazendo esquecer os esforços da paz, sem excluir o poder como fim ilimitado, sustentado pelo puro domínio e ganância do poder pelo poder.    

É a guerra e paz e a repetição da História.   

O que não justifica que nos conformemos com a repetição da guerra, pois a paz é decorrência inelutável do progresso espiritual da Humanidade, árdua tarefa, que vem de há muito, não sendo, para muitos, uma mera utopia.               

 

29.04.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR...

  


Quando por razões ideológicas, se negou a referência ao Cristianismo num projeto de Constituição Europeia, recusaram-se as raízes e cometeu-se um quase-crime de lesa história. Foi algo de mesquinho, na medida em que não se negou apenas a afirmação de uma realidade, mas teimou-se em não a compreender que o Cristianismo é culturalmente multirradical. Também se disse que o nosso reconhecimento nos abre ao conhecimento dos outros. Aliás, um dos obstáculos sérios, por exemplo, ao diálogo islâmico-cristão está no facto de ninguém perceber com clareza quais são os nossos valores, aqueles que deveriam estar na mão que a Cristandade deveria estender ao Islão. Poderá parecer paradoxo, mas é a perceção desapaixonada e serena da nossa identidade, a consciência perspetiva, no tempo e no modo, dos nossos valores, que nos aproxima dos outros e nos permitirá racionalmente interrogar-nos por que não poderá, por exemplo, a Turquia, maioritariamente muçulmana, aceder à União Europeia? Ou, positivamente: como poderá fazê-lo? Não tem, certamente, e sabe-o, que negar a matriz cristã da Europa, com a qual, aliás, lidou durante séculos. Tampouco tem de se converter ao Cristianismo, pois a própria tradição cristã da dignidade da pessoa humana fundou, no Iluminismo e depois dele, o respeito ético e jurídico da liberdade religiosa... Tal como sabemos, uns e outros, cristãos e muçulmanos, que nem sempre os nossos poderes instituídos, políticos e religiosos, respeitaram nos outros a dignidade divina da pessoa humana e a liberdade da sua escolha, também houve, na Cristandade e no Império Otomano, admiráveis exceções de tolerância e acolhimento. Também nestes valores comuns que, em culturas diferentes, traduzem o princípio fundador que é o da misericórdia de Deus, deveremos encontrar um caminho e o seu sentido, de harmonia, não como receita, mas como procura. Há que lembrar ainda, no diálogo com o islamismo, um princípio que se foi afirmando ao longo da história do Cristianismo europeu e, finalmente, conduziu ao Estado laico das democracias atuais: o da distinção entre poder espiritual e temporal, entre a submissão a Deus e o tributo a César. Desde a tentação constantiniana às lutas entre os sacro-impérios e Roma, entre os reis de Portugal e o Papado, passando por guelfos e gibelinos, cismas de Avignon e tratados de Tordesilhas, até à unificação da Itália e às suas sequelas, aprendemos muito. Ao fim e ao cabo, o que Jesus Cristo disse: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Neste princípio assenta a liberdade religiosa, que o Estado constitucional e democrático deve garantir até como contrapeso à própria tentação totalitária do poder político. Universitário e escritor muçulmano, Abdelwahab Meddeb, no