Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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1. Desgraçadamente, como disse o cardeal Carlo Montini, antigo arcebispo de Milão, também jesuíta e que o Papa Francisco quer seguir, a Igreja anda atrasada pelo menos 200 anos.
Este atraso é infeliz concretamente no que à pena de morte diz respeito. É uma vergonha, mas até 1969 no Estado do Vaticano existia a pena de morte. Podia não aplicá-la, mas estava vigente e só foi derrogada formalmente na Lei Fundamental em 2001 pelo Papa João Paulo II. E ainda constava até 2 de agosto de 2018 no Catecismo da Igreja Católica a legitimação da pena de morte. Felizmente, como aqui escrevi na crónica da semana passada, o Papa Francisco reescreveu esse artigo do Catecismo e quer que a Igreja faça campanha a favor do fim da pena de morte em todos os países e pronuncia-se contra a pena de prisão perpétua. "Nunca se pode castigar sem esperança; é por isso que sou contra a pena de morte e também contra a prisão perpétua interpretada como sendo "para sempre". Porque a todos deve ser dada a possibilidade de regeneração, a todos deve ser restituída a esperança.
2. Evidentemente, aqui chegados, coloca-se, concretamente ao crente, a questão da doutrina do inferno, que seria a condenação definitiva, eterna. Pergunta-se: alguém merece a condenação definitiva, eterna? Qual a relação entre uma liberdade finita no tempo e uma eternidade falhada, definitivamente, eternamente falhada? Uma pergunta imensa e dramática. A pergunta tem sentido, ao pensar na inscrição que, segundo A Divina Comédia, de Dante, na linha do "dogma" católico, se encontra à porta do inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch"entrate" (abandonai toda a esperança, vós que entrais).
Dizia-me uma vez o filósofo Ernst Bloch, numa conversa em Tubinga: pensando no inferno, seria melhor não existirmos, e "todos os condenados no inferno estariam de acordo comigo". Aliás, o inferno seria o sofrimento eterno sem qualquer finalidade... De modo paradigmático, David Hume argumentou (socorro-me da citação feita pelo teólogo Andrés Torres Queiruga): "É inaceitável um castigo eterno para ofensas limitadas de uma criatura frágil, e, ainda por cima, esse castigo não serve para nada, uma vez que se dá quando toda a peça está acabada, concluída."
Na presença do Deus que é amor incondicional, como diz a Primeira Carta de São João, julgo que também é legítimo pensar e esperar que, seja qual for o mal feito, haverá sempre algum ato de amor de todos, de cada uma e de cada um, que permite a Deus recriar para a vida eterna feliz todos os homens e mulheres..., mesmo se as possibilidades não realizadas neste mundo - a vida aqui, na liberdade, tem de ser tomada a sério e com consequências - Deus não as possa eternizar, elevando-as à plenitude. Seja como for, a Igreja nunca declarou que alguém esteja condenado no inferno. A doutrina sobre o inferno diz apenas sobre a grandeza da liberdade e de como é necessário tomá-la eminentemente a sério.
Dada a importância do tema, permito-me explicitar. Seja como for, todas as pessoas, crentes ou não, perguntam pelo sentido último da sua existência, vivem a angústia da liberdade e a exigência radical da justiça - bem e mal não são equivalentes -, e foram atormentadas pelos horrores do inferno e sabem como isso serviu o poder da Igreja...
Houve um tempo em que o inferno era um tema central dos sermões. Teólogos e pregadores, aterrorizados por uma sexualidade reprimida, por dúvidas atrozes de fé, por uma agressividade latente, compensaram a sua própria angústia projetando-a sobre os outros. Tudo com a melhor das intenções. Afinal, se o que esperava os hereges, os judeus, as bruxas, etc., era sem dúvida o inferno (lembre-se a doutrina do Concílio de Florença, em 1442, segundo a qual quem está fora da Igreja Católica "cai no fogo eterno, preparado para o demónio e os seus anjos"), então deveriam arder desde já, até porque, mesmo que não fosse possível salvar as suas almas, pelo menos a sua morte, pela espada, pela tortura e sobretudo pelo fogo, serviria de advertência para outros e a sua salvação. Assim, escreve Hans Küng, "conversões forçadas, condenação dos hereges à fogueira, perseguições dos judeus, cruzadas, a paranoia das bruxas, guerras de religião em nome de uma "religião do amor", tudo isso custou milhões de vidas humanas". O terrorismo exercido sobre as consciências pelas torturas do inferno e a que se estava condenado por um único pecado mortal, um pecado que andava principalmente ligado ao sexo, serviu realmente para a manutenção do poder da Igreja, mas é bem possível que, como escreveu o historiador católico Jean Delumeau, "porque as Igrejas do Ocidente não prestaram atenção suficiente aos argumentos dos "hereges" que recusavam acreditar na eternidade do inferno, se produziu desde o século XVI um movimento de recusa do cristianismo, identificado pelos libertinos como uma teologia do Deus que castiga".
