Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O DIABO E O PENTECOSTES

  


Volto ao tema, porque permanentemente a questão está aí nos meios de comunicação social e há quem me telefona a perguntar o que é que eu penso. Um dos casos mais recentes tem a ver com um homem que envenenou os pais (felizmente sobreviveram) a mando de uma bruxa que lhe disse que eles tinham o diabo no corpo e era preciso matá-lo. Claro, o homem sofre de problemas psiquiátricos…  E lá vêm os rituais satânicos... Depois, perante a tragédia do nosso mundo hoje, com horrores sem conta e à beira do abismo, ouvimos: “Isto é o diabo, um inferno...”.


O Papa Francisco refere-se-lhe com frequência, para que as pessoas estejam atentas e evitem o que é obra do Maligno: o mal, o ódio, a guerra, as intrigas… O padre G. Amorth, falecido em 2016, exorcista na Diocese de Roma e fundador da Associação Internacional de Exorcistas, que fez milhares de exorcismos, chegou a dizer que ele andava à solta no Vaticano e denunciou seitas satânicas instaladas na Cúria e servidas por membros da Igreja, incluindo “monsenhores e até cardeais”. Ele lá saberia do que estava a falar!...


O Diabo é uma personagem com muitos nomes. Para lá de Diabo, também se chama Satã, Demónio, Satanás, Belzebu, Lúcifer, Mafarrico, Maligno... Ele enriqueceu enormemente a pintura e a escultura. Lembro-me particularmente de dois: um a defecar lá do alto, na Catedral de Friburgo (Alemanha), o outro, na Catedral de Basileia, a seduzir uma mulher, que sorri no enlevo da tentação… E há quem pretenda até tê-lo visto… Uma vez, uma senhora insistiu tanto que ele lhe aparecia, metendo-lhe medo, que o último conselho que me restou foi dizer-lhe: “Atire-lhe com o terço aos chifres!” Assim fez. E o terço? Caiu ao chão!


Mas desçamos ao núcleo do problema. Aquilo que o ser humano nunca entenderá é a massa incrível do sofrimento e da maldade no mundo. Quando olhamos para a História, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade, de suor, de lágrimas, de sangue, de desprezo, de traições, de desespero, de indiferença, de violências, de fome, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas..., perguntamos como é que tudo isso foi e é possível. Como é que é possível e donde é que vem tanto mal?


Uma vez que o mal não pode ter origem em Deus, que é infinitamente bom, supõe-se então que o Diabo poderia muito bem ser uma explicação... Ele tentou e tenta o ser humano..., o Homem caiu e cai na tentação e provoca o mal do mundo. Mas já Kant colocou na boca de um catequizando iroquês esta pergunta: Porque é que Deus não acabou com o Diabo, e, sobretudo, quem é que tentou os anjos, que, de bons, se transformaram em demónios, pois Deus não os tinha criado?


Para explicar o mal, contrapor o Diabo a Deus, como se o Diabo fosse uma espécie de anti-Deus, só aparentemente é uma explicação. De facto, a afirmação de Deus e do Diabo, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O Diabo não explica nada. O mal está aí, porque vivemos num mundo finito, e Deus criou o Homem livre, mas a liberdade é condicionada, finita, e peca.  De qualquer modo, em vez do Diabo, que nada explica, é melhor reconhecer que não temos explicação cabal para a existência de tanto horror no mundo.


Já em 1969, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, que tive o privilégio de ter como amigo, escreveu uma obra célebre Abschied vom Teufel (Adeus ao Diabo), mostrando que não há nenhum fundamento para a crença no Diabo, impondo-se acabar com os exorcismos.


É certo que, nos Evangelhos, Jesus aparece por vezes curando certas enfermidades no contexto da crença do seu tempo de que o Diabo era a sua causa. É-nos inclusivamente oferecida a imagem de Jesus expulsando os demónios. Hoje sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico ou pura e simplesmente de pessoas com ataques epiléticos ou sofrendo de histeria.


De qualquer forma, Jesus anunciou Deus e não Satanás, e felizmente o Diabo não faz parte do Credo cristão. O núcleo da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, e o Reino de Deus consiste na salvação total e plena do Homem. Neste sentido, o Diabo pode aparecer como um símbolo personificado de todo o mal que aflige o ser humano, mas a que Deus há-de pôr termo, segundo a promessa de Jesus. O Diabo surge para dar expressão ao que não é o Reino de Deus, o contrário do Reino de Deus. Precisamente para realçar mais e melhor o que constitui o centro da mensagem de Jesus: o futuro do seu Reino.