seu livro com um título desafiador, "Pari de Civilisation", para fundamentar a sua visão cosmopolita da religião cita Kant e a sua proposta "Para a Paz Perpétua": "Diversidade das religiões? - curiosa expressão! Tão singular, como se falássemos de morais diversas. Pode bem haver várias maneiras de crer, por força da história dos meios utilizados para a promover, os quais pertencem ao campo da erudição e dos livros religiosos (o Zendavesta, os Vedas, o Corão, p.ex.). Mas só pode haver uma religião valendo para todos os homens e todos os tempos. Assim, os modos de crer só podem conter o veículo da religião, o que é contingente e pode variar segundo a diversidade dos tempos e dos lugares". Muito interessante é ainda verificar que Abelwahab Meddeb refere que a expressão "paz perpétua" surge, pela primeira vez em Nicolau de Cusa (herdeiro espiritual do místico dominicano medievo Mestre Eckhart), na sua obra "De Pace Fidei", escrito durante a guerra com os turcos, que conduziu à tomada de Constantinopla em 1453. Em tempos tão conturbados, Nicolau de Cusa, respeitado homem de Igreja e amigo de Papas, procurou como que "estabelecer uma paz perpétua em religião": "Apesar da diversidade dos ritos, a paz da fé permanece todavia inviolada". Proximamente regressaremos ao tema das fronteiras da Europa e do desafio da definição geográfica, política e cultural da União Europeia, bem como à análise dos critérios que, para o efeito, têm sido propostos. Por agora, interroguemo-nos apenas sobre se serão suficientes os princípios definidos no Conselho de Copenhague em 1993: o Estado de direito, a estabilidade das instituições, a democracia pluralista, o respeito das minorias, a economia de mercado e a incorporação nas diferentes esferas jurídicas nacionais, do "acquis communautaire"... Pois tudo se constitui com objetivos inspirados pelo desejo de realização de valores fundadores. A falta de visão a prazo e a ausência de profundidade de reflexão são, no momento em que escrevo estas linhas, fustigadas por Fernando Henrique Cardoso, contestando o consumismo como guia. Por aí me ocorrem estas palavras de Zigmunt Bauman: "O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como os habitantes da líquida, consumista e individualizada sociedade moderna pensam o bem-estar ou imaginam o ´bem social´ (...) é mais notável, não pelo que classifica de modo equivocado ou claramente erróneo, mas por aquilo que nem chega a classificar, que deixa totalmente fora do cálculo, negando qualquer relevância típica à questão da saúde nacional e do conforto individual e coletivo". No presente debate sobre a "crise financeira" na Europa, é evidente a preocupação de cada um com o que pode consumir, dos políticos com as suas obsessões, e das nações europeias com o seu egoísmo nacional. Falta-nos espírito. O que nos fará sair da " crise" não será o debate de modelos econométricos e contabilísticos impostos, sem outra razão que a das previsões matemáticas (que vão falhando), e muito menos a exigência infantil do consumismo misturado com "direitos adquiridos". Temos, no fundo, de repensar o sentido da vida e o valor (esquecido) da pessoa humana.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 28.09.12 neste blogue.