Mas bem e mal não se identificam. Se a história tem um sentido, ele só pode ser o da liberdade. Então, o que se chama o dogma do inferno, na sua dramaticidade, diz: és livre, não tens a salvação assegurada automaticamente, podes falhar radical e definitivamente o sentido da tua vida. Quando olhamos para a história da humanidade, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade gratuita, de suor, de lágrimas, de sangue, de desespero, de traições, de desprezo, de indiferenças, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas, causados por homens e mulheres a outros homens e mulheres e, concretamente, inocentes, de tal modo que a existência se tornou para eles absurda, um verdadeiro "inferno", compreendemos e exigimos, desde a raiz do nosso ser, que o algoz e a vítima não podem ter a mesma sorte.
Por paradoxal que pareça, o dogma do inferno é a proclamação mais radical da liberdade. O inferno como possibilidade real para mim é advertência para a seriedade radical da existência livre, que de modo nenhum pode ser reduzida a bagatela ou vulgaridade. Neste sentido, o inferno não significa o castigo da tortura infligido "de fora" por um Deus implacável e sedento de vingança, mas o falhanço total da existência a que o homem pode autocondenar-se. Então, como interpretar teologicamente o inferno?
Deus não condena ninguém, porque Deus é só Amor. Pode a pessoa autocondenar-se ao inferno? Significativamente, a Igreja nunca declarou que alguém em concreto esteja no inferno, nem mesmo Judas ou Hitler. No caso-limite de haver realmente alguém que se feche radical e obstinadamente ao amor, excluindo definitivamente Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque o não aceita, anula-se definitivamente. Este é o "inferno" enquanto "segunda morte", de que fala a Bíblia: o homem ou a mulher radical e obstinadamente maus não participam na plenitude da vida eterna de Deus, mas também não são eternamente torturados, pois, pela morte, simplesmente já não existem. Na morte, os maus são entregues à sua própria lógica: para eles, não pode haver vida eterna: a sua morte, escreveu o grande teólogo E. Schillebeeck, "é realmente o fim de tudo", o nada puro e simples, a morte definitiva, eterna.
O teólogo Andrés Torres Queiruga pensa, com razão, que se pode esperar mais e ir mais longe. Ninguém é absolutamente mau, e poderá a liberdade finita ter "uma opção tão absoluta que a leve a escolher o nada?". Assim, "conjugando os dois polos - um Deus que quer fazer tudo para salvar e uma liberdade que é limitada -, chegar-se-ia a uma autêntica mediação: Deus salva quanto e na medida em que "pode", isto é, quanto a liberdade finita lhe permite. Dado que esta não é total, Deus salva aquele resto de bondade que parece não poder ficar anulado por nenhuma ação má. Haveria, portanto, condenação real e definitiva, pois perde-se tudo aquilo que não se permite a Deus salvar, mas desapareceria a desproporção que parece intolerável entre o finito da culpa e o infinito das consequências". Há salvação, mas com "perda eterna de possibilidades, plenitude e felicidade": a pessoa empequeneceu-se por sua culpa e estará eternamente "menos realizada do que poderia".
Este é o sentido de eu dizer: não há inferno. Para maior explicitação, permito-me remeter para o meu recente livro: Conversas com Anselmo Borges.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 NOV 2019
Em 2017, celebrou-se os 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal. Tive então na Universidade de Coimbra, a convite de José de Faria Costa, ex-Provedor de Justiça, uma intervenção sobre o tema, com o título “Teologia e Pena de Morte”. O que aí fica é uma síntese dessa intervenção, com alguns acrescentos posteriores, e gostaria, à maneira de intróito, de lembrar que os cristãos são discípulos de um condenado à morte, executado na cruz…
1. O que diz a Bíblia sobre a pena de morte? Há o mandamento: “não matarás”, com o sentido de “não assassinarás”. Mas, no Antigo Testamento, estavam sujeitos à pena de morte não apenas o assassinato, mas muitos outros delitos, como a idolatria, a blasfémia, a violação do Sábado, o homicídio, vários actos do domínio sexual, como o adultério, o incesto e a homossexualidade… “Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte”. “Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um acto abominável; serão os dois punidos com a morte”. Etc. Mas, note-se, no Antigo Testamento, também se pode ler que a justiça de Deus é diferente da dos homens e, por exemplo, Caim, que matou o irmão, Abel, vai para o exílio e é marcado para que ninguém o mate.
