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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AMADEO E DELAUNAY NO POMPIDOU

  


O encontro de agora de Amadeo de Souza Cardoso, Sonia e Robert Delaunay em Paris no Centro Pompidou numa exposição memorável, inaugurada há dias, constitui um marco fundamental para a compreensão da história do modernismo no início do século XX. Depois da apresentação no Grand Palais parisiense da grande retrospetiva sobre Amadeo, com curadoria de Helena de Freitas (2016), há agora oportunidade para, através de uma correspondência entre os três artistas de exceção, se proceder à análise (que é disso que se trata para o visitante informado) de um verdadeiro diálogo, baseado em identidades criadoras que se diferenciam e que se completam, dando-se à expressão Correspondência(s) um significado que envolve aproximação e emancipação no domínio do pensamento e da arte. Como diz Helena de Freitas num precioso catálogo: “foi uma escandalosamente (quase) desconhecida correspondência que deu corpo ao histórico da relação destes três artistas, e dos restantes que constituíram os artistas da chamada “corporation nouvelle” reunidos pela guerra (de 14-18) em Portugal e em Espanha”. E o certo é que essa ideia de grupo informal surge como sinal de uma surpreendente modernidade, à volta das ideias de expositions mouvantes, de transferências culturais e de um trabalho transnacional em rede, em tudo contrariando qualquer centralismo parisiense.


A verdade é que a exposição do Centro Pompidou é ela mesma uma ilustração criativa da ideia complexa de correspondência, antes de mais expressa no rico diálogo entre Helena de Freitas e Angela Lampe na apresentação do tema e, em seguida, na demonstração prática sobre os percursos paralelos de Amadeo e dos Delaunay, nos quais nos apercebemos bem da independência de Amadeo, avesso à ideia de escola, em contraponto com o caminho de Sonia e Robert. Como salientaram Laurent Le Bon, presidente do Centro Pompidou, e Xavier Rey, diretor do Museu Nacional de Arte Moderna, a cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian “inscreve-se numa ambição mais alargada de reescrever a história da arte do início do século XX, revelando um panorama artístico complexo e interconectado”. E assim podemos não só reconhecer a grande importância da obra de Amadeo, mas também compreender neste contacto transfronteiras o sentido plural das raízes do pensamento moderno, bem evidenciado no grupo que abrange ainda Eduardo Viana, Almada Negreiros e Samuel Halpert, que Ana Vasconcelos criteriosamente tem estudado.


Contudo, a força criadora capaz de pôr as cores a girar e de garantir o culto da luz, como dizia Sonia, foi perturbada por um episódio grotesco em que a artista foi vítima de uma denúncia anónima, algo delirante, que a acusava de ser espia pró-alemã, por emitir sinais, através dos círculos órficos da sua pintura, para os submarinos alemães ao largo da costa portuguesa. Foi um caso caricato que projetou para fora da dimensão artística uma premonição intelectual que constituiu pano de fundo para estas correspondências que representam a vivência de uma nova mentalidade na arte de pensar e de criar.


Sente-se o ambiente tenso. Amadeo, em 1915, diz: “Esta paz tornou-se demasiado cara (…) e nós estamos a pagá-la”. Mas, perante as acusações absurdas de espionagem, já em 1916, descansa Robert Delaunay: “Fique tranquilo. Tudo acabará por correr bem. A verdade e a razão são muito poderosas. Todo o Porto está ao corrente deste caso e Lisboa também. Depois disto, fará exposições artísticas ainda com mais sucesso…” E dirigindo-se a Sonia: “O meu jardim está pleno de cores de seiva e de luz. Há morangos para encher os cestos, ‘rosas jovens e fortes’. Estou apaixonado. O Rimbaud vive no meu quarto. Vivo sob ‘cúpulas de esmeraldas’. Vejo ‘na minha anca a assinatura do poeta, e sou animal, e isso agrada-me”. E, embrenhado nesse prazer vivido, em Manhufe, Vila Meã, concluía: “Cuido, do que aprendi e herdei”.


