Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
No improvisado salão paroquial velhas cadeiras desalinhadas anunciavam um filme sobre «a vida de Cristo». Éramos crianças, veraneantes, figueirenses, crianças comungantes mas ainda sem tormenta e com os adultos curiosos ou tomados de fastio fomos, oito da noite, para a vida de Cristo. Mas alguém trocou os filmes ou espalhou carnavalesco engano, e logo na primeira bobine entendemos que não era a Palestina que o facho de luz poeirento projectava no écran tão amador que só podíamos chamar pantalha. E aos poucos entrámos na narrativa. Vera Cruz, western heráldico, napoleónico, quase operático. Morria gente (que ressuscitava fora de campo) e houve quem achasse que não sendo sobre Cristo era a fábula imprópria antes de dormirmos. Mas o acampamento estival das crianças tomava partido, vitoriava, abraçava com braços pequenos o efeito de alienação, as sombras humanas. Julgo que brilhavam no fim os nossos olhos infiéis, belicosos, inimigos de Maximiliano. Esvaída para sempre a surpresa, a pureza, o motim de fascínios, a noite clara. Nunca mais foi a mesma, a vida de Cristo.
in Menos por Menos – Poemas Escolhidos, 2011
Life of Christ
In the improvised church hall, disordered rows of chairs announced a film on ‘the life of Christ’. We were children, on holiday at the seaside, who still took communion untroubled, and in the company of curious or loafing adults went at eight sharp to the life of Christ. But someone mixed up the films or set up a mischievous prank, and from the start we knew it was not Palestine that the dusty beam of light projected onto such a makeshift screen that we could only call a sheet. And soon enough the story swept us on. Vera Cruz, heraldic western, napoleonic, almost operatic. People died (and resurrected out of sight) and someone thought that not being about Christ it was an unsuitable tale for us to see at bedtime. But the children’s summer camp took sides, prevailed, embracing with full, small arms the alienation effect, the human shadow. In the end, I believe our eyes had the shine of Maximilian’s treacherous, belligerent enemies. Forever gone the surprise, the purity, the mutiny of fascination, the clear night. It was never the same, the life of Christ.
Não deves abrir as gavetas fechadas: por alguma razão as trancaram, e teres descoberto agora a chave é um acaso que podes ignorar. Dentro das gavetas sabes o que encontras: mentiras. Muitas mentiras de papel, fotografias, objectos. Dentro das gavetas está a imperfeição do mundo, a inalterável imperfeição, a mágoa com que repetidamente te desiludes. As gavetas foram sendo preenchidas por gente tão fraca como tu e foram fechadas por alguém mais sábio que tu. Há um mês ou um século, não importa.
in Menos por Menos – Poemas Escolhidos, 2011
Drawers
You should not open closed drawers: they were locked for a reason, having now found the key is a happenstance you can ignore. You know what you’ll find inside drawers: lies. Many paper lies, photographs, things. Drawers are home to the world’s imperfection, the unalterable imperfection, the sorrow that repeatedly feeds your disillusion. Drawers have always been packed by people as weak as you and locked by someone wiser than you. A month ago, never mind a century.
Coordenador da coleção de poesia da Tinta-da-China, cronista, crítico literário, é um dos membros do Governo Sombra, foi diretor interino da Cinemateca Portuguesa, é um extraordinário poeta, tradutor excelente e entre múltiplas atividades exercidas com a qualidade que lhe é prumo constante, organizou também um volume de ensaios de Augustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia e, Deus como interrogação na Poesia Portuguesa com Tolentino Mendonça.
Escuto-o com atenção e leio-o, tendo sempre presente que lhe encontro uma certa tristeza inescapável que, para mim, lhe serve de fundamento à verdade, estando esta na base da sua perceção num mundo extenso de curiosidades quase todas escolhidas. Às vezes, quando nos identificamos com as posturas de alguém é porque surgem similaridades que temos como reais e “partilhadas”. Em mim a melancolia e a capacidade para a superar são a base da vida do intelecto e creio sentir esta realidade em Pedro Mexia.
Ando mão na mão com o seu livro uma vez que tudo se perdeu.
Releio
Amigo Inimigo
|Dylan Thomas|
(…) tu meu amigo
(…) que escondias a mentira quando ousadamente devassavas
o meu segredo mais desamparado
(…) Convoco-te agora para que te assumas como ladrão
(…) Foste outrora aquela criatura tão franca, tão alegre,
um parente que nada exigia
e que eu nunca quis defraudar,
enquanto deslocavas a verdade na atmosfera.
E sobre a poesia de Thomas Hardy, pode ler-se neste livro:
«o tempo passa nos poemas. O tempo é o meio através do qual o presente se torna irrecuperável, e no qual a observação se torna memória.(…)
a esperança e a felicidade destruídas, simplesmente porque o tempo passa»
E
Quarenta e Dois
(…) Escrevo, mas tudo o que escreva está submerso pelo queixume
dos pássaros que enchem as arvores e se ouvem no futuro.
Inelutavelmente, as nossa futuridades também surgem de profiláticas autoilusões, e bem creio que Pedro Mexia sabe que de um modo ou de outro a esperança sofre de um vício de frustração e ainda assim é a responsável pela luz da madrugada.
Este o modo como leio a escrita deste poeta de que tanto gosto: Pedro Mexia.