Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Hoje recordamos um conto tradicional japonês segundo Wenceslau de Moraes, que no-lo compara com a fábula mdediterrânica da Cigarra e da Formiga!...
O TIRA-OLHOS E A CASTANHA por Wenceslau de Moraes
"Chegara o Inverno, frígido. Um tira-olhos, que fora resistindo até então, mas a custo, abrigando o corpo esguio e nu no quimérico agasalho das suas asas de gaze transparente, veio por acaso pousar num castanheiro. Então, fixando uma castanha, dirigiu-lhe, suplicante este discurso: - "Ó senhora castanha, vossemecê, para se preservar das intempéries, usa de uma camisa junto ás carnes, por cima da camisa veste um kimono de duas consistências; e, ainda por cima traz uma capa forrada de espinhos e de pêlos. Pois tenha dó de mim, que nada possuo para abrigo senão estas asas de gaze transparente, ceda-me um dos seus vestidos..." Responde-lhe a castanha prontamente: -"Ora essa! Você durante todo o Verão, passou o tempo em pândegas, em voos descuidados, em amores boémios, de regato para regato, de flor para flor, sem cidar de precaver-se e de fazer alguma roupa. Eu, modestamente, sem sair do pouso onde nasci, fui tecendo e cosendo os meus vestidos, preparando-me para o frio. Pois governe-se agora como possa, meu amigo e, se tem frio...tenha paciência". Leitor amigo: não vos parece estar ouvindo, com ligeiras modificações de pouca monta, a fábula da cigarra e da formiga? É que a moral dos povos é uma e única (...). As nossas classificações antropológicas que chamam a este individuo um Japonês, àquele um Grego, àquele outro um Português, têm apenas a importância éfemera que satisfaz num momento dado o grau das nossas concepçôes. Cada ser humano, havendo já vivido no passado imerso e sem distinção de latitudes, milhões e milhões de vidas, retém em si a impressão das múltiplas recordações das suas existências anteriores, reduzidas a qualidades de alma; o que arrebanha todos os homens num só grupo - a Humanidade (...)."
Voltamos ao Embaixador Armando Martins Janeira, no seu livro “A Construção de um País Moderno”: - «Os grandes construtores do Japão moderno não são os políticos, mas os grandes industriais: os inventores da Sony, da National, da Honda, da Seiko, da Toyota e da Nissan, do jornal maior do mundo, o Yomiuri. Estes construtores de um novo país têm incessantemente proclamado acima de tudo a sua fé na inteligência. O progresso industrial baseia-se na circulação da informação. O Japão é o país mais bem informado do mundo. Para dar um exemplo: a Mitsui dispõe de uma rede de telecomunicações de 400 000 km, tendo vinte e quatro linhas directas para Nova Iorque; recebe diariamente quatro mil mensagens – mais que todos os ministérios portugueses juntos. Existe uma estreita ligação entre o marketing e a actividade produtiva; a Toyota, por exemplo, só produz o número de automóveis que pode vender. Os sistemas económico e industrial são rapidamente permeáveis às inovações técnicas. São mesmo sensíveis à estética: as operárias de uma fábrica em Tóquio usam uniformes desenhados por Pierre Cardin.
Pode dizer-se que o progresso japonês é apenas devido à inteligência, condicionada a três factores: o sistema de educação, a constante procura de inovação e a disciplina da organização, incessantemente aperfeiçoada.
Os elementos essenciais do sistema nipónico têm sido a produção industrial e o comércio externo. Uma das principais tarefas da diplomacia japonesa tem sido realizar a coordenação e expansão económica ao nível internacional.
A organização política e económica, embora com muitas limitações, não sofre dos defeitos e absurdos, nem da rotina, do capitalismo ocidental. O Japão adoptou do Ocidente princípios capitalistas e princípios socialistas, e sobre estas duas filosofias políticas instalou um pragmatismo são e eficaz – simbiose esta que só poderia ser realizada por quem está de fora tanto da filosofia capitalista como da comunista e pode recorrer ainda a uma forma de pensamento diferente de ambas, de raiz asiática.
