Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Tantas vezes são as que penso que Dante procurou o modelo do seu inferno no nosso mundo real e sem qualquer dificuldade o descreveu. Contudo, quando narrou o céu, enfrentou-o uma inexcedível dificuldade, pelo facto do nosso mundo não oferecer nada de análogo. Cada um de nós tem um arquidiabo e vomita que sofrer e morrer e esquecer a fraternidade e a solidariedade é modo de nos matarmos mutuamente como destino. Enfim, se as dores deste espetáculo de medo que é o mundo nos entrassem em antros pelos olhos, reconheceríamos rapidamente a que espécie de mundo pertencemos. Seres atormentados só subsistem a devorar-se uns aos outros, e só se conserva a vida a preços do sofrer, e eis o absurdo gritante de tudo isto. Os olhos, e neles o olhar gelado, no meio da dor que os tenta a uma outra vontade de viver diferente. Mas eles quedam-se sem vacilar, não se fundem a não ser com eles mesmos.
Os otimistas de uma espécie harmoniosa expuseram-nos este mundo com uma candeia, guiaram as nossas interpretações, e giraram os nossos olhos para um lado da vida que fizesse pensar ou refletir. Tentaram. Ensinaram-nos que a existência humana é naturalmente um sonho efémero e assim deve ser aceite e vivida, e que os dias com fantasia não são de todo a razão oposta de um cadáver nos fazer sérios e silenciosos de repente, são sim, o sentir ali, um campo de batalha que a todos respeita e um dia ele nos tocará exigindo-nos o essencial. Um dia, há sempre um dia, em que terra e mar se mesclam e nas nossas mãos um irreconhecível gelo não permite qualquer fruto. Chega então uma dor inteligente, pode imaginar-se mesmo uma dor que nos aumenta a sensibilidade e nos faz sentir nas tragédias e nas comédias, atores de gabarito. Afinal quanto tempo andámos nos repastos do nada? Durante quanto tempo nos sentámos desprovidos de alegrias na pedra agelasta? E se tudo isso tiver sido em vão? Se até a história natural da dor for em vão? Que caçada estranha em que caçadores e caçados dividem as suas próprias carniças. Vive-se em privação mesmo quando se tem filhos, e muito se vive em casamentos forçados connosco próprios em que divórcio algum nos chega para autocrítica.
Contudo Romeu e Julieta adquiriram uma gloria imortal sobre o poder do amor com uma força e perseverança incríveis, embora vítimas das circunstancias exteriores que os separavam. Não creio que nos seja possível duvidar da realidade do amor, no entanto, uma questão tão importante deixada sobretudo ao dizer dos poetas, sinto-a, confesso, algo descurada dos caminhos dos filósofos, e, mesmo relendo Platão, nele encontro o amor grego, um domínio de mito e de jogos de palavras. Ainda assim na vida real o amor é a mais convicta de todas as molas como finalidade do esforço humano para a felicidade! Crê-se mesmo que no sono da morte do amor ainda existem sonhos. Estranho conforto de um fiel traidor que assim nos surge em jeito de prolongamento de existência. Mas enfim, creio sim que projetar a geração seguinte numa condição de entender o amor como algo que seja escolha individual e instinto e chave e diversidade, não se trata de uma vantagem individual, mas antes meio de garantir uma outra constituição da humanidade futura, porque o amor se transforma em vontade de espécie, e, ainda que seja dor, relativo a um bem de todos nós, não valerá ele a pena? O áspero realismo dos limites que vivem no amor é infinitamente mais nobre do que os sentimentos letais que desafiam esse amor. Ainda assim há que estarmos atentos porque a nossa natureza precisa de ser admirada e, deste modo, o ser que é a pessoa amada, nosso alvo da criação, somos nós, constituídos de um suposto novo ser diferente na nossa natureza, e esse ser não se contenta a não ser que sejamos nós o essencial.
Afinal que seres mal constituídos e desarmoniosos somos nós? Somos até a intriga que um dia conduz ao desamor e um dia ele não é mais do que um desenlace acessório. Aqui a força definitiva da morte acode-nos, se o ser amado partir e nós, nós, logo de modo exclusivo, ousamos descrever o que enfim foi nosso e tudo o que diz o mundo não impele à verdade de nada: nós somos finalmente essa verdade; essa dor, essa realidade de pacto e rodeios e manobras e limites e esforços, e de tudo isto, só nós temos a propriedade registral e mesmo assim somos infelizes!
Creio que em todos os fins que a vida humana tem, digno de consideração e de dor interpretada será sempre a impossibilidade de viver o amor, pois ao trocarmos os olhares que não destroem a vida, eventualmente seremos capazes de uma harmoniosa criação de sentires. Eventualmente
das estrelas: pois que já nascemos
numa luta de vencidos entoada na Aleluia que tanta sabedoria exige
'White Reclining Nude' (1956) de William Scott é propositadamente baseada na pintura 'The Bath' (1925) de Pierre Bonnard.