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"MODO DE VER"

  


Em Notas sobre o Cinematógrafo, Robert Bresson lembra o segredo do artista genuíno e aconselha: “Faz aparecer o que sem ti provavelmente nunca seria visto”. Não por acaso, a comissária Ana Vasconcelos inicia com esta citação o seu texto no belíssimo catálogo da exposição, mais do que antológica, de Cruz-Filipe na Fundação Calouste Gulbenkian. E o feliz título “Modo de Ver” leva-nos ao que Bresson dizia relativamente ao cinema e que, em boa verdade, devemos estender a toda a Arte – é um movimento interior. No caso de Cruz-Filipe, estamos diante de um pintor, de rara sensibilidade, com o culto misterioso da representação da vida e do mundo. Quando percorri a mostra, fi-lo em silêncio, como aconselho vivamente a quem o faça, e em cada quadro confrontei-me com mistério. Há sempre algo escondido que nos obriga a procurar ir além. Mesmo no caso de “Música de Câmara”, a primeiríssima obra, de 1955, exposta na galeria “Pórtico”, ao Chiado, num registo diferente do que veio a caracterizar a obra de Cruz-Filipe, também sentimos a existência de um segredo, que, como acontecerá depois, põe em diálogo a pintura e outra forma de arte, nesse caso a música, que está sempre presente em toda a obra, como chave do movimento interior.


Centro-me em “Intervalle du temps”, de 1982, exatamente no ano em que o conheci e comecei a trabalhar no meu ofício de advogado com o pintor. Vou ao interior do cenário e vejo-me transportado a uma casa holandesa, onde vinham chegando os cristãos-novos portugueses. O que está escondido tem a ver com uma certa incomunicação, presente no “tempo imaginário” de que falava Eduardo Lourenço – “harmonia, ao mesmo tempo abolida e miticamente presente”, num momento de glória da pintura: “tempo morto, feliz na sua própria morte”. Se pensarmos em “Teatro dos sentidos”, de 1991, reportamo-nos a um mundo de sonhos e, como diz Bernardo Pinto de Almeida, “cada quadro é um reflexo de múltiplas reverberações da imagem”. Daí o “estatuto cenográfico radical”, referido por João Pinharanda, não podendo esquecer-se, como Raquel Henriques da Silva salienta, que a pintura deambula entre universos diferentes, mas sempre com profunda originalidade, entre continuidades e descontinuidades, subtilmente encadeadas, num maneirismo singular.


A exposição da Gulbenkian reúne obras realizadas desde a década de setenta, incluindo telas inéditas a partir de 2015. Cinquenta e sete pinturas traçam a evolução da obra do autor até à mais recente de 2020. Dez pinturas inéditas representam a fase mais recente da sua criação. Ricardo Cruz-Filipe ganhou destaque sobretudo depois de 1969, ano emblemático da inauguração da sede da Fundação, quando apresentou pinturas sobre telas fotossensibilizadas, técnica de que foi, com Rolando Sá-Nogueira, pioneiro entre nós. Encontramos assim uma matriz pop, num processo de colagem de fragmentos de imagens, numa reconstrução baseada em pinturas italianas e flamengas dos séculos XVI e XVII. E assim o pintor consegue a revelação e a ocultação de imagens com um efeito de magia. Se no primeiro ciclo é o corpo humano que protagoniza a encenação, no segundo ciclo é a natureza que se torna expressão viva da representação – mar, céu, terra atmosfera, natureza líquida e sublimada. Se considerarmos o pintor como um alter-ego de Álvaro de Campos, na sua profissão de engenheiro, a verdade é que ele se distingue nessa relação, através da “magia objetiva de sonhar estando acordado”, para relembrar ainda Eduardo Lourenço, num desassossego que se inclina para um sonho surreal, dominado pela busca misteriosa do ausente que se torna presente, na simbiose entre o olho humano e a fotografia. E Ana Vasconcelos tem razão, ao procurar entender o sentido profundo da obra do pintor, pondo em paralelo a imagem e a representação, e ao invocar de novo Bresson, que visava “atingir esse ‘coração do coração’ que não se deixa captar nem pela poesia, nem pela filosofia, nem pela dramaturgia”.


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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A ÚLTIMA CEIA


1 - 
No mundo latino, não há sacra imagem mais reproduzida e mais divulgada. Nessa divisão, normalmente situada ao fundo de longos e desabridos corredores, a que no século XIX e em grande parte do século XX, se chamou casa de jantar, a burguesia e a pequena-burguesia, mesmo quando maçónicas ou jacobinas, entronizaram, quase sempre, gravuras, litografias ou, nas casas de pior gosto, horrendos baixos-relevos esmaltados ou pintados, reproduzindo o cenáculo davinciano pendurado sobre o aparador com torcidinhos. Nenhuma dessas reproduções reproduzia a pintura de Leonardo, como ela estava ou como ela era à época da sua mais intensa popularidade. Bem cedo depois de ter sido pintada (1495-1497), "L'Ultima Cena" já começara a obscurecer-se. Em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca". Mas a fama de Leonardo era tamanha, tamanha era a reputação da "tavola" pintada no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, que, na primeira metade do século XVI, já se multiplicavam as cópias a óleo de discípulos do Mestre, como Solari ou Luini. A mais famosa dessas cópias data de 1625, quando o cardeal Federico Borromeo a encomendou a um tal Vespino, para que a "reliquiae fugiente" da "Ceia" ficasse para a posteridade.


Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.


Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da conceção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objetivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma ação definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de atos e reações mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra." Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projetou, como se luz fosse de um projetor cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.


2 -
 Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjetivando. É que até eu, e até ao dia 11 de novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia ação)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exatos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.


3 - 
Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia". Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas. Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?" Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação. Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz.

Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.

João Bénard da Costa
14 de novembro de 2003, in Público

A VIDA DOS LIVROS

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    De 1 a 7 de janeiro de 2024

 

Recordo o pintor e crítico de arte Fernando de Azevedo, nascido no ano de 1923, em Vila Nova de Gaia, cofundador, com Marcelino Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill e José-Augusto França, do Grupo Surrealista de Lisboa (1947-49).

 

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O «SOBREREALISMO» EM AÇÃO

Neste ano de vários centenários, que nos leva a concluir como foi fértil 1923 numa antecipação ao “baby boom” do fim da outra grande guerra que sucedeu ao mal terminado conflito de 1914-18, referimos alguém que merece lembrança como artista que soube refletir sobre as grandes tendências do seu tempo, marcando pela sua presença e intervenção. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa marcou a transição do pensamento social e político dos anos trinta e quarenta do século XX para a procura de novos caminhos no pós-guerra em que a liberdade e a valorização existencial abriram perspetivas inovadoras de diversidade e sentido crítico. O grupo assumiu o inconformismo sistemático, começando por romper com Cândido Costa Pinto, que tinha tido um papel simbólico importante no contacto com o patriarca do surrealismo André Breton. E a razão da rutura foi a participação daquele numa mostra organizada pelo SNI, organismo do Estado Novo, “quartel-general da demagogia a cores”. Como dizia a nota de rutura: “O super-realismo tem de seguir a linha da não transigência com as posições equívocas”.

A primeira iniciativa do grupo foi a realização de uma exposição, em 1949, no ateliê da travessa da Trindade, com a participação de António Pedro, onde se incluíam dois Cadavre Exquis, um de Vespeira e Fernando Azevedo e outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira e Moniz Pereira. Fernando Azevedo teve, assim, uma participação muito ativa desde o início. A exposição seria, aliás, motivo de grande agitação e de ameaças policiais, até porque a primeira proposta de capa do catálogo inseria-se na campanha presidencial de Norton de Matos. “Depois de 22 anos de medo ainda seremos capazes de um ato de Liberdade – é absolutamente indispensável votar contra o Fascismo”. A censura não poderia, porém, autorizar esse texto e a capa seria substituída à última da hora por outra de cor branca riscada à mão por dois traços de lápis azul. Fernando Azevedo era um dos participantes mais ativos. O pintor tinha-se formado na Escola de Artes Decorativas António Arroio, inscrevendo-se depois na Escola de Belas Artes de Lisboa, que acabaria por abandonar, recusando as sombras do academismo. Começou por pintar dentro das orientações do Surrealismo, no entanto o seu percurso caracterizou-se pela evolução para o Abstracionismo. Tinha exposto pela primeira vez em 1943, com Vespeira e Júlio Pomar, acompanhando o início do movimento neorrealista em 1945-46, mas logo no ano seguinte foi cofundador do referido Grupo Surrealista (com objetivos demarcados dos do neorrealismo). Depois da exposição de 1949, que seria a única exposição do grupo, os seus membros consideraram não ter condições para continuar. Em 1952, participa na exposição realizada na Casa Jalco, em Lisboa, dedicada ao precursor do surrealismo em Portugal António Pedro - «Uma exposição de óleo, fotografia, guache, desenho, ocultação, colagem, linóleo, constituída por três «Primeiras exposições Individuais» de Fernando de Azevedo, Fernando de Lemos e Vespeira. No projeto “Unicórnio…, Pentacórnio, de 1951 a 1956, Azevedo é, com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e o organizador José-Augusto França, totalista, ao participar em todos os cinco números, com um texto exemplar sobre o Surrealismo no Tricórnio.