Mas antes desta adopção de ideias e métodos estrangeiros está o propósito fundamental de criar um país novo, assente em novas estruturas, embora guardando ciosamente o fundo da sua ética, língua, cultura e carácter social.
Os Japoneses responderam ao desafio do Ocidente modificando a sua sociedade e elaborando um sistema de valores que visa o progresso nacional e o convívio internacional, num mundo novo orientado para a divisão internacional do trabalho e a harmonização do comércio mundial.
(…) Uma sociedade é um complexo de estruturas humanas, cuja evolução se vai acelerando. Enquanto o Ocidente se preocupa cada vez mais com a sua segurança (…), o Japão concentra-se nos problemas da intensificação do progresso, da automatização, da humanização das grandes cidades, na regeneração do ambiente, na redução do tempo de trabalho, no preenchimento dos tempos livres, no aumento da cultura, em abrir largas perspectivas sobre o século XXI.
Cobrindo uma vasta extensão de terra e mar, rica de recursos, contando quase metade da população mundial, a Ásia começa a tomar consciência da força da sua identidade.
Aqui estão situados países de economias muito dinâmicas, como, além do Japão, a Coreia do Sul, a Formosa, Singapura; mais tarde será a China, cujo desenvolvimento, como previu Napoleão, vai provavelmente decidir o futuro do mundo.
O Japão, procurando guardar a sua identidade e pertença à Ásia, quer alargar ao mesmo tempo os seus laços com o Ocidente, dupla posição que poderá favorecer o esclarecimento de uma política comum nos problemas Norte-Sul e trazer benefícios ao progresso mundial.
Escritores há que prevêem que o próximo milénio será de predomínio da Ásia.
O Japão seleccionou do Ocidente as ideias e os estímulos que pudessem revitalizar a sua antiga civilização, e é o único país não ocidental a atingir uma industrialização plena. Combinando as novas ideias e fontes ocidentais com as herdadas do seu passado, o Japão está a criar uma nova cultura e a abrir novos caminhos às gerações do futuro.
O Japão criou uma nova forma de capitalismo, bastante diferente do original ocidental. A originalidade e a criatividade com que o Japão formou as suas novas estruturas políticas e económicas oferecem matéria para séria reflexão. A vida política e a actividade económica nipónicas estão impregnadas de uma sabedoria oriental e de valores estéticos orientais que não têm equivalente nos países capitalistas do Ocidente.
Mas só a ciência e a tecnologia ocidentais podiam permitir o espectacular sucesso do Japão moderno.
As notícias acerca do Japão, antes da chegada dos Portugueses, eram escassas. A primeira notícia da existência do Japão provém de Marco Polo (1254-1324) e a sua obra foi a base dos nossos conhecimentos sobre grande parte da Ásia até meados do século XVIII. A ilha do Japão era denominada por Marco Polo de Ciganpu, «Agora nos cheguemos a demostrar e decrarar as terras de Índia, e começarey em a ylha grande de Ciganpu. Esta ylha da parte do oriente he alonguada no alto mar da rybeyra de Mangy (grande China) per mill e quinhentas milhas e he muyto grande.», segundo nos informa Georg Schurhammer, na obra Anais da Academia Portuguesa de História, Vol. 1, 2ª série, p. 33. Esta notícia do Japão foi divulgada na Europa nos fins da Idade Média. Cristóvão Colombo, baseado nas informações de Marco Polo, teve a intenção de alcançar Ciganpu na sua primeira viagem, em 1492. A palavra Japão foi, pela primeira vez, usada, na Europa, por Tomé Pires na sua Suma Oriental, obra escrita em Malaca, que terminou em Janeiro de 1514, «A Ilha de Jampon, segundo todos os Chijs dizem, que he moor que a dos Lequios e o rey mais poderoso e maior e nom he dado à mercadoria nem seus naturais. [...] Tratam na China poucas vezes por ser longe e elles nom tem naaos nem serem homens do maar.», in: Anais da Academia Portuguesa de História, segundo Georg Schurhammer, Vol. 1, 2ª série, p. 81. Duarte Barbosa também fez referência ao Japão na sua obra Discrição, «Defronte desta grande terra da China vão muytas ilhas ao mar, alem das quaes vay hua terra mui grande