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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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BABEL, PENTECOSTES E UMA ÉTICA GLOBAL

  

 

1. Fazemo-nos e construímo-nos uns aos outros; desfazemo-nos e destruímo-nos uns aos outros. Lá está o mito da Torre de Babel, um mito que transporta uma verdade fundamental e dá que pensar, como escreveu o filósofo Paul Ricoeur. Um dia - está escrito no Génesis - os homens disseram: Construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura -, que os gregos também condenavam, porque arrastava consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem, guerreiam-se e matam-se na barbárie.


A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente com uma guerra de terror, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista.


Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se aproxima. Quando se pensa na “globalização da rapina”, segundo a expressão do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, e na globalização das armas de destruição massiva -- quem vai impedir armas nucleares e outras à venda por aí? -, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A revolução a caminho é a dos pobres e humilhados, que nada têm a perder.


2. O que se contrapõe, segundo a Bíblia, à Torre de Babel e à sua ameaça, é o Pentecostes, que a Igreja celebra. Nesse dia, lê-se também na Bíblia, no livro dos Actos dos Apóstolos, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, todos - partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmea, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e da Líbia, romanos, cretenses, árabes, homens de todas as nações que há debaixo do céu -- voltaram a encontrar-se e entenderam-se...


3. Afundados no meio desta crise inquietante, as religiões têm um papel decisivo a desempenhar e foi com essa consciência que em Setembro de 1993 teve lugar em Chicago o Parlamento das Religiões do Mundo, com a presença de uns 6500 participantes e onde 150 pessoas qualificadas, representando as diferentes religiões e movimentos de tipo religioso do mundo assinaram o Manifesto ou a Declaração Princípios de uma ética mundial.


O texto fora essencialmente preparado por Hans Küng, o famoso teólogo de Tubinga, que nos deixou recentemente. De que se trata? Como escreveu Küng, não se trata  de uma duplicação da Declaração dos Direitos Humanos, nem de uma declaração política, nem de uma prédica casuística, nem de um tratado filosófico, nem de uma idealização religiosa ou da busca de uma religião universal unitária. Trata-se de um consenso de base, mínimo, referente a valores vinculantes, a critérios e normas inamovíveis e a atitudes morais fundamentais. Supõe-se que estes mínimos éticos, que assentam na constatação de uma convergência já existente nas tradições religiosas, podem ser assumidos por todos os seres humanos, independentemente da sua relação com a religião.


Neste consenso mínimo de base, a exigência fundamental é: todo o ser humano deve ser tratado humanamente. Porquê? Todo o ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, classe, cor, língua, religião, ideias políticas, condição social, possui uma dignidade inviolável e inalienável.


Por outro lado, para agir de forma verdadeiramente humana, vale, antes de mais, a regra de ouro: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti (formulada positivamente: Faz aos outros o que queres que te façam a ti). "Esta deveria ser a norma incondicionada, absoluta, para todas as esferas da vida, para a família e as comunidades, para raças, nações e religiões." Esta regra de ouro concretiza-se em quatro directrizes ou orientações antiquíssimas e inalteráveis: comprometimento com uma cultura da não-violência e do respeito pela vida (não matarás: respeita toda a vida); comprometimento com uma cultura da solidariedade e com uma ordem económica justa (não roubarás: age com justiça); comprometimento com uma cultura da tolerância e uma vida vivida com veracidade (não mentirás: fala e age com verdade); comprometimento com uma cultura da igualdade de direitos e com uma irmandade entre homem e mulher (não prostituirás nem te prostituirás: respeitai-vos e amai-vos mutuamente). No espírito de uma declaração de ética mundial, não se deu entrada a questões morais discutidas em todas as religiões e nações, como a contracepção, o aborto, a eutanásia.


Trata-se de uma Declaração assinada por "pessoas religiosas", que têm a convicção de que "o mundo empírico dado não é a realidade e a verdade última, suprema", que, portanto, fundamentam o seu viver numa Realidade Última e dela extraem, em atitude de confiança, na oração e na meditação, na palavra e no silêncio, a sua força espiritual e a sua esperança. Na presente crise de valores, "estamos convencidos de que são precisamente as religiões que, apesar de todos os abusos e frequentes fracassos históricos, podem assumir a responsabilidade de que as esperanças, objectivos, ideais e critérios de que a Humanidade precisa para a convivência na paz sejam mantidos, fundamentados e vividos".

