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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A PESSOA EM TENSÃO

  


O Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável. Por um lado, o corpo é o seu peso, a sua limitação — parece que, se fôssemos espírito puro, poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e, aparentemente, envilece-nos. Referindo-se ao nascimento, Santo Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: “inter faeces et urinam nascimur”, que não traduzo, por ser desnecessário. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece.


Por outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que encarnam e transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do in-finito. Um corpo humano canta, ora, sorri, produz obras de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de mármore Miguel Ângelo arranca a Pietà; misturando tintas, Van Gogh põe à vista as Botas com Atacadores e Leonardo, a Última Ceia. Com instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e vozes, corpos executam música, “a mais utópica das artes” (E. Bloch), que nos leva lá para onde nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.


Raramente alguém disse de modo tão realista o Homem na sua tensão como Vergílio Ferreira. Neste texto prodigioso, referindo-se ao enigma humano, escreveu num misto realista, dramático e sublime: “Um corpo é o que em obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer.”


Um corpo humano desabrocha como alguém perante outro alguém. Quando dois corpos humanos se abraçam são duas pessoas que dizem uma à outra quanto se querem bem. E outra vez Vergílio Ferreira, exprimindo a vivência do corpo pessoal e interpessoal: "Mónica, minha querida. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá."


E o corpo humano é um corpo livre, que não se entende como se fosse uma máquina nem na simples continuidade da explicação biológica. É um corpo capaz de dizer “não” ao que a biologia pede - é um asceta da vida, não fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime liberdade. E a liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível compreender a produção de um ser dotado de liberdade por uma operação física, sendo mesmo difícil, se não impossível também, compreender como pode o próprio Deus criar seres livres.


Por isso, o materialismo mecânico ou biológico não dá conta do Homem. Mas quem defender uma concepção dualista de Homem — um composto de alma e corpo, matéria e espírito — terá de responder à pergunta daquela criança de uma estória aparentemente ingénua, que já aqui apresentei: diante do cadáver da avó, o miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando que a avó tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o cemitério. E continuou, angustiada: "Sabes, meu filho, quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o teu corpo fica no cemitério." Aí, o miúdo observou, perplexo: "A minha alma vai ter com Deus e o meu corpo vai para o cemitério. E eu?"


Há o corpo fisiológico, anatómico — quando vou ao médico, espero que perceba de anatomia. Mas também há o corpo fora da anatomia — quando vou ao médico, espero que me trate como pessoa e não como simples corpo, à maneira de máquina desarranjada que ele como técnico especializado vai recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz “eu” e, portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. E também os outros, todos os outros são corpo-pessoa, vivendo-se a si mesmos como sujeitos.


Ser ser humano é viver esta tensão, numa arte quase impossível. Porque permanentemente espreita o perigo de coisificar o corpo ou de desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já Pascal preveniu: "O homem não é anjo nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer fazer de anjo faz de besta."


A tensão final, decisiva, refere-se à relação com Deus, o Sentido Último: negar Deus, entregar-se confiadamente a Deus. Aí, como escreveu o filósofo e teólogo J. I. González Faus, no seu livro recente ”Depois de Deus…”, é preciso ser consequente: “Se não somos de alguma maneira criaturas de Deus, mas fruto de um cego acaso, então todos os nossos pensamentos, afectos e actos de vontade são exclusivamente meras reacções químicas. Somos apenas uma máquina mais complexa, perfectível talvez, mas na qual não cabe essa palavra “dignidade”, que utilizamos como distintivo do nosso ser pessoal: uma máquina é bem tratada por puro interesse nosso, mas não por ter uma dignidade que exige esse tratamento; e quando já não interessa, desfazemo-nos dela.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 de maio de 2023

O ENIGMA DA PESSOA HUMANA


Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.


Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão “Die Zeit”. O que aí fica reflecte esse debate.


A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar — no caso do Homem, de objectivar-se — é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.


Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.


O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.


Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.


A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo — tentamos "tomar decisões racionais".


Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".


Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."


Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: “Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O “eu” que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro.”


Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de abril de 2023