que dizem que hé firme...» in: La Compagnie de Jesus et Le Japon, de Léon Bourdoy, p. 111. O Japão já tinha sido representado, no século XV, como sendo uma grande ilha rectangular no Insularium Ilustratum do alemão Henricus Martellus, de cerca de 1490 e no globo do alemão Martin Behaim, de 1492, mas nestes mapas não aparece o nome Japão. Após a chegada dos Portugueses ao Japão, durante um período de cerca de cem anos, «...desenvolveu-se um intercâmbio económico e cultural entre...» Japoneses e Portugueses, segundo Alfredo Pinheiro Marques, na sua obra A Cartografia dos Descobrimentos, p. 63. O encontro entre Portugueses e Japoneses deixou marcas na cartografia, porque os Portugueses começaram a dar a conhecer o Japão a todo o Mundo. Os cartógrafos Portugueses recolheram informações acerca do Japão no Oriente e, antes dos Portugueses chegarem ao Japão, homens como Francisco Rodrigues, Pedro Reinel e Lopo Homem já tinham representado o Japão na cartografia portuguesa, sob a influência de Marco Polo, que concebeu a ilha como sendo rectangular. Segundo Armando Cortesão, a primeira representação efectiva do Japão data de 1550, vem num mapa anónimo português e neste mapa também aparece, pela primeira vez, o nome Japão. Este mapa está conservado na Biblioteca Vallicelliana, em Itália». (Elementos da Universidade Católica Portuguesa).
Prosseguimos a nossa contagem até à Peregrinação em terras do Sol Nascente. Hoje recordamos S. Francisco Xavier (que já homenageámos em Goa). Francisco Xavier e os seus companheiros alcançaram o Japão a 27 de Julho de 1549, mas só a 15 de Agosto foram autorizados a aportar em Kagoshima, o principal porto da província de Satsuma, na ilha de Kiushu. Francisco foi recebido amigavelmente e ficou hospedado pela família de Angiró até Outubro de 1550. Entre Outubro e Dezembro residiu em Yamaguchi. Pouco antes do Natal, partiu para Kyoto, mas não conseguiu autorização para visitar o imperador. Regressou a Yamaguchi em Março de 1551, onde o “daimio” daquela província o autorizou a pregar. Contudo, faltando-lhe a fluência na língua nipónica, teve de se limitar a ler alto a tradução do catecismo feita com Angiró. O jesuíta teve um forte impacto no Japão e foi o primeiro membro da ordem a estar em missão. Levou com ele pinturas da Virgem Maria e da Virgem com o Menino Jesus. Estas imagens ajudaram-no a explicar o Cristianismo aos japoneses, uma vez que a barreira da comunicação era enorme, visto o japonês ser diferente de todos os idiomas que os missionários tinham até aí encontrado. Os japoneses não se revelaram pessoas facilmente catequizáveis. Muitos eram já budistas. Francisco Xavier teve dificuldade em explicar-lhes o conceito de Deus e a ideia segundo a qual Deus criou tudo o que existe. Aos seus olhos, Deus seria então responsável também pelo Mal e pelo pecado, algo que era para os japoneses incompreensível. O conceito de Inferno foi também difícil de explicar, pois os japoneses não aguentavam a concepção de que os seus antepassados podiam estar num Inferno eterno do qual era impossível libertá-los. Apesar das diferenças religiosas, Francisco de Xavier terá sentido que os japoneses eram um povo bom e que por isso poderiam ser convertidos. Xavier foi bem acolhido pelos monges da escola de Shingon, por ter usado a palavra “Dainichi” para descrever o Deus Cristão. Depois de ter aprendido mais sobre os significados da palavra, Francisco passou a usar a palavra “Deusu”, da palavra latina e a palavra portuguesa “Deus”. Foi nesse momento que os monges se aperceberam que ele pregava uma religião rival. No entanto, Francisco sempre respeitou o povo que o acolheu, tendo aprendido japonês, deixado de comer carne e peixe, e cumprimentava os senhores com vénias profundas, tendo chegado em algumas circunstâncias a vestir-se com trajes japoneses, para ser melhor aceite. Com a passagem do tempo, a missão de Francisco Xavier no Japão pôde ser considerada muito frutuosa, tendo conseguido estabelecer congregações em Hirado, Yamaguchi e Bungo. Francisco Xavier continuou a trabalhar durante mais de dois anos no Japão, tendo escrito um livro em japonês sobre a criação do mundo e a vida de Cristo. Então decide regressar à Índia. Nessa viagem, uma tempestade força-o a parar numa ilha perto de Cantão, na China, onde já estivera. Encontra assim o rico mercador Diogo Pereira, um velho amigo de Cochim, que lhe mostra uma carta proveniente de portugueses mantidos prisioneiros em Cantão, pedindo um embaixador português que intercedesse a seu favor junto do Imperador. Mais tarde durante a viagem, pára de novo em Malaca a 27 de Dezembro de 1551 e estava de volta a Goa em Janeiro de 1552».