 

TOTALIDADE E AUTENTICIDADE

O Surrealismo proclamava, pela pena de Fernando de Azevedo, a procura da totalidade e autenticidade do ser, através da entrega aos modos de erupção do inconsciente: o sonho, a trouvaille, a alucinação, a associação livre, a loucura, a magia, a alquimia, a mediunidade, o mundo infantil e o mundo da imaginação primitiva, mítica, artística, sonâmbula e automática”. Deste modo, o pintor assumiu uma criação pictórica de importância notável (“ocultações”) e uma frenética e persistente reflexão, em ligação com a participação em inúmeras exposições coletivas, tendo recebido um 1º Prémio de Pintura na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 1961. Desde a 1947 desenvolve atividade não apenas como artista, mas também como crítico (no “Mundo Literário” e em “Horizonte”); publicando, ao longo da sua vida, textos na imprensa, em catálogos, livros e revistas da especialidade, com destaque para na Revista “Colóquio-Artes” (editada pela Fundação Calouste Gulbenkian entre 1971 e 1996), da qual foi Consultor Artístico, e de facto grande impulsionador ao lado do seu amigo José-Augusto França e com Rui Mário Gonçalves. “Sabe hoje o pintor que a realidade exterior e a realidade interior têm dois perfis dados pela mesma linha comum” – afirmou o artista logo no início dos anos cinquenta, definindo com clareza os dois lados em que se assumia em si a vocação de cultor do “desejo partilhado e inadiável de liberdade”. E é esta coerência irrepreensível que encontramos no seu percurso de intelectual comprometido. Nessa missão de intérprete da arte como pensamento inconformista, ocupou sucessivamente os cargos de Assessor da Direção, Diretor-Adjunto (1989-92) e Diretor (1992-94) do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. E ainda exerceu a presidência da Direção da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses entre 1972 e 1974. Foi vice-presidente e presidente da Secção Portuguesa da AICA (1977-1979 e 1987-1994). Foi presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes entre 1979 e 2002.

Leonor Nazaré tem razão ao afirmar que Fernando de Azevedo foi figura central do surrealismo português “tendo empregado o seu entusiasmo e a sua criatividade artística na ação cívica e no preenchimento desse programa que se queria liberto de constrangimentos estéticos referenciais e políticos – em dissidência com os neorrealistas, com quem o grupo inicia o percurso artístico, mas de quem depois se separa”. Afinal, o artista soube sempre a importância de manter uma tribuna que era simultaneamente um modo de pôr em diálogo a receção e a criação.  “A escrita abre um espaço próprio ao pensamento sobre as obras e os artistas (como insiste Leonor Nazaré), e esse espaço aberto lhe assegurava conceitos, razões, poesia, intuição e verdadeira relação com a arte, do ponto de vista da receção que quis manter ativo a par do ponto de vista da criação”. Arte e compromisso são as duas faces do pintor e do ensaísta, em busca de um caminho em que coubesse a medida do homem e não a sua imitação…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE D

DEDO DE AURÉLIA (O)

 

Como poderíamos aproximar-nos do términus deste folhetim, depois da presença tão forte de Carolina Michaëlis, sem chamarmos à ribalta Aurélia de Souza (1866-1922)?  É uma das personalidades mais marcantes da arte portuguesa, na transição do século XIX para o século XX. A sua obra assume os grandes temas da pintura europeia da época, sendo de destacar a utilização continuada do autorretrato ou da autorrepresentação que se alarga, à semelhança com o que ocorre com os maiores pintores, à construção teatral e onírica de narrativas que envolvem a casa de família e as pessoas das suas relações. Acrescente-se que outro aspeto original da obra de Aurélia é a prática da fotografia como componente, com percursor grau de autonomia, do extraordinário trabalho da pintura.

Não obstante a sua ligação umbilical ao Porto, Aurélia de Souza nasceu em 1866, no Chile, filha de emigrantes portugueses. A artista mudou-se com a família ainda criança para o Porto, sendo sempre considerada à frente do seu tempo, todavia nunca casou, nem teve filhos.

Aurélia foi aluna brilhante da Academia de Belas Artes do Porto e completou a sua formação com uma estada em Paris onde frequentou a Académie Julian (acompanhada pela sua irmã, também pintora, Sofia de Souza). Bem relacionada com o meio artístico e cultural do Porto, participou em exposições em Lisboa, na atitude determinada de se afirmar como uma pintora profissional num meio predominantemente masculino em que as mulheres artistas em princípio não deviam ambicionar mais do que o estatuto subalterno de amadoras.

