A ESTÉTICA DO EFÉMERO - I
Por qualquer razão, ou nenhuma, pareceu-me curial iniciar a publicação de post scripta, isto é, escritos posteriores às minhas cartas à Princesa de mim, apontamentos anotados na sequência delas, quer porque os redigira e não enviara, quer porque apenas os rascunhara para outros textos de reflexão. Reencontrados agora, apresentam, quanto a mim, uma virtude rara: a de descobrirem momentos de um qualquer discurso do meu pensarsentir, sem pretender concluir mais além do que a sugestão de caminhos para o entendimento de culturas que povoam a terra nossa, com as suas condicionantes e aparentes divergências, convergências, contradições e semelhanças. Sem pretender ensinar seja o que for, mas apenas recordar o que nos ajude a aproximar-nos. Não trago teses, trago hipóteses talvez só adivinhadas, mais insinuadas do que expostas.
Haru wa hana À Primavera as flores
Natsu hototogisu Ao Verão o cuco
Aki wa tsuki Ao Outono a lua
Fuyu yuki sae te Ao Inverno a neve
Suzushi kari keri Cristalina imaculada
Este poema encontra-se no cancioneiro Shobogenzo (abram os ós e leiam guê) que Mestre Dogen (idem para a pronúncia do nome) redigiu entre 1231 e 1253, ano de sua morte. Tal coletânea é obra marcante e reveladora da cultura e da literatura japonesas: na verdade, todos os waka que a compõem foram escritos em japonês clássico. Mas, como nos esclarece Yoko Orimo no seu inspirador Comme la lune au milieu de l´eau, Art et spiritualité du Japon (Le Prunier, Sully, Paris, 2018) -, feitas as contas, mais não são do que traduções e comentários de sutras e textos escritos em chinês... ... No seio do espaço literário essencialmente compósito da obra, concebido e estruturado como espelho sem estanho, o japonês e o chinês mutuamente se refletem. E é graças ao reflexo dessas duas línguas e civilizações, simultaneamente tão próximas e tão diferentes, que conseguimos ver e entender o que ainda não tínhamos visto nem entendido até agora...
Esta autora japonesa, diplomada pela École Pratique des Hautes Études de Paris é sobretudo conhecida, precisamente, pela sua tradução e interpretação do Shobogenzo - a verdadeira Lei, Tesouro do Olhar (Sully, Vannes, 2014), de Mestre Dogen (1200-1253). Talvez por aqui inicie ela a sua interpretação da cultura japonesa como cultura de empréstimo, ideia que não andará muito longe da de outros, mas sempre no sentido em que Shusaku Endo nos fala da assimilação pelo "pântano" japonês, que tudo engole, digere e devolve seu. Tenho para mim, e não só, que a caraterística marcante da cultura japonesa - tal como entendo o que é uma cultura - é o seu extraordinário poder de assimilação de outras, sempre concomitante à sua perseverança em ser ele própria.
Mas prefiro hoje abordar a questão do tempo como essência da própria cultura nipónica. Em cartas muitas à minha Princesa de mim falei da perceção e cultura do efémero como forma de espiritualidade... Sobre outras teses da presença essencial do tempo em culturas como a do Sol Nascente, talvez diga que sim, mas enquanto momento. Arrisco então a hipótese de que o instante no tempo circular é como eternidade, essência mais do que efeméride.
Será isto mais difícil de entender em mentes que pensam em tempo escatológico. Todavia, também nós, os que vivemos em culturas de forte sentido escatológico, muita vezes nos surpreendemos a viver, pensarsentir ou desejar como eternidade um instante só. Então dizemos que, durando apenas um minuto ou uma hora, nos pareceu uma eternidade. Poderá ter sido assim por força do nosso lado passivo, sofredor ou ansioso. Ou, para nossa satisfação, por virtude desta nossa entranha amante, ou por essa aspiração à completude perfeita que, para tanto ser, só é concebível na intemporalidade, num algures ainda desconhecido e, como tal, quiçá um nenhures a que chamamos utopia. Assim imaginaremos a nossa ressurreição possível apenas noutro mundo, ou num universo transformado, como a face da terra renovada pelo Espírito, tudo isso, afinal no final do tempo, quando a duração já não é possível, pois nenhuma mensuração poderá então fazer qualquer sentido.