A nossa Peregrinação continua a preparar-se. O diálogo cultural obriga à troca… Sentimo-lo especialmente com o Japão. Continuamos com a Prof. Helena Barbas (1990) a propósito do romance de Shusako Endo “O Silêncio”: O herói (…) é um jesuíta português, Sebastião Rodrigues que, em 1638, parte de Lisboa para o Japão com o objectivo de manter a fé e apoiar os indígenas convertidos em tempo de perseguições. Tem como segundo objectivo encontrar um antigo professor, o provincial da ordem Cristóvão Ferreira, e confirmar a informação de que, após trinta anos de trabalho apostólico, face à tortura, teria renegado. Apesar de avisos dos superiores hierárquicos, Rodrigues insiste na sua viagem em direcção ao martírio, pautada pelos passos da via-sacra. O sacerdote identifica-se expressamente com Cristo e os momentos mais trágicos da paixão, não lhe faltando, inclusive, um Judas-Kishijiro que o vende por 300 moedas. É através desta personagem que surge a grande questionação ao cristianismo enquanto lei de amor: «Porventura seria Cristo capaz de buscar e amar um homem destes, sujo e imundo como nenhum outro? Até num canalha, é certo, se poderá descobrir uma centelha de força e beleza, mas chamar canalha a Kishijiro já era favor...». Todavia, a situação histórica e os inimigos são diversos, e Rodrigues vê-se confrontado com um dilema terrível: escolher entre suportar a responsabilidade da tortura e morte das suas ovelhas, a que os seus carcereiros o forçam a assistir, ou evitar essas mortes, pelo renegar da fé católica e pisar da imagem de Cristo, o Éfumié. Este dilema é duplamente agravado. Pela crescente constatação da indiferença divina face aos sofrimentos humanos, o silêncio de Deus que se estende à própria natureza: «Sei que hoje, dia em que Mochiki e Ichizo choraram sofreram e morreram para maior glória de Deus, não consigo suportar o monótono fragor deste negro mar, abocanhando com os seus colmilhos a areia da praia. Como fundo a este mar sinistro, paira o silêncio de Deus... a sensação de que Deus continua de braços cruzados ante os clamores atirados ao céu por estes homens.». Por outro lado, Rodrigues toma conhecimento de que o Deus europeu se aculturou naquele país onde não se entende a diferença entre o Bem e o Mal, onde o pecado e a culpabilidade não existem: «Já desde o princípio que os japoneses, que confundiam Deus com Dainichi, começaram a deformar e a adaptar à sua maneira o nosso Deus, criando algo diferente. Mesmo quando a confusão de vocabulário desapareceu, as distorções e adaptações prosseguiram sub-repticiamente. (...) Não era no Deus-cristão que acreditavam... Até hoje, nunca os japoneses tiveram o conceito de Deus; nem jamais o terão.». As palavras dos missionários recebiam um sentido diferente do que lhes era atribuído e a sua religião acabava dissolvida nas já vigentes. Pelo xintoísmo, e devido ao relacionamento do imperador com a deusa do sol, o povo é, ao contrário do resto do mundo, naturalmente eleito – não necessita de redenção. Com aquele se fundira um budismo que, na maioria dos seus preceitos, se encontra demasiado próximo do pensamento cristão. A situação de Rodrigues torna-se exemplar, num sentido geral, enquanto representante de um determinado grupo, e num sentido particular, enquanto registo da evolução espiritual de um homem em busca de si próprio, através do divino. E o encontro pretende dar-se por intermédio do lado mais humano de Cristo, o homem-deus perseguido e sofredor, desprezado e rejeitado pelos outros homens».