Aurélia de Souza é um caso especial no panorama da arte portuguesa de finais do século XIX e inícios de XX. Ao contrário de outras mulheres artistas, com quem compartilhou talento, esforço e coragem, a sua vida discreta apenas foi contrabalançada por uma obra que nos surpreende sempre. Uma recente mostra no Museu Soares dos Reis, com curadoria de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, apresentou cinco núcleos. O primeiro, “Vidas”, tratou essencialmente do retrato na obra da pintora, correspondendo ao vetor fundamental da sua produção. No segundo, “Espaços”, integraram-se os locais de intimidade que refletiram o cenário a partir do qual teve lugar grande parte da vida de Aurélia de Souza e dos seus talentos na Quinta da China com vista para o Douro. No terceiro núcleo, propunham-se “Temas”, numa obra muito rica que registou uma grande variedade temática de acordo com a grande amplitude dos seus interesses. Finalmente, o último núcleo da exposição, “Cores”, dedicado à exploração do eu, do autorretrato e da autorrepresentação, permite entender a paleta plural usada pela pintora, perante a variedade das paisagens. E a produção de Aurélia de Souza atinge o auge no célebre “retrato do Casaco Vermelho”, finalizando o percurso de homenagem e tornando visível a vida e obra desta fantástica criadora.

Ao seguirmos a obra multifacetada de Aurélia de Souza, compreendemos simultaneamente a identidade cultural da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, o espírito independente da urbe, que foi a única cidade-estado existente em Portugal, o facto de ter sido, ao longo do tempo, capital política e cultural do País – desde a independência, passando pela crise de 1383, pela expansão, pela inserção europeia do comércio do vinho fino, até à vitória do constitucionalismo liberal, ao desembarque do Mindelo (que permitiu a vitória do Cerco do Porto, mas também deu nome à capital da ilha de S. Vicente em Cabo Verde) ao sucesso da causa de D. Pedro IV, à afirmação da liberdade política, económica e cultural, à Regeneração, à Liga Patriótica do Norte, ao 31 de janeiro, à Águia e à Renascença Portuguesa. A riqueza da obra da artista não foi produto do acaso, como não o foi a de Carolina Michaëlis, de Guilhermina Suggia, de Helena Sá e Costa ou de Agustina Bessa-Luís. Em todos os casos, o papel desempenhado por mulheres pioneiras significou a compreensão de que a sua emancipação tinha toda a coerência com o espírito da cidade invicta. E neste folhetim fantasmático, depois de virmos de Entre-Douro-e-Minho, e tendo palmilhado meio mundo, compreendemos que o dedo indicador de Aurélia aponta no sentido da liberdade e da independência. Eis como a arte pode tornar-se libertadora…

 

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


As pinturas geométricas de Richard Gorman são certezas manifestas.


A série de pinturas, que Richard Gorman (1946) concebeu para a exposição “Kin”, (MAC, Belfast, 2014) tem como começo 3 a 5 círculos que se intersectam.


Gorman revela que estas pinturas não são conceptuais, onde um conceito ou pensamento é ilustrado e explorado visualmente. As suas pinturas são antes puras evidências. São certezas manifestas de um processo que se dá ali no seu atelier.


Na solidão do atelier, Gorman resolve problemas que nunca existiram antes de se começar a pintar. Para si, uma pintura é um conflito com a desordem, com o inesperado, com o indesejado, com a lentidão e com as limitações materiais e físicas. Uma pintura, Gorman acredita, não tem de ter uma mensagem implícita, porque assim que se começa a pintar, o que quer que seja, o significado emerge por si só. E é completamente aceitável uma pintura não contar uma história, nem representar uma ideia.


A sua pintura não implica o escavar da superfície na expectativa de se encontrar um determinado significado. Para Gorman, a superfície é já o significado. A superfície em si contém toda a lógica e todas as perguntas que a pintura coloca. A sua pintura significa que é apenas aquilo que o pintor passou o tempo a fazer. A pintura só precisa disso para existir.


O ato de pintar carrega já em si todo o sentido. A pintura é sempre o resultado de todos os gestos, materiais e pensamentos que acontecem ao pintar. E obedece às mesmas regras, e tenta responder às mesmas questões que já vêm desde o inicio dos tempos. O processo, os movimentos são tão frágeis e débeis como antes.


