Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Manuel Teixeira Gomes escreveu em 1927, na “Seara Nova” um texto memorável sobre o copejo do Atum, de que hoje damos conta.
“Ainda a madrugada não dava sinais de romper, já nos encontrávamos no bote que nos devia levar à armação (…). A companhia, como viera duas horas antes, acabava os últimos preparativos para a pesca, ensebando os cabos, experimentando as roldanas e reforçando as pulseiras dos arpões. À volta da armação aglomerava-se grande número de lanchas de carga, vindas durante a noite, dos portos vizinhos, onde o telégrafo levara aviso da grande copejada em perspetiva. Essas lanchas, pela ordem da sua chegada, destinavam-se a carregar peixe que se pescasse, para conduzir à lota de Vila Real de Santo António, o grande mercado do atum. Mas no enorme agrupamento de gente, batéis e lanchas, de que se distinguiam já claramente as formas e os movimentos, o que surpreendia era o silêncio, inesperado e sempre admirável na gente do mar, e sobretudo em algarvios de tão falaruca fama”. Depois do romper do sol, concentrados entre si, os homens “começavam a levantar o céu da armação” de modo a confinar os atuns no copo. Daí a pouco, avistados os primeiros atuns de bom calibre, os pescadores davam-se a uma tremenda gritaria e começava a “tourada”. Até alguns poucos marujos, numa cena helénica, cavalgavam alguns peixes, condenados à rendição, espetados por ganchorras e bicheiros.
Esta faina tremenda e cruel durou centenas de anos, com ganhos vultosos para os armadores. E nos séculos XIV e XV as velhas almadravas (antecedentes das armações) foram reforçadas com as reses de cerco também empregues na pesca da sardinha. E deste modo o Algarve tornou-se o grande centro da pesca do atum da Europa do sul. Note-se que as pescarias da costa algarvia foram doadas em concessão ao Infante D. Henrique, sendo as pescarias reais designadas como caçadas. Depois foram-se multiplicando as almadravas, tendo D. Manuel criado em Lagos uma Feitoria específica para essas armações. E o feitor encarregava-se de fiscalizar a coleta dos direitos régios, relacionadas com pescaria do atum, para verificar a venda do pescado que pertencia à Coroa. E Lagos tornou-se capital do atum, principal exportador do atum em salmoura para o Mediterrâneo. Foi o século XVI o de maior prosperidade nas pescarias, sucedendo-lhe no final da centúria uma fase de declínio e estagnação, soçobrando as armações. Perante essa evolução, Sebastião José, futuro marquês de Pombal, criou a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve para reanimar a pesca do atum, mas também da sardinha, estando ambas relacionadas por o peixe mais miúdo vir para a costa ameaçado pela voracidade do atum.
Lagos, Tavira, Faro e Fuseta foram as armações que melhor se mantiveram. Depois da revolução liberal deu-se a desamortização do mar, aboliram-se os direitos senhoriais e liberalizou-se a atividade piscatória, mas ficou um tratamento especial, criando-se a Companhia das Pescarias do Algarve, em lugar da sociedade majestática pombalina. Até aos dias de hoje houve profundas alterações na pesca e acompanhamento dos atuneiros.
Os conhecimentos científicos e técnicos, as investigações dos movimentos das espécies e das correntes tem permitido uma maior qualidade do atum para alimento, mas fica o eco da tradição e a reminiscência desta cultura atlântica e mediterrânica, hoje globalizada.
“Fainas Épicas do Mar Português” de Álvaro Garrido (CTT, 2022) é uma obra que nos permite compreender a relação dos portugueses com o mar, através do conhecimento das suas diversas realidades.
As pescas do bacalhau e do atum e a caça à baleia estão ligadas a um imaginário épico que permite compreender em toda a sua beleza e dramatismo parte da relação dos portugueses com o mar. As três grandes fainas que a obra trata partilham um registo estético ligado a uma violência que foi alvo de atenção de grandes escritores, que souberam projetar essa aventura humana para além da sua expressão económica e prática. Destas três fainas, “aquela que tem uma dimensão mais global e multicultural é sem dúvida a da baleia, dadas as ligações geográficas e humanas que as ilhas dos Açores há muito estabeleciam com os portos baleeiros da América do Norte”. De facto, a baleação açoriana é indissociável das relações no Atlântico Norte, tendo quer nas Artes quer na Literatura “uma expressão muito rica e pujante que cedo interessou grandes escritores europeus e norte-americanos”. Além das três epopeias, poderia também falar-se da arte xávega, artesanal, da pesca da sardinha nas traineiras ou das artes do cerco, bem ligadas à cultura piscatória da costa atlântica portuguesa. No entanto, as três áreas objeto desta obra, extremamente bela e educativa, constituem exemplos referenciais, que permitem obter uma informação e um conhecimento muito ricos sobre a diversidade das relações dos portugueses com o mar e sobre os desafios atuais lançados e as respostas necessárias no tocante ao aperfeiçoamento das técnicas de navegação e de orientação em mares agrestes e desconhecidos. Mais do que exaltar as imagens de sugestões épicas, há que compreender, pois, a motivação que levava aqueles homens a embarcar campanha após campanha… Apesar da dureza da pesca do bacalhau, era comum ouvir-se a um experiente homem do mar com trinta campanhas feitas que voltaria a embarcar se o pudesse fazer. Hoje, porém, mais importante do que imaginar um passado mítico ou do que fazer julgamentos retrospetivos, importará, segundo o autor, “descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa – os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima entranhada nas comunidades litorâneas”.