Contagem decrescente - Japão (6) Peregrinar obriga a pensar. Já falámos de Shusako Endo e da sua amizade com o Embaixador Martins Janeira, hoje voltamos ao romancista japonês, com a ajuda da Professora Helena Barbas (FCSH, UNL). Esta refere-nos o romance “O Silêncio” de Shusako Endo: «São os portugueses quem, acidentalmente, descobre o Japão ao mundo Ocidental por volta de 1542. Talvez Fernão Mendes Pinto e seus dois companheiros Diogo Zeimoto e Cristóvão Borralho, num dos seus muitos naufrágios. Estes «Chenchocogins do cabo do mundo» são seguramente responsáveis pela introdução das armas de fogo e do fabrico da pólvora naquele país (Peregrinação, cap. cxxxiiii). Este relacionamento estabelecido pelo enxofre e incenso é magistralmente descrito por Venceslau de Morais: «Em 1549 o Jesuíta Francisco Xavier, espanhol de origem, mas servindo portugueses, desembarca no Japão, em Kagoshima, e enceta a sua propaganda religiosa, seguido de perto por outros nossos missionários e numerosos mercadores. Em 1587, dá-se a primeira perseguição contra os cristãos. Em 1597, em Nagasaki, vinte e seis cristãos perecem no martírio. Em 1624, após lutas cruentas, tragédias e massacres, o Japão fecha à cristandade as suas portas, com excepção dos holandeses...» (Os Serões no Japão, Parceria A. M. Pereira, 1973, p.142). Lendo Relance da História do Japão, ainda de Morais, entende-se que, por detrás do conflito individual de Sebastião Rodrigues, está o Histórico, apenas esboçado no romance de Shusaku Endo: a grande luta religiosa entre protestantes e católicos; o conflito de interesses comerciais entre as grandes potências do período; o fechamento do Japão ao ocidente, fundamentado na necessidade de independência e autonomia. O Silêncio não é um romance teológico, mas evidencia a posição dogmática de Endo face à religião católica. As suas personagens só pelo renunciar aos aspectos mais materiais da religião, pelo abandono das manifestações culturais da fé, podem alcançar a redenção e entender a natureza de Cristo: o Cristo benevolente, que convida o jesuíta Rodrigues a pisar a sua face, é o mesmo com quem Hasekura, O Samurai se encontra. Um Cristo tão oriental que parece tocar as raias da heresia. A preocupação religiosa do autor transborda no excesso de referências e comparações com os momentos mais conhecidos da Paixão, redundantes para a cultura judaico-cristã. (…) Estes mesmos aspectos revelam-se como manifestação de um esforço sincero de entendimento do ocidente por um olhar oriental, pelo que em nada diminuem o interesse deste singular romance.» - Helena Barbas [O Independente, 4 de Maio de 1990, III p.43].