Em tempo circular, já os instantes e suas manifestações próprias se sucedem em roda de eterno retorno, como se a passagem das horas, dos dias, das luas e das estações fossem constante advento e regresso. Assim devemos entender aquele ditado japonês que diz que a flor é o espelho do tempo, pois que pela variação infinita das suas formas e cores, lembra-nos Yoko Orimo, a flor nos deixa ver o tempo: fazendo-se eco do que é nela invisível, a flor anuncia a estação que chega e que parte. Com esta inspiração devemos entender esse ensinamento de Mestre Dogen: A multidão de cores não está reservada apenas às flores, a multidão dos tempos também se reveste de cores como o azul, o amarelo, o vermelho, o branco, etc. A Primavera atrai as flores; as flores atraem a Primavera.
Sobre esta intuição, Yoko Orimo elabora a seguinte premissa: Se a flor é o espelho do tempo, espelho que traz a imagem do invisível, o tempo é já, ele próprio, o espelho. E conclui: Refletindo-se a si mesmo e em si mesmo, o tempo torna visível a imagem deste Presente tal qual, Presente eterno. Já dizia Mestre Dogen que, sendo a imagem e o espelho apenas um, esse espelho é a Natureza. E Orimo esclarece que, contrariamente aos espelhos feitos por mão humana, o espelho que é a Natureza é um espelho sem estanho, «Não tem verso nem reverso, ambos os lados oferecem visão. Parecem coração e olho. E parecer significa que uma pessoa encontra outra» (Dogen)... A cada instante, em cada estação, a Natureza realiza a sua própria imagem, fazendo-se eco dela mesma e nela mesma, desde sempre e para sempre. Isto porque no coração da Natureza se encontra a Ressonância do universo. Nada mais além dessa Ressonância do universo, idêntica ao coração da Natureza, se cristaliza na Primavera em imagem de flores, no Outono em imagem da lua, no Inverno em imagem da neve.
Assim a própria natureza se contempla nela mesma: ver e ver-se, o visível e o invisível, o dentro e o fora, a profundidade e a superfície são apenas um. E como essa visão da Natureza pertence ao coração da Natureza, o povo japonês diz que «A flor tem coração». E perante a terra toda coberta de neve, Mestre Dogen afirma: «todo o verso e todo o reverso estão cobertos de neve profunda. O universo inteiro é a terra do coração, o universo inteiro é sentimentos e emoções das flores!» Por paradoxal que pareça, só o coração da Natureza, puro e transparente como um espelho, cria a primazia da superfície na estética japonesa...
Tal dimensão espiritual da Natureza, e a profunda comunhão do ser humano com ela, será o que explica a frase de Paul Claudel: Nesse belo e feliz país o natural e o sobrenatural são apenas um... Eu próprio que, desde muito novo, enveredei pela busca insistente da consistência de algo permanente, sendo aliás sempre curioso e sobretudo atento a processos de aculturação, tentei - talvez inspirado pela minha juvenil leitura de Teilhard de Chardin e de Lévy-Strauss - perceber melhor os progressos e falhanços das inculturações religiosas e filosóficas no Japão. Já falei bastante sobre isso, e até publiquei escritos dispersos, designadamente sobre os modos budistas de aculturação com o shintoísmo nativo, bem como o estigma de estrangeirado que sempre marcou o cristianismo naquela cultura. Sobre a seara que hoje escolhi para talho de minha fouce, nada repetirei do que já afirmei ou interroguei. Apenas traduzirei uns trechos da obra de Yoko Orimo aqui citada, que oportunamente introduzirei nestas reflexões sobre a estética do efémero. Por agora, regresso a lições colhidas em leituras da minha mocidade e que, pensossinto, paradoxalmente ainda hoje me ajudam a conviver melhor com espiritualidades inspiradas por outras diferentes filosofias, tal como por visões do universo e perceções do tempo certamente contrárias e aparentemente contraditórias daquelas em que fui criado. Ao melhor recordarmos raízes, troncos e ramos da nossa cultura nativa, tanto melhor nos aperceberemos das diferenças dos conceitos inerentes a discursos e sensibilidades diversas e, por exercício dialético, nos aproximaremos de um olhar comum do coração da humanidade.