O Diabo não pode de modo nenhum ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus. E não tem sentido continuar a pensar e a pregar que ele se mete nas pessoas, para tomar conta delas. Não há possessos demoníacos. Apenas há doenças e doentes de muitas espécies e com múltiplas origens, que devem ser ajudados. Assim, como escreveu o filósofo Manuel Fraijó, "deveriam cessar as delirantes cerimónias de exorcismos". Por outro lado, se Jesus não pregou Satanás, mas Deus, então a fé do cristão dirige-se a Deus e não ao Diabo, o que exige na prática “exorcizar”, expulsar da vida pessoal e pública tudo o que é  demoníaco, diabólico: o orgulho, a vaidade, a ganância, a corrupção, o ódio, o racismo, a misoginia, tudo o que se opõe à dignidade humana… E acolher os dons do Espírito Santo — amanhã é dia de Pentecostes: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus — este, no sentido de o amor a Deus incluir o receio de O ofender no próximo.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de maio de 2024

BABEL E O PENTECOSTES: HOMENAGEM A NATÁLIA CORREIA. 2

  
(continuação)


Em contraposição com a Torre de Babel,  quando cada um quer ser o dominador de tudo e de todos, num orgulho erguido até ao céu, de tal modo que ninguém se entende, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no Pentecostes — não esquecer que Natália Correia era espírito-santista. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"


Cada vez mais tomamos consciência disso: o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, pois então os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. Portanto, Pentecostes tem de ser todos os dias. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.


Um autor é grande — e Natália é grande —, quando é fonte de inspiração e iluminação do futuro. Aí está: na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global,... — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.


Dada a presente crise global, dramática e mesmo trágica, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também das relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.


A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista. Não é esse horror que vivemos na e com a Ucrânia? Não está aí, terrível, de consequências catastróficas, outra guerra no Médio Oriente?


Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. Quando se pensa no aquecimento global, na ameaça climática, na ameaça nuclear, no fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, nos gastos astronómicos com novos armamentos — anualmente, uns 2 milhões de milhões de euros —, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global.  A Humanidade pode correr o risco de  um suicídio colectivo.


Numa entrevista recente, um dos intelectuais mais influentes da actualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: “Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.”  

Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal — estamos a celebrar os 400 anos do seu nascimento — escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (“le rien et l’infini”). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana, a única verdadeira aspiração, desde o princípio, como se diz no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus pelo orgulho e a dominação de tudo e de todos, construindo uma torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede quando desce em Pentecostes.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 21 de outubro de 2023

BABEL E O PENTECOSTES: HOMENAGEM A NATÁLIA CORREIA. 1

  


Natália Correia, a grande escritora, lutadora pela liberdade, nasceu a 13 de Setembro de 1923. Em sua homenagem, neste seu centenário, fica aí uma breve reflexão.


Estava-se nos anos 1976-1977 e eu, porque era Vice-Presidente do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, residia em Lisboa. Por isso, encontrei-me muitas vezes no famoso Botequim com Natália Correia, que fazia o favor de ser uma querida amiga. Nos inícios da década de oitenta, também fui convidado, como ela e representantes de partidos, pela Embaixada da então República Democrática Alemã para uma visita a Berlim Leste e, se cito este evento, é porque nele pude constatar, frente ao nazismo e ao estalinismo e ao Muro, o empenho de Natália na luta pela liberdade.  Depois continuámos a encontrar-nos, uma das vezes até foi num jantar com o grande Vitorino Nemésio. Quando ela morreu, recebi um telefonema na Universidade de Coimbra: “A Natália morreu e tem de vir a Lisboa para dizer umas palavras, umas palavras de despedida, no funeral.” Fui, triste, para essas palavras de despedida, com este final: “’Para onde vão os mortos?’, perguntava o filósofo Bernhard Welte. Para o Silêncio? Para o Nada? É este Nada que a todos espera. Que Nada? Não está, à partida, decidido como deve ser interpretado este Silêncio e este Nada. Trata-se de um silêncio morto ou de um Silêncio vivo, habitado? Trata-se de um nada negativo ou de um Nada enquanto ocultação absoluta do Mistério vivo, como quando dizemos: aqui não vejo nada, mas sabendo que lá pode estar algo e até o essencial? Quando se olha para o Sol, não se vê nada, tal é o excesso de luz. Este nada é pura e simplesmente nada ou, pelo contrário, o Nada experienciado na morte é a figura do Mistério oculto que a tudo dá sentido e fundamento? Natália, foi no Espírito Santo, tal como o entendias, que acendeste a tua luz e cantaste o fogo do teu canto. Natália querida, no mistério da despedida, que agora mais misteriosamente te envolve, seja ainda o Espírito Santo que te guie!”


Ela era espírito-santista e ficou muito contente quando lhe disse que ruah, com múltiplos sentidos: ar, brisa, espírito, força,  alento, interioridade, em hebraico é feminino. Lá está a Mátria em vez de Pátria e… Natália Correia vinha dos Açores e viveu o culto do Divino Espírito Santo e os “impérios”, onde um menino é coroado, e as “sopas” do Espírito Santo, quando há comida para todos, conhecidos e desconhecidos, numa fraternidade sem igual…


Por isso, quando se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada e o verdadeiro sentido revolucionário disso, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.