Pelo contrário, no Novo Testamento, não há afirmações que refiram de modo claro, unívoco e contundente a pena de morte. De facto, por exemplo, a tentativa de justificá-la, recorrendo à citação de São Paulo na Carta aos Romanos, na qual se refere a obediência devida à autoridade do Estado que tem o poder da espada, é indevida, pois trata-se apenas de uma constatação e não de um estar de acordo com a pena de morte.
O que realmente verificamos no Novo Testamento é um salto qualitativo em relação ao Antigo Testamento. Pense-se na adúltera: “Quem entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”, e Jesus enviou-a em paz. Toda a pregação do Sermão da Montanha, com as Bem-aventuranças, é um apelo ao perdão e à renúncia à violência. Contra a lei de talião: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente”, Jesus diz: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra face. Ouvistes o que foi dito: deves amar o teu próximo e odiar o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem… Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o juízo com que julgardes sereis julgados e a medida com que medirdes será a que servirá para vós.” Pedro perguntou: “Devo perdoar sete vezes? E Jesus: setenta vezes sete”, o que significa: perdoar sempre. Jesus na Cruz rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, lição aprendida pelos discípulos, pois Santo Estêvão, por exemplo, nos Actos dos Apóstolos, enquanto o apedrejavam, também fez a mesma oração.
2. Neste enquadramento, é, portanto, necessário dizer que, para este debate sobre a pena de morte e o seu fim, o cristianismo foi fermento decisivo… No entanto, é preciso ao mesmo tempo dar conta da constatação de que, com excepção da Igreja primitiva, ao longo dos tempos, depois da viragem constantiniana da Igreja, a maioria dos teólogos não só não se opôs como foi favorável à pena de morte, e essa atitude ainda hoje é defendida por alguns.
Assim, no Catecismo da Igreja Católica, lê-se no nº 2266: “Preservar o bem comum da sociedade pode exigir que se coloque o agressor em estado de não fazer mal. A este título, reconheceu-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem. Por motivos análogos, foi confiado às autoridades legítimas o direito de repelir pelas armas os agressores da cidade. As penas têm como primeiro efeito compensar a desordem introduzida pela falta. Quando a pena é voluntariamente aceite pelo culpado, tem valor de expiação. A pena tem como efeito, além disso, preservar a ordem pública e a segurança das pessoas. Finalmente, tem também valor medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.”
Já no nº 2267 lê-se: “A doutrina tradicional da Igreja sempre se exprimiu e exprime tendo em conta as condições reais do bem comum e dos meios efectivos de salvaguardar a ordem pública e a segurança das pessoas. Na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana”.
Recentemente, a posição da Igreja começou a mudar. Assim, na Encíclica “Evangelium Vitae”, de 1995, João Paulo II escreveu: “Há também a questão da pena de morte, em relação à qual tanto na Igreja como na sociedade civil se observa uma tendência crescente a reclamar (exigir) um uso muito limitado e sobretudo a total abolição da pena de morte.” E a razão é uma consciência maior do respeito pela dignidade humana, que corresponde ao plano de Deus. Só em casos extremíssimos, quando a defesa não fosse possível de outro modo, se aplicaria a pena de morte ao culpado, mas acrescenta: “Esses casos são hoje, por causa da organização jurídica mais adequada, muito raros e praticamente inexistentes”.
O Papa Bento XVI, na mensagem enviada ao terceiro congresso mundial sobre o tema, que teve lugar em Paris, em Fevereiro de 2007, pronunciou-se contra a pena de morte nestes termos: “A pena de morte não só representa um ataque à vida, mas também um ataque à dignidade humana”. Mesmo se a Igreja continua a manter a posição de que o Estado tem o dever de defender a sociedade, a mensagem declara que a pena de morte é hoje dificilmente justificável. Os Estados dispõem hoje de métodos mais eficazes para combater a criminalidade, sublinha Bento XVI, que aponta que medidas preventivas e métodos de castigos que não levam à morte correspondem mais ao bem comum e à dignidade da pessoa humana. A decisão a favor da pena de morte tem o risco de castigar inocentes bem como a tentação de, em vez de promover a justiça social, atiçar a violência. “A pena de morte é um ataque claro contra a inviolabilidade da vida humana e, para os cristãos, uma violação da doutrina bíblica do perdão”. O Papa apelou aos Governos para abolirem a pena de morte e, respectivamente, entenderem-se no sentido de uma moratória universal contra a pena de morte.