PENSAR UMA EUROPA PACÍFICA

  


Por volta de 1715, um padre francês, o abade de Saint-Pierre, publicava uma obra intitulada "Projeto para tornar a paz perpétua na Europa", em que defendia a criação de uma instância europeia política, acima das nações, que asseguraria o governo da paz entre elas e uma sociedade europeia harmonizada. Oitenta anos mais tarde, Immanuel Kant retoma o propósito e o título de "Projeto para a paz perpétua", para adiantar a ideia de que os governos dos povos devem assentar num sistema representativo e com separação de poderes, e as nações formarem uma aliança federal. Surge esta proposta em contraponto à vocação hegemónica da revolução francesa, que Napoleão viria a incarnar. Curiosamente, é depois da derrota do imperador francês, antes e depois de Waterloo que, no Congresso de Viena (1814-15), as quatro potências vencedoras (Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido) discutirão o projeto... Até ao Congresso de Berlim (1878), e deste até à Conferência de Londres (de dezembro de 1912 a agosto de 1913) o Concerto Europeu discutirá e procurará resolver pacificamente questões que vão da vigilância sobre a França à sua integração no grupo, da revolta liberal em Nápoles à independência da Grécia e constituição da Bélgica, do comércio de escravos à repartição colonial da África (situações estas em que Portugal estará diretamente envolvido)... É também a era da constituição da super-Alemanha de Bismarck, do Risorgimento italiano e da redução dos Estados Pontifícios ao Vaticano, do definhamento do império otomano, e a anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria-Hungria, da oposição entre esta e Napoleão III, da derrota deste (em 1870) no conflito franco-alemão precedendo a IIIª República e prenunciando a 1ª Grande Guerra. Esta, cujos motivos Barbara Tuchman tão bem explanou em "The Tower of Proud", marca o fim do séc. XIX e de "uma certa Europa". No seu "Le Concert Européen - aux origines de l’Europe (1814-1914)", Jacques Alain de Sédouy encontra nesse tempo uma consciência de comunidade europeia como cultura e civilização comuns e garante da paz. É curioso ver como foi Alexandre I da Rússia um dos seus mentores, e aquele que mais acreditava na cristandade como fundamento da Europa. Interessante também, ver-se como já então se considerava a hipótese da participação turca. A revolução bolchevique, cem anos depois de Alexandre I, implantando a União Soviética e dividindo, na sequência da 2ª Grande Guerra, a Europa em dois blocos, exclui (até quando?) a Rússia do projeto comunitário, enquanto a preocupação em opor, ao fundamentalismo islâmico, um estado muçulmano democrático abre a perspetiva da inclusão europeia da Turquia hodierna. Citando Sédouy, vamos então ao séc. XIX: "É Castlereagh, ministro britânico dos negócios estrangeiros, que correntemente fala de ‘commonwealth of Europe’. É Alexandre I que evoca ‘a grande aliança’ dos Estados europeus. É Metternich que, referindo-se ‘aliança’, fala do «grande sistema pacífico da Europa» e escreve a Wellington em 1824: «Desde há muito que a Europa tem, para mim, o valor de Pátria». São os negociadores do tratado que funda a independência da Bélgica que declaram em fevereiro de 1831: «Cada nação tem os seus direitos próprios; mas a Europa também tem o seu, foi a ordem social que lho deu. É Guizot que, diante da Câmara, a 18 de novembro de 1840, distinguindo claramente a Europa das potências que a constituem, declara: ‘A grande política e o interesse superior da Europa e de todas as potências na Europa é a manutenção da paz em toda a parte, sempre’. É o Congresso de Paris de 1856 que declara a Turquia «admitida a participar nas vantagens do direito público e do concerto europeus». São os participantes no Congresso de Berlim m 1878 que se dizem, no preâmbulo do tratado que assinam, animados de ´um pensamento de ordem europeia´. São os embaixadores das potências em Constantinopla que, nas diligências feitas por ocasião das crises que sacodem o Império Otomano, entre 1880 e 1912/13, falam sempre «em nome da Europa». Outro paralelismo curioso entre aspetos do Concerto Europeu e a presente União Europeia é o da "hierarquia" de Estados. Leia-se esta carta de Frederico de Gentz, braço direito de Metternich, ao príncipe Karadja, em 1818: «O sistema político que se estabeleceu na Europa desde 1814 e 1815 é um fenómeno inédito na história do mundo. Ao princípio do equilíbrio ou, melhor dizendo, dos contrapesos formados pelas alianças particulares, princípio que governou e, por demasiadas vezes, também perturbou e ensanguentou a Europa durante três séculos, sucedeu um princípio de união geral, reunindo a totalidade dos Estados por um laço federativo, sob a direção das principais potências... Os Estados de segunda, terceira e quarta ordem submetem-se tacitamente, e sem que nada jamais tenha sido estipulado a esse respeito, às decisões tomadas em comum pelas potências preponderantes; e a Europa parece enfim não formar senão uma grande família política, reunida sob um aerópago de sua própria criação, cujos membros se garantem, a si mesmos e a cada uma das partes interessadas, o gozo tranquilo dos seus direitos respetivos. Esta ordem de coisas tem os seus inconvenientes. Mas é certo que, se a pudermos tornar duradoura, seria a melhor combinação possível para assegurar a prosperidade dos povos e a manutenção da paz que é uma das suas primeiras condições". Proximamente refletiremos sobre esta questão da organização política da Europa e, antes ainda, na definição do próprio conceito de Europa: como será possível abrir um projeto europeu que traduz uma herança cultural própria da cristandade europeia, mas também se inspira no ideal da paz, a outras nações dispostas a partilhar politicamente aquilo a que Bourlanges chamou «a afirmação organizada de uma interdependência de valores escolhidos»?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 21.09.12 neste blogue.