Apesar da variedade de soluções, a coerência de cada pintura faz sempre sentido. As possibilidades geométricas, em cada pintura de Gorman, parecem sempre inacabadas. Os círculos permitem a sugestão de formas sempre novas que se definem através das cores. Gorman explica que a primeira cor é a mais fácil e intuitiva de decidir, a segunda cor torna-se mais difícil e a terceira cor é o verdadeiro problema. E é desse equilíbrio, que se estabelece entre as cores, as formas preenchidas e os limites da tela, que vive a sua pintura (e na verdade todas as pinturas, desde sempre.)


Assim que Gorman submerge no tempo, através do ato atemporal de pintar, os problemas que surgem são simplesmente relacionados com a cor e com a forma. Os problemas são resolvidos e ultrapassados somente pelo pintor, porque é ele que determina e constrói o método e o sistema do seu mundo. E tudo é perfeitamente aceitável, dentro desses princípios cujo pintor é criador e manipulador.


Gorman explica que muitas vezes a pintura que começa com três ou mais cores aleatórias será repintada vezes sem conta. E o seu objetivo é tentar pintar sempre na tentativa de encontrar um equilíbrio precário. Um equilíbrio ligeiramente desequilibrado de cor e de forma. De maneira a tentar manter tudo como se tivesse acabado de ser pintado com a primeira camada de cor, para que não se torne demasiado acabado, refinado e polido.


A consistência da pintura de Gorman, deseja ser aconcetual, onde os signos significam simplesmente aquilo que são e não mais além. Deste modo, o equilíbrio entre as forças opostas afirma-se com mais importância e a pintura pode surgir mais enfaticamente e despreocupada tal como uma outra ordem natural, particular e única. A pintura de Gorman é assim determinada e concebida objetivamente e é o que deve ser.


Ana Ruepp

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


138. UM TESTEMUNHO DE GOYA NO CENTRO CULTURAL DE CASCAIS


Em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, lê-se:


“(…) Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor”
.


Este excerto, de 1955, e a pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, de 1814, vieram-me à memória de visita à exposição “Goya Testemunho do seu Tempo”, atualmente no CCC, onde indaguei por registos associados ao tema, após me aperceber que entre as várias séries de gravuras, aí expostas, estão “Os Desastres da Guerra”.   


Se na célebre pintura a óleo (não exposta) nacionalismo, patriotismo, crueldade, brutalidade e demais horrores da guerra se combinam, evocando os espanhóis fuzilados depois da revolta contra os franceses (em que a vítima iluminada lembra, pela sua postura e pormenores, a crucificação de Cristo), isso mesmo sobressai nas várias dezenas de gravuras (80) alusivas aos infortúnios da guerra.   


Pelo título da série (“Desastres da Guerra”), antevê-se uma visão crítica, dura e crua, angustiante e penetrante, sem censuras, nem temor, de tons expressivos que mergulham na sabedoria da alma humana, não propagandeando o triunfo do ganhador, nem a hagiografia do vencedor, mas sim a barbaridade e desumanidade do agressor francês para com as gentes espanholas e destas com os invasores, num olhar que tenta ser neutro. Ao exprimir o lado doloroso e implacável dos conflitos bélicos, finda com o preconceito, tido por positivo, de glória, poder e vitória dos vencedores, até então associado à guerra, não esquecendo os vencidos, que são os heróis sofredores primordiais da sua obra artística. Não surpreende, para muitos, que Goya seja tido como o primeiro repórter de guerra, devidamente adaptado aos tempos que vivemos.


Dividida em três partes (representação da guerra, suas consequências e reflexões),  começa a série com o sugestivo e premonitório tema “Tristes pressentimentos do que há-de acontecer”, alusivo a uma situação penosa, derivada da inevitabilidade da guerra, com um homem ajoelhado, olhos no céu e mãos estendidas, rezando e lastimando-se, em farrapos e num lamento consentido, como um Cristo abandonado, a que Goya tenta dar resposta, na última gravura “Ressuscitará?”, numa indecisa e esperançosa interrogação, logo a seguir a “Morreu a Verdade”. Tudo isto num percurso de largas dezenas de gravuras com personagens deformadas, desfiguradas, massacradas, mutiladas, torturadas e mortas pelo conflito, em confrontos de seres esfarrapados e sangrentos, contra uma máquina de matar, perante a qual se quedam impotentes.