Diz a Bíblia que Javé, Deus, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura - que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.


Babel e a sua Torre são um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em "povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações". Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas e das culturas, que constitui uma riqueza inaudita. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente, gigantesca, contra o desígnio de dominação.


Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna?” (continua)


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 de outubro de 2023

BABEL, PENTECOSTES E UMA ÉTICA GLOBAL

  

 

1. Fazemo-nos e construímo-nos uns aos outros; desfazemo-nos e destruímo-nos uns aos outros. Lá está o mito da Torre de Babel, um mito que transporta uma verdade fundamental e dá que pensar, como escreveu o filósofo Paul Ricoeur. Um dia - está escrito no Génesis - os homens disseram: Construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura -, que os gregos também condenavam, porque arrastava consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem, guerreiam-se e matam-se na barbárie.


A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente com uma guerra de terror, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista.


Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se aproxima. Quando se pensa na “globalização da rapina”, segundo a expressão do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, e na globalização das armas de destruição massiva -- quem vai impedir armas nucleares e outras à venda por aí? -, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A revolução a caminho é a dos pobres e humilhados, que nada têm a perder.


2. O que se contrapõe, segundo a Bíblia, à Torre de Babel e à sua ameaça, é o Pentecostes, que a Igreja celebra. Nesse dia, lê-se também na Bíblia, no livro dos Actos dos Apóstolos, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, todos - partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmea, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e da Líbia, romanos, cretenses, árabes, homens de todas as nações que há debaixo do céu -- voltaram a encontrar-se e entenderam-se...


3. Afundados no meio desta crise inquietante, as religiões têm um papel decisivo a desempenhar e foi com essa consciência que em Setembro de 1993 teve lugar em Chicago o Parlamento das Religiões do Mundo, com a presença de uns 6500 participantes e onde 150 pessoas qualificadas, representando as diferentes religiões e movimentos de tipo religioso do mundo assinaram o Manifesto ou a Declaração Princípios de uma ética mundial.


O texto fora essencialmente preparado por Hans Küng, o famoso teólogo de Tubinga, que nos deixou recentemente. De que se trata? Como escreveu Küng, não se trata  de uma duplicação da Declaração dos Direitos Humanos, nem de uma declaração política, nem de uma prédica casuística, nem de um tratado filosófico, nem de uma idealização religiosa ou da busca de uma religião universal unitária. Trata-se de um consenso de base, mínimo, referente a valores vinculantes, a critérios e normas inamovíveis e a atitudes morais fundamentais. Supõe-se que estes mínimos éticos, que assentam na constatação de uma convergência já existente nas tradições religiosas, podem ser assumidos por todos os seres humanos, independentemente da sua relação com a religião.


Neste consenso mínimo de base, a exigência fundamental é: todo o ser humano deve ser tratado humanamente. Porquê? Todo o ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, classe, cor, língua, religião, ideias políticas, condição social, possui uma dignidade inviolável e inalienável.


Por outro lado, para agir de forma verdadeiramente humana, vale, antes de mais, a regra de ouro: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti (formulada positivamente: Faz aos outros o que queres que te façam a ti). "Esta deveria ser a norma incondicionada, absoluta, para todas as esferas da vida, para a família e as comunidades, para raças, nações e religiões." Esta regra de ouro concretiza-se em quatro directrizes ou orientações antiquíssimas e inalteráveis: comprometimento com uma cultura da não-violência e do respeito pela vida (não matarás: respeita toda a vida); comprometimento com uma cultura da solidariedade e com uma ordem económica justa (não roubarás: age com justiça); comprometimento com uma cultura da tolerância e uma vida vivida com veracidade (não mentirás: fala e age com verdade); comprometimento com uma cultura da igualdade de direitos e com uma irmandade entre homem e mulher (não prostituirás nem te prostituirás: respeitai-vos e amai-vos mutuamente). No espírito de uma declaração de ética mundial, não se deu entrada a questões morais discutidas em todas as religiões e nações, como a contracepção, o aborto, a eutanásia.


Trata-se de uma Declaração assinada por "pessoas religiosas", que têm a convicção de que "o mundo empírico dado não é a realidade e a verdade última, suprema", que, portanto, fundamentam o seu viver numa Realidade Última e dela extraem, em atitude de confiança, na oração e na meditação, na palavra e no silêncio, a sua força espiritual e a sua esperança. Na presente crise de valores, "estamos convencidos de que são precisamente as religiões que, apesar de todos os abusos e frequentes fracassos históricos, podem assumir a responsabilidade de que as esperanças, objectivos, ideais e critérios de que a Humanidade precisa para a convivência na paz sejam mantidos, fundamentados e vividos".