Contagem decrescente - Japão (5) O contacto da cultura portuguesa com a multissecular cultura nipónica teve muitas repercussões na língua do Império do Sol Nascente. Fernão Mendes Pinto, Wenceslau de Morais e Armando Martins Janeira deram-nos testemunhos eloquentes desse intercâmbio. Hoje apresentamos uma lista de cerca de quarenta palavras que é bem ilustrativa da importância do diálogo intercultural. Ao contrário do que muitas vezes se diz a palavra arighatô, no sentido de agradecimento, não deve ter origem portuguesa... Mas vejamos o quadro:
Pronúncia em Japonês
Escrita em Japonês
Português Arcaico
Português Moderno
Observações
arukōru
アルコール
álcool
álcool
bateren
伴天連・破天連
padre
padre
biidoro
ビードロ
vidro
vidro
birōdo
ビロード or 天鵞絨
veludo
veludo
bouro/bouru
ボーロ・ボール
bolo
bolo, bola
botan
ボタン・釦・鈕
botão
botão
buranko
ブランコ
balanço
balanço
charumera/charumeru
チャルメラ・哨吶
charamela
charamela
Antigo instrumento musical de sopro
chokki
チョッキ
jaque
jaqueta, colete
furasuko
フラスコ
frasco
frasco
iesu
イエス
Jesu
Jesus
igirisu
イギリス・英吉利
inglez
inglês
Igirisu actualmente significa o Reino Unido.
iruman
イルマン・入満・伊留満・由婁漫
irmão
irmão
Termo usado para identificar o missionário antes de ser clérigo.
jouro
じょうろ・如雨露
jarro
jarro
juban/jiban
じゅばん・襦袢
jibão
roupa interior
kanakin/kanekin
金巾 ・ ▽かなきん ・ ▽かねきん
canequim
canequim
Não usado no português actual.
kantera/kandeya
カンテラ・カンデヤ
candeia
candeia
kapitan
甲比丹・甲必丹
capitão
capitão
kappa
合羽
capa
capa de chuva
karuta
かるた・歌留多・加留多・骨牌
cartas
cartas de jogar
kasutera, kasuteira
カステラ
castella
castela
Tipo de bolo com massa de pão-de-ló
kirishitan
キリシタン・切支丹・吉利支丹
christão
cristão
kirisuto
キリスト or 基督
Christo
Cristo
kompeitō
金米糖・金平糖・金餅糖
confeito
confeito
Doce ou rebuçado.
koppu
コップ
copo
copo
kurusu
クルス
cruz
cruz
marumero
木瓜 or マルメロ
marmelo
marmelo
meriyasu
メリヤス・莫大小・目利安
meias
meias
miira
ミイラ・木乃伊
mirra
mirra
oranda
オランダ・和蘭(陀)・阿蘭陀
Hollanda
Holanda
Holanda
pan
パン・麺麭・麪包
pão
pão
pandoro
Pão-de-ló
pão-de-ló
rasha
羅紗
raxa
feltro
rozario
ロザリオ
rosario
rosário
sabato
サバト
sábado
sábado
sarasa
更紗
saraça
sarja
Tecido de algodão fino
shabon
シャボン
sabão
sabão
shōro
ショーロ
choro
choro
shurasuko
シュラスコ
churrasco
Churrasco.
subeta
すべた ・ スベタ
espada
espada
tabako
煙草・莨
tabaco
tabaco
tempura
天麩羅・天婦羅
Têmporas
Têmporas
As Têmporas eram dias de jejum nos quais os católicos não comiam carne e fritavam panados de legumes e peixes.