Para William Scott, as subtis divisões horizontais de cor e de matéria afirmam uma forte afinidade desta pintura de Bonnard com as pinturas de Rothko.
A figura submersa, de Bonnard desfaz-se na água e no plano. Esticado e parado, o corpo, numa só linha, abrange toda da tela. Os pés não aparecem, a cabeça não está completa. Tal como numa paisagem, a horizontalidade é dominante. Figura e fundo, fundem-se. Devolve-se o corpo ao seu tempo.
Bonnard escolheu ser o pintor do sentimento, isto é, o pintor que abraça a ideia de que a cor é um meio de expressão independente, e que além de conseguir representar o tema, comunica o pensamento e a intenção.
'What color do you see that tree? Is it green? Then use green, the finest green on your palette. And that shadow? It's blue, if anything? Don't be afraid to paint it as blue as you possibly can.', Maurice Denis
A verdadeira descoberta de Bonnard em relação à cor, atualiza-se no entendimento de que a resolução do conflito entre sombra e cor plana dá-se pela luz. A pintura é, assim para Bonnard o registo da cor, através das sensações e envolvidas pela luz. A superfície da tela transforma-se, por isso, numa membrana preenchida de luz, tal como um painel de mosaicos bizantino. Bonnard acredita no poder da cor para gerar luz. Luz, para Bonnard é vida, esperança, memória, calor e tudo o que pode ser sentido no mundo concreto.
'Our God is light. A day will come when you will understand what that means.', Pierre Bonnard
A pequena casa de banho coberta de azulejos, em Le Bousquet, passou a ser, desde 1927, o espaço por excelência onde metamorfose do corpo se dá pela luz.
E a pintura 'The Bath' mostra que Bonnard se preocupa continuamente com a fluidez, a transitoriedade, o silêncio, a sombra, o reflexo e com o ultrapassar do tempo, do espaço e do corpo através do poder transformador da luz.
'Painting has to get back to its original goal, examining the inner lives of human beings.', Pierre Bonnard
Pierre Bonnard (1867-1947), desde muito cedo, sentiu o impacto de duas grandes influências: a pintura de Gauguin e a gravura japonesa, que prosperou entre o séc. XVII e XIX.
No livro 'Bonnard' de Timothy Hyman, lê-se que, ambas as influências apontam para uma necessidade de planicidade e de síntese.
Paul Gauguin repudiava o puro naturalismo positivista que dominava a arte francesa, no final do séc. XIX. Acreditava que a pintura deveria regressar ao seu propósito original e por isso, ser o reflexo do mundo interior do homem. Desejava unir o mundo interior ao exterior, através do uso de cores planas e fortes, formas recortadas e bem definidas e linhas enfáticas. Gauguin acentuava uma visão profunda e sugestiva, que se presta mais à evocação do que à descrição.
De todos os Nabis, Bonnard era o mais profano e mundano, o menos receptivo à aura do revivalismo arcaico. Não esqueçamos, que os Nabis (Bonnard, Denis, Ibels, Lacombe, Maillol, Ranson, Rippl-Ronnaï, Roussel, Sérusier, Vallotton, Verkade, Vuillard) eram um grupo unido em torno das possibilidades da síntese (primária, original, verdadeira e evocativa) iniciada por Gauguin.
Ora, a negação do espaço de Gauguin foi considerada, pela maioria dos nabis, como uma maneira de transcender o mundo quotidiano. Para Maurice Denis, importante era a independência da cor e da linha, em relação à sua função representativa - isto porque uma pintura é essencialmente uma superfície plana coberta de cores, dispostas de acordo uma determinada ordem. Já para Bonnard, a planicidade, existia como um meio para compreender o mundo com ainda mais firmeza.
Foi em 1890, que Bonnard descobriu a gravura japonesa: 'I covered the walls of my room... To me Gauguin and Sérusier alluded to the past. But what I had in front of me was something tremendously alive.'
O tema dos gravadores japoneses é centrado no mundo flutuante, da experiência efémera e fugitiva, da burguesia no bairro do prazer em Edo (hoje Tóquio). Tal como as gravuras japonesas, a pintura de Bonnard anseia por fixar momentos fugazes através de formas bem definidas e essenciais. Bonnard também trabalhou com a gravura em madeira, o que lhe permitiu desenvolver uma nova sensibilidade no que diz respeito ao uso da cor: 'I realized that colour could express everything... That it was possible to translate light and shapes and character by colour alone.'
A pintura de Bonnard 'La Partie de Croquet' (1892) revela a interiorização da 'Visão depois do Sermão' (Gauguin, 1888), secularizada e padronizada pela gravura japonesa e deseja sobretudo, descobrir uma forma essencial, sintética, descarnada e incompleta capaz de alongar infinitamente um momento efémero do quotidiano.
'Our generation always sought to link art with life.', Bonnard