Para Orlando Ribeiro: “as pescas foram o motor de todas as fainas do mar e dos rios: cabotagem, navegação fluvial, extração do sal (…), portos de estuário e de rio hoje assoreados, estudados minuciosamente por Cortesão), navegação do largo”. A orla marítima desempenhou um papel importante na identidade portuguesa, apesar de uma situação paradoxal, segundo a qual há uma importância reduzida do mar na economia nacional, em termos globais. Apesar de ser um “país de costa” (na expressão de Raul Brandão), “nem por isso Portugal produziu grandes expressões de cultura marítima”. Se olharmos, por exemplo, a pintura naturalista de Silva Porto ou de João Vaz encontramos menos o romantismo e a fúria e mais o retrato melancólico e de falsa harmonia… O peso da ruralidade corresponde a uma reduzida expressão social das profissões marítimas. No conjunto dos Estados da União Europeia, Portugal é o que mais depende de capturas obtidas no exterior para abastecimento do mercado interno – o bacalhau do Atlântico Norte e a pescada do Sudeste Atlântico – com baixa produtividade da pesca costeira, sobretudo importante para as comunidades do litoral.
Começando pela faina dos bacalhoeiros, recorde-se o que Bernardo Santareno designou como “drama épico”, com uma prática multissecular, desde o século XVI, que hoje se limita a uma “produção nacional” de 2 por cento do consumo anual de bacalhau salgado seco no mercado interno português, por termos passado do domínio do Estado protecionista e autárcico do corporativismo (numa lógica paralela à da campanha do trigo) para a lógica atual das zonas económicas exclusivas. No auge da pesca transatlântica, em 1950 e 1960, uma campanha durava cerca de seis meses. De 1935 a 1974 matricularam-se vinte mil pescadores portugueses na faina, em todos os tipos de navios, desde os velhos lugres sem motor auxiliar aos arrastões pela popa. O lugre “Creoula” é uma referência histórica. Chegados aos bancos da Terra Nova e à costa oeste da Gronelândia, os pequenos dóris eram lançados e tudo se organizava para pescar o mais possível, carregar os navios com o maior ganho para o armador e indiretamente para os pescadores.
A literatura mundial atribui uma importância mítica à baleia e ao cachalote, com destaque para os baleeiros açorianos e norte-americanos. Herman Melville com “Moby Dick” e Júlio Verne ou a pintura de William Turner, mas também Luís Sepúlveda com a “História de uma Baleia Branca” invocam essa aventura. Lembremos que o porto da Horta foi no século XIX o maior entreposto baleeiro norte-americano no Atlântico. “Os pátios de desmancho eram lugares dantescos onde as crianças e os velhos vinham observar o esquartejar dos cachalotes, um acontecimento total na vida das povoações baleeiras…”. As condições eram, porém, precárias, numa atividade insalubre. O arpoamento era feito em chalupas e botes baleeiros, embarcações elegantes e esguias que permitiam uma grande versatilidade. A evolução das tecnologias e das mentalidades fez transformar a relação com a atividade baleeira. Em “Mulher de Porto Pim” António Tabucchi romanceia a memória dos baleeiros: «Fui lá com uma mitologia: ver como era uma caça à baleia. E outro motivo: ver os lugares de Antero, e por isso comecei por São Miguel, visitei a ilha, o cemitério, a casa e o sítio onde ele se suicidou. Depois, como não consegui encontrar por lá baleeiros, comecei a tentar as outras ilhas, até que consegui encontrar um, no Faial. E embarquei com ele…»
Falando do atum, apreciadíssimo desde a Antiguidade, temos de dizer que as águas algarvias têm condições excecionais para a passagem em dois movimentos entre o Atlântico e o Mediterrâneo. O rei D, Carlos foi dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia. O atum de direito desloca-se de ocidente para oriente, gordo e de ovas cheias e o atum de revés magro e voraz. Raul Brandão fala-nos das armações e dos arraiais, respetivamente em Tavira e na Ponta da Baleeira em Sagres. A armação era a arte da pesca em si mesma, o empreendimento humano, verdadeira obra de engenharia enquanto sistema de redes de captura, enquanto o arraial era a estrutura de apoio. O copejo do atum é um verdadeiro espetáculo, invocado por Raul Brandão e Teixeira Gomes. “O espetáculo é único. Quase inédito no Mundo. É tourada no mar. O campo verde da batalha não é agora mais que líquido viscoso. Alucina e entontece”. Eis outro lado dessa magia!