Contagem decrescente - Japão (4) Oiçamos de novo o Embaixador Martins Janeira: “Os Japoneses vivem no passado e no futuro; para eles, o presente não é mais – usando a expressão de T. S. Eliot – do que o «momento presente do passado». As suas vivências são por isso mais amplas e mais várias: possuem duas pinturas (a tradicional e a moderna), duas esculturas, duas literaturas, duas maneiras de vestir (o quimono e o fato ocidental), duas cozinhas, duas formas de teatro (o Nô e o Kabuki, representados como nos séculos XV e XVII, e o mais ousado teatro de vanguarda).O Japão foi o primeiro país na História que soube combinar as civilizações do Oriente e do Ocidente, conciliar o jardim de há mil anos com o robot, a máquina com o coração humano. Aqui reside a principal razão do seu desenvolvimento. Como foi possível este feito admirável de trabalho e inteligência?”(Armando Martins Janeira, Japão: A Construção de Um País Moderno, pp. 13-19)
Contagem decrescente - Japão (3) A primeira espingarda do Japão - Hoje convocamos o próprio Fernão Mendes Pinto para nos dizer como foi introduzida uma espingarda no Japão. A descrição é conhecida e apetitosa. Recorremos à versão de Maria Alberta Menéres. É sempre muito bom relermos a “Peregrinação”: “…Nós os três portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocupássemos, gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes que eram de muita majestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos faziam muito gasalho, porque toda gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora. No meio desta nossa ociosidade, um dos três que éramos, de nome Diogo Zeimoto, tomava algumas vezes por passatempo atirar com uma espingarda que tinha de seu, a que era muito inclinado, e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir ter a um paul onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele com a munição, uma vinte e seis marrecas. Os japões, vendo aquele novo modelo de tiros que nunca até então tinham visto, deram rebate disso ao nataquim que neste tempo andava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual espantado desta novidade, mandou logo chamar o Zeimoto ao paul onde estava caçando, e quando o viu vir com a espingarda às costas, e dois chins carregados de caça, fez disto tamanho caso que em todas as coisas se lhe enxergava o gosto do que via, porque como até então naquela terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não sabiam determinar o que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora e assentaram todos que era feitiçaria".
Contagem decrescente - Japão (2) A Peregrinação que preparamos para o fim do ano será acompanhada aqui a par e passo. O Embaixador Martins Janeira recorda deste modo a chegada dos portugueses ao Japão. Trata-se de uma invocação que dá bem nota da importância deste contacto dos primeiros europeus com o Império do Sol Nascente: “A praia onde os Portugueses primeiro desembarcaram fica em Nishimura Ko-ura. É uma longa fímbria de areia branca entre a manta verde da terra e o espelho azul do mar. Contemplei-a do cimo dum castelo de rochedos altíssimos, erguidos contra os ventos do largo, e de cuja altura se desfruta um panorama admirável sobre o oceano infinito. A este abrigo veio dar o junco dos portugueses, impelido por uma tempestade, talvez um dos tufões terríveis que no fim do Verão, princípios do Outono, costumam assolar o Japão, espalhando devastações e mortes. No alto dos rochedos foi, em 1927, levantada uma pedra rústica, de uns três metros de altura, com uma inscrição japonesa relativa à introdução da espingarda – teppo –, sem alusão aos Portugueses. Há ainda um pequeno templo xintoísta e uma estela de cimento com uma inscrição dedicada aos mortos da última guerra – a todos os mortos. É curioso notar que todos os monumentos aos mortos desta guerra que se vêem no Japão são dedicados a todos os mortos, de todos os países, incluindo os inimigos. Admirável sentimento humano do país mais patriótico de todos, que aboliu os ressentimentos do patriotismo e quer lembrar e despertar apenas o sentimento de amor-dos-homens, da irmandade na morte. É um novo sentimento de humanidade, que finalmente começa a dealbar na consciência dos homens e a substituir o antigo culto militar dos heróis e do nacionalismo estreito. (...) Além do estranho aspecto dos Portugueses e das suas bárbaras maneiras de comerem com os dedos, do modo ruidoso e emotivo como falavam, o que mais chamou a atenção dos Japoneses foi as espingardas que traziam. O senhor da ilha, Tokitaka, compreendeu imediatamente o seu extraordinário valor no Japão militar, e pensou: «Isto é um tesouro singular que não tem igual na Terra.» Chamaram-lhe teppo, nome que ainda persiste e que teria valor decisivo no futuro do Japão, dando a vitória aos senhores que compreenderam o alcance da nova técnica e a introduziram nos seus exércitos.» - Armando Martins Janeira, Figuras de Silêncio – a Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje.
O Embaixador Martins Janeira com o escritor Shusaku Endo (1968).