Foi em “E não há remédio” e “Não se pode olhar” que encontrei o Goya que agarra mais de perto a icónica pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, em todos elas surgindo as baionetas distinguindo-se, às vezes, só as suas vívidas pontas, incitando-nos a observar e a compreender o seu horror, em que as vítimas, como que iluminadas, mesmo quando mártires, são um apelo à liberdade, compaixão e justiça. Destaco ainda “Dura é a passagem”, “Estragos da guerra”, “Eu vi” e “As camas da morte”.   


Goya retrata “Os Desastres da Guerra” como uma realidade transversal a todos os intervenientes, vencedores e vencidos, embora tenha pertencido a uma geração de artistas e intelectuais espanhóis (tal como em Portugal) que começaram por ver nos ideais da revolução francesa a tão proclamada liberdade, igualdade e fraternidade, sem correspondência, na prática, quando confrontado com os horrores sinistros que viu e o seu legado nos deixou, alertando-o para um mal maior, como que endémico do ser humano.   


Entre os óleos, o conflito bélico está também presente em “Dois de maio de 1808 ou a Carga dos Mamelucos” (1814), a que acrescem pinturas de outros temas, como “Baile de Máscaras”, duas religiosas e uma deliciosa série de cenas de seis jogos infantis: crianças a brincar aos soldados, no baloiço, por castanhas, à procura de ninhos, ao salto ao eixo e às touradas, em brincadeiras alegres, ternas e ruidosas, ora brigando entre si para fartar a fome com castanhas, ou lutando por ninhos, dando tensão plástica e visual às cenas, sem esquecer a condição humilde dos miúdos descalços.


Na série “Os Caprichos”, de 1799, “Os assuntos tratados compõem um retábulo vivo de vícios e defeitos humanos e estão relacionados com a religião, a moralidade, o amor, o casamento, a sedução, o rapto, a violação, a superstição, a bruxaria, os abusos da inquisição, a vaidade e a tagarelice”.   


Satiriza e critica a sociedade do seu tempo, com base na razão ou entrando no campo exagerado do fantástico, conjugando o seu valor artístico, com um sentido didático e de universalidade, testemunhando que os abusos e vícios humanos podem ser pintados, onde se inclui “O sonho da razão produz monstros” (quando não se ouve a razão, tudo se converte em visões). De destacar, ainda, “Bufos”, “Os chichilas”, “Vem aí o papão”, “Ninguém se conhece”, “Amor e morte”, “Belos conselhos”.  


Na série “A Tauromaquia”, há uma pintura alusiva à brutalidade e violência real das touradas, onde surge a única mulher toureira da época em “Coragem varonil da célebre pajuelera na de Saragoça”.


Termina a exposição com as gravuras de “Os Disparates ou Provérbios”, tida como a série “(…) mais misteriosa que criou, chegando a anunciar o surrealismo, que não se desenvolveria senão um século mais tarde. As personagens grotescas e as formas incompreensíveis dos diabos apresentam um panorama fantasmal e supõem uma rutura total com a lógica”. Há nela representações delirantes, fantasiosas, oníricas, sublinhadas pelo carnavalesco, estranho, excêntrico, grotesco, desabrido, absurdo, irracional, pela desrazão, ignorância, ironia, superstição, violência e pelas trevas, uma exploração plástica do subconsciente e dos sonhos, numa mescla de desespero e para além do real, como que prevenindo a vinda do expressionismo e surrealismo. Entre os “Disparates” refira-se o “Feminino”, o “Fúnebre” e o de “Carnaval”. Atente-se em o “Toleirão” e o “Cavalo raptor”.      


Também há o Goya que não integra esta mostra, o dos famosos retratos, de arte profana mais conhecida, como pintor da corte, mas há que felicitar e reconhecer ser louvável que o CCC tenha conseguido reunir uma exposição tão especial e extensa, de assumida qualidade, que nos faz ansiar por iguais ou mais altos voos.   


De todo o modo, Goya continua intemporal, dado que a obra de arte vale por si, mesmo depois de ter aparecido, após a sua morte, a fotografia, pensando muitos pintores da época que seria o fim da pintura. E não foi. A pintura reconfigurou-se e permanece.


12.05.23
Joaquim M. M. Patrício 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de janeiro de 2023


Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.


UMA IDENTIDADE PRÓPRIA
A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes.  Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade.  Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.


CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO
O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.


UM DIÁLOGO PORTUGUÊS
O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


As pinturas das formas flutuantes de John McLean possuem um equilíbrio orgânico.