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 de junho de 2022

A TORRE DE BABEL E O PENTECOSTES

 

Celebra-se hoje, na liturgia católica, a festa do Pentecostes, o acontecimento inaugural da Igreja cristã, que irradia luz fulgurante também para os tempos que estamos a viver, tempos de penúria e de noite, penúria no sentido do verso famoso de Hölderlin: “Wozu Dichter in dürftiger Zeit?” (Para quê poetas em tempo de penúria, indigência mais funda e abrangente do que a meramente económica?).

 

O Pentecostes apenas alcança a sua compreensão adequada em contraposição com Babel, o acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro do Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, “dá que pensar”, como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.

 

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade grande dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas Deus renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris — desmesura — que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.

 

Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em “povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações”. Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento (desconfinamento, diríamos em linguagem actual) de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.

 

Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes, que hoje se celebra. “De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.” Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, “pois cada um os ouvia falar na sua própria língua”. Atónitos e maravilhados diziam: “Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!”

 

No dia de Pentecostes, que deve ser todos os dias, na sua intenção mais profunda — e cada vez mais tomamos consciência disso —, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se... No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.

 

Na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global, a pandemia acabou por agudizar a tensão e a rivalidade entre a China e os Estados Unidos — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.

 

Dada a presente crise global, dramática, não se pode pensar em voltar à normalidade como se se tratasse apenas de, após um interregno, voltar à continuação da situação em que a deixámos. Não. Penso que já se percebeu que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também nas relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza — felizmente, a União Europeia está no bom caminho. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.

 

São Paulo escreveu na Carta aos Gálatas: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão. Foi para a liberdade que fostes chamados.” Esta liberdade está fundada na filiação divina: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abbá! – Pai!’ Deste modo já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.” “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher”. Agora, todos são livres. Assenta aqui a igualdade radical de todos os seres humanos – homens e mulheres. E o Espírito da liberdade é o Espírito do amor. Jesus disse aos discípulos: “Já não vos chamo servos, mas amigos.” E a razão é que não há amizade sem confidência e ele confiou-lhes o segredo mais íntimo de Deus: “Deus é amor incondicional”.

 

A Humanidade precisa de um novo Pentecostes, com a chegada do Espírito Santo, com os seus dons. Entre os dons do Espírito – eu fui ao catecismo à procura dos dons e dos frutos do Espírito Santo e também dos pecados contra o Espírito — encontram-se os dons da sabedoria, do entendimento e da ciência: o sábio tem o conhecimento profundo de Deus e julga todas as coisas na sua luz – também na Igreja, é necessário fazer mais apelo à sabedoria e à inteligência.

 

Quem vive no Espírito Santo, que é o Espírito do nosso espírito, recebeu também o dom do conselho: a luz do alto e do mais íntimo para as grandes decisões; o dom da fortaleza: a firmeza no caminho do bem; o dom da piedade: a ternura na relação com Deus e com os irmãos; o dom do temor de Deus: não é medo nem inquietação, mas princípio da sabedoria e sentido da responsabilidade.

 

O Espírito Santo e os seus dons produzem frutos. São Paulo escreveu: “Este é o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei. Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito. Não nos tornemos vaidosos, a provocar-nos uns aos outros, a ser invejosos uns dos outros. Se porventura alguém for apanhado nalguma falta, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão; e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado. Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo”.

 

O fruto mais excelente do Espírito é o amor unido à benignidade, à bondade, à fidelidade e à mansidão — “na tarde da vida seremos julgados pelo amor”, escreveu São João da Cruz. Com o amor vem a alegria – vejo hoje demasiada tristeza. A paz é a tranquilidade na ordem: há paz quando há justiça e tudo vai bem dentro de nós, com os outros, com Deus e a criação. A paz interior dá força à paciência, que não é resignação. O autodomínio mantém a pessoa íntegra para si e na sua entrega aos outros.

 

Afinal, de que Espírito somos? Uma forma eficaz de responder é responder a outra pergunta, talvez mais concreta: cometemos pecados contra o Espírito Santo? Entre esses pecados — pecar é coisificar a pessoa —, contam-se: “ter inveja das mercês que Deus faz a outrem”, “contradizer a verdade conhecida como tal”, “obstinação no pecado”, “desesperação de salvação”. Temo o perigo da escravização própria e alheia — escravização pelo ter, pelo hedonismo, pelo espectáculo (não era na sociedade-espectáculo que estávamos a viver?) —, perigo do afundamento no lamaçal da mentira, contradizendo a verdade conhecida como tal, da inveja, da obstinação no pecado e, em tempos de niilismo, da vertigem da desesperação.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 31 MAI 2020