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 de junho de 2022

A TORRE DE BABEL E O PENTECOSTES

 

Celebra-se hoje, na liturgia católica, a festa do Pentecostes, o acontecimento inaugural da Igreja cristã, que irradia luz fulgurante também para os tempos que estamos a viver, tempos de penúria e de noite, penúria no sentido do verso famoso de Hölderlin: “Wozu Dichter in dürftiger Zeit?” (Para quê poetas em tempo de penúria, indigência mais funda e abrangente do que a meramente económica?).

 

O Pentecostes apenas alcança a sua compreensão adequada em contraposição com Babel, o acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro do Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, “dá que pensar”, como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.

 

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade grande dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas Deus renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris — desmesura — que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.

 

Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em “povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações”. Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento (desconfinamento, diríamos em linguagem actual) de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.

 

Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes, que hoje se celebra. “De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.” Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, “pois cada um os ouvia falar na sua própria língua”. Atónitos e maravilhados diziam: “Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!”

 

No dia de Pentecostes, que deve ser todos os dias, na sua intenção mais profunda — e cada vez mais tomamos consciência disso —, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se... No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.

 

Na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global, a pandemia acabou por agudizar a tensão e a rivalidade entre a China e os Estados Unidos — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.

 

Dada a presente crise global, dramática, não se pode pensar em voltar à normalidade como se se tratasse apenas de, após um interregno, voltar à continuação da situação em que a deixámos. Não. Penso que já se percebeu que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também nas relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza — felizmente, a União Europeia está no bom caminho. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.

 

São Paulo escreveu na Carta aos Gálatas: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão. Foi para a liberdade que fostes chamados.” Esta liberdade está fundada na filiação divina: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abbá! – Pai!’ Deste modo já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.” “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher”. Agora, todos são livres. Assenta aqui a igualdade radical de todos os seres humanos – homens e mulheres. E o Espírito da liberdade é o Espírito do amor. Jesus disse aos discípulos: “Já não vos chamo servos, mas amigos.” E a razão é que não há amizade sem confidência e ele confiou-lhes o segredo mais íntimo de Deus: “Deus é amor incondicional”.

 

A Humanidade precisa de um novo Pentecostes, com a chegada do Espírito Santo, com os seus dons. Entre os dons do Espírito – eu fui ao catecismo à procura dos dons e dos frutos do Espírito Santo e também dos pecados contra o Espírito — encontram-se os dons da sabedoria, do entendimento e da ciência: o sábio tem o conhecimento profundo de Deus e julga todas as coisas na sua luz – também na Igreja, é necessário fazer mais apelo à sabedoria e à inteligência.

 

Quem vive no Espírito Santo, que é o Espírito do nosso espírito, recebeu também o dom do conselho: a luz do alto e do mais íntimo para as grandes decisões; o dom da fortaleza: a firmeza no caminho do bem; o dom da piedade: a ternura na relação com Deus e com os irmãos; o dom do temor de Deus: não é medo nem inquietação, mas princípio da sabedoria e sentido da responsabilidade.

 

O Espírito Santo e os seus dons produzem frutos. São Paulo escreveu: “Este é o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei. Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito. Não nos tornemos vaidosos, a provocar-nos uns aos outros, a ser invejosos uns dos outros. Se porventura alguém for apanhado nalguma falta, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão; e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado. Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo”.

 

O fruto mais excelente do Espírito é o amor unido à benignidade, à bondade, à fidelidade e à mansidão — “na tarde da vida seremos julgados pelo amor”, escreveu São João da Cruz. Com o amor vem a alegria – vejo hoje demasiada tristeza. A paz é a tranquilidade na ordem: há paz quando há justiça e tudo vai bem dentro de nós, com os outros, com Deus e a criação. A paz interior dá força à paciência, que não é resignação. O autodomínio mantém a pessoa íntegra para si e na sua entrega aos outros.

 

Afinal, de que Espírito somos? Uma forma eficaz de responder é responder a outra pergunta, talvez mais concreta: cometemos pecados contra o Espírito Santo? Entre esses pecados — pecar é coisificar a pessoa —, contam-se: “ter inveja das mercês que Deus faz a outrem”, “contradizer a verdade conhecida como tal”, “obstinação no pecado”, “desesperação de salvação”. Temo o perigo da escravização própria e alheia — escravização pelo ter, pelo hedonismo, pelo espectáculo (não era na sociedade-espectáculo que estávamos a viver?) —, perigo do afundamento no lamaçal da mentira, contradizendo a verdade conhecida como tal, da inveja, da obstinação no pecado e, em tempos de niilismo, da vertigem da desesperação.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 31 MAI 2020