Assim, é curioso como o grande paleontólogo, antropólogo, visionário e místico, francês e jesuíta, Pierre Teilhard de Chardin, autor de obras cujos títulos apenas já muito dizem (La Place de l´Homme dans la Nature; Le Phénomène Humain; Le Milieu Divin), evolucionista crente na obra de Deus como motor da história natural, suspeito de panteísmo pela Igreja, tenha começado a sua aventura interior, científica e mística, por um firme propósito de procura do imperecível e duradouro. Escreve um seu biógrafo, o dominicano Jacques Arnould - doutor em ciências e em teologia, investigador da vida e sua evolução e das dimensões éticas, sociais e culturais da chamada "conquista do espaço" - em Teilhard de Chardin (Perrin, Paris, 2005:
Sempre em busca do imperecível e do duradouro, atravessa um período dito "do Ferro". Sessenta anos depois, escreverá em Le Coeur de la Matière: «Não devia ter mais de seis ou sete anos quando comecei a sentir-me atraído pela Matéria ou, mais exatamente, por algo que "luzia" no coração da Matéria». É verdade que, esclarece, sob a influência duma mãe tão piedosa como a sua, ele tem muito amor ao Menino Jesus. Todavia, reconhece, o seu "eu" está alhures nesses momentos em que, secretamente, se recolhe «na contemplação, na posse, na existência saboreada do seu "Deus de Ferro"». Uma chave de charrua encontrada no campo, ou um estilhaço de obus, a cabeça duma cunha de reforço, claro que metálica, emergindo dum soalho: eis uns ídolos que o miúdo literalmente adora. «E porquê o Ferro? e porquê, mais especialmente, tal pedaço de ferro (tinha de ser, o mais possível, espesso e maciço), só porque, para a minha experiência infantil, nada neste mundo era mais duro, mais pesado, mais tenaz, mais duradouro do que essa maravilhosa substância apanhada em forma tão plena quanto possível...» De que andará já à procura o rapazito de Sarcenat, que prefere o robusto coleóptero à muito frágil borboleta, a não ser da consistência e, sobretudo, do inalterável? «Até hoje (e sinto que até ao fim) essa primazia do Inalterável, isto é, do Irreversível, não cessou, não cessará nunca de marcar irrevogavelmente as minhas preferências pelo Necessário, pelo Geral, pelo "Natural" - por oposição ao Contingente, ao Particular e ao Artificial - tal disposição tendo, aliás, e por muito tempo, obscurecido a meus olhos os valores supremos do Pessoal e do Humano. Sentido da Plenitude, já nitidamente individualizado, e procurando já satisfazer-se pelo agarrar de um Objeto onde se concentrasse a Essência das Coisas». Ser-lhe-ão precisos muitos mais anos para descobrir «até que ponto a Consistência é então um efeito, não de "substância", mas de "convergência".
Agora, neste instante mesmo, cá estou eu a tentar olhar para isso a que se chama "Essência das Coisas" por diversas perspetivas, e procurando apor dois discursos diferentes, em vez de os opor. A perspetiva do tempo escatológico, prisma cristão, e a do tempo circular, não só prisma budista, mas shintoísta também e, na cultura japonesa, com a sua versão shinto-budista. Traduzo mais um trecho do livro de Yoko Orimo:
Deve ressaltar-se que, no decurso do longo processo de aculturação do budismo em terra japonesa, se desenvolveu, sobretudo a partir do fim do século XI, o sincretismo shinto-budista, em cujo seio a pouco e pouco se operou uma revolução doutrinal acerca da noção de impermanência: mujo. Se o budismo antigo concebia, com forte pendor pessimista, a existência humana como que atirada para o oceano do sofrimento em que os seres transmigram infinitamente, para o shinto, o mesmo movimento perpétuo do aparecer e desaparecer neste mundo fenomenal mais não é do que o processo natural e global da regeneração da vida do universo, incitando o ser humano a contemplá-la e exaltá-la. Nos confins destas duas óticas espirituais radicalmente opostas [a budista antiga e a shinto-budista], o sincretismo shinto-budista acaba por proclamar que a impermanência é permanente enquanto impermanente e é precisamente a própria manifestação da natureza do Despertado (Buda) abraçando a vida de todos os existentes, incluindo minerais e vegetais.
Regresso afinal à minha tradução e meditação do waka de Dogen, acima transcrito: a Primavera (haru) é flor (hana), como as flores são Primavera; o Verão (natsu) cuco (hototogisu), como é cuco o Verão que o pássaro do tempo (hototogisu) acorda; o Outono (aki) é lua (tsuki), e esta em suas fases passa pelo quarto minguante e outonal do ciclo; anunciando o Inverno (fuyu), neve (yuki) gélida que, cristalina, nítida, nos cobre como manto. Os perecíveis impermanentes da Natureza falam-nos da permanência da vida, fazem-nos ver o invisível. Também aqui descobrimos que a Consistência não é efeito da substância, mas da convergência do Espírito e da Matéria. Simultaneamente material e visível, espiritual e invisível. Será?
Camilo Martins de Oliveira