Na obra de Dominique Wolton, Société et Politique, o Papa Francisco, no contexto de explicar, contra uma concepção fixista da tradição, uma visão da tradição viva, em movimento, deu o exemplo da pena de morte: “A propósito da pena de morte. Os nossos bispos decretaram a pena de morte na Idade Média. Hoje, a Igreja diz mais ou menos — e trabalha-se para mudar o Catecismo neste ponto — que a pena de morte é imoral. A tradição mudou? Não, a consciência evolui, a consciência moral evolui. O mesmo acontece com a escravatura, Há escravos, mas é imoral.”
Concretizando esta exigência, Francisco veio, em 2018, reafirmar o que já declarara no Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de Outubro de 2017: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.” Assim, o nº 2267 do Catecismo, revisto, agora diz: “Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente a possibilidade de se redimir. Por isso, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”
É de sublinhar a afirmação: a dignidade é inerente à pessoa humana e não se perde nunca, nem sequer depois de ter cometido os mais graves crimes. Fica, pois, eliminada qualquer possibilidade de aprovação da pena de morte. Numa Carta enviada aos bispos de todo o mundo pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria, Francisco vai citando Papas anteriores, concretamente, João Paulo II e Bento XVI, que, como vimos, já tinham dado orientações neste sentido, constatando que, independentemente das modalidades de execução, ela “implica um tratamento cruel, desumano e degradante” e sublinhando ainda “a possibilidade de erro judicial”.
“A nova formulação do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica”, diz ainda a Carta, concluindo, “quer ser um impulso para um compromisso firme, inclusive através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, para que se favoreça uma mentalidade que reconheça a dignidade de cada pessoa humana e se criem as condições que permitam eliminar hoje a instituição jurídica da pena de morte onde ainda está em vigor.”
Há no mundo 57 países que ainda aplicam a pena de morte. O Catecismo agora modificado quer ser uma autoridade moral a favor da tese abolicionista.
O Papa Francisco também se opõe, como aqui escrevi então (“O não de Francisco à pena de morte e à prisão perpétua”) à prisão perpétua: “privar um ser humano da possibilidade, ainda que mínima, de ter esperança, significa matá-lo duas, três, quatro, cinco vezes.”
3. Aqui chegados, é preciso referir e sublinhar a neotenia (nascemos prematuros, por fazer…), que é uma característica essencial, constitutiva, do ser humano, condição biológica de possibilidade da liberdade. O ser humano aparece no mundo, não feito, mas como conjunto de possibilidades. Por isso, os seres humanos têm como tarefa, fazendo o que fazem, fazerem-se a si mesmos e, dada a liberdade, como se mostra na experiência de autoposse — cada um é senhor de si e das suas acções —, fazerem-se bem, para que resultem como obra de arte. A identidade humana não é fixa, estável, mas processual, narrativa, aberta a um futuro aberto: temos raízes, estamos enraizados, vivemos no presente, mas abertos a um futuro. Assim, por maior que seja o crime, ainda há possibilidades…, incluindo o arrependimento e a mudança. Este é o constitutivo do ser humano. Ora, a pena de morte fecha as possibilidades, quando o processo de cada homem, de cada mulher, mesmo feito o mal, ainda não transitou em julgado definitivo… É preciso, portanto, deixar o processo aberto…
Para Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis. Mas, para lá do verificável, há “o místico” (das Mystische), que “se mostra” (es zeigt sich), o metafísico, o absoluto. Não que o mundo é, mas que o mundo seja, isso é o místico. Deus também não é deste mundo nem a ética, que é da ordem do dever-ser. O morrer é deste mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do absoluto (a outra é Deus), e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte é a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à continuidade do processo de possibilidades inclusive de arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade, incluindo, repito, a do arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. Aliás, um juiz, por exemplo, julga actos das pessoas, não julga as próprias pessoas.
Aí está a razão por que não se pode ser a favor da pena de morte. Cito, neste contexto, a afirmação de Vergílio Ferreira, por ocasião do I Centenário da abolição da pena de morte em Portugal: “E acaso o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque (…) a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do Universo.” (continua).
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 NOV 2019