“The floating shapes that are none the less resonant of the moon, wings, maple seedlings or whatever, have evolved through compositional considerations more than anything else. I would of course admit, indeed rejoice in their having overtones of forms in nature, but would also point out they gain strength, meaning and universality from their mere configuration - the way, for example, they often reach out to the four corners of the canvas.”, John McLean, 1996


As pinturas das formas flutuantes de John McLean são quase geométricas. São pinturas que possuem um equilíbrio orgânico, uma lógica viva, uma ordem que pertence à natureza, uma coerência que integra os gestos mais simples e as formas mais primárias. Hesitam entre o planeado e o incerto. A intuição e a espontaneidade parecem resolver estas pinturas, talvez porque as intenções emergem do próprio ato de pintar. 


McLean é único ao conseguir fixar o imediatismo de uma composição. As suas pinturas ao serem concebidas mantém a frescura da primeira ideia e da primeira pincelada. Parecem ser resultado de um esforço fácil e de uma sabedoria imediata. McLean é singular ao prender esse momento inicial antes que se desvaneça. Por isso, cada composição é como uma surpresa, sobrevem nova e nunca se repete. Cada pintura que sucede desenvolve-se a partir da anterior e cada forma surge através de considerações compositivas. A cor e as transparências ocorrem através da direta experimentação e da colagem. As várias camadas de tinta descobrem-se debaixo de cada superfície.


As pinturas não contêm uma narrativa segura e por esse motivo todas as formas se abrem a uma interpretação completamente acessível. A figura e o fundo, a forma e o espaço alternam-se constantemente. Nas telas descobrem-se círculos, pequenos triângulos ou talvez luas, sementes, diamantes, coroas e espirais. Contudo cada configuração pode ser o que se quiser - uma metáfora, um sinal, um símbolo ou apenas a forma pura. 


E são sobretudo as múltiplas relações, ligações e associações das formas que ondeiam, que tornam a pintura de John McLean mais intensa e mais complexa. Não existe uma hierarquia das formas e dos espaços - tudo está em equilíbrio, tudo é necessário. O objetivo talvez seja tentar estar sempre no limite do que se sabe. Só assim possivelmente, a força e a importância das formas inconstantes, ganhe continuidade no tempo e no espaço.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os cadernos de Lena Bergstein são uma provocação entre a palavra e a pintura.


Os cadernos da pintora Lena Bergstein (1946) exploram o diálogo entre o texto e a matéria, numa superfície pintada. São trabalhos em constante experimentação que acontecem ao cruzar a palavra com o tangível e com o concreto - as letras nascem sempre do gesto e da tinta. O acto de escrever é sempre físico, implica sempre o movimento da mão.


Essa relação de Bergstein, com a palavra começou com o desejo de arte (porque o desejo de pintar já existia). Por isso, a escrita, a poesia e a literatura somaram -se ao universo pictórico. 


No início, a escrita de Bergstein, recolhia-se em linhas e marcas que não falavam - eram fios que se cosiam na tela e no papel. A costura e a representação dela faziam parte de uma escrita silenciosa. Mas a costura, devagar, foi dando lugar à escrita e ao livro. 


Juntar o plástico, com o literário e com o psicanalítico é uma provocação, explica Bergstein. O sujeito dialoga com a pintura, mas a pintura também dialoga com o sujeito. Nos cadernos de Bergstein, aquilo que acontece dentro do pensamento, no momento presente do acto de pintar, abre-se, concretiza-se na matéria e na palavra, de modo a que nada do que acontece fique perdido. Existe um desejo de captar tudo o que está a acontecer, enquanto se pinta. Existe a urgência de que todas as instigações sejam reproduzidas e contadas. E essa é a poética que se instaura dentro de cada caderno, que se refere sempre a acontecimentos, gestos e marcas sem limite.


O livro faz naturalmente parte da escrita - o livro / caderno é, deste modo, visto por Bergstein como uma forma em potência. É o lugar onde se dá essa relação maior, de escrita com plasticidade.  Para Bergstein, a arte é um enigma e as palavras que vão aparecendo no caderno representam uma possibilidade de resposta. Mas também podem significar o sentimento e o afeto que ocorre quando se pinta. A ação de pintar faz parte de um processo íntimo, isolado e oculto e as palavras podem ajudar a descobrir quantas coisas se podem dizer em relação ao que se está a fazer num determinado momento e também podem facilitar na manifestação de quantas maneiras diferentes se pode dizer o que se quer pintar.


Algumas páginas dos cadernos parecem rascunhos, parecem o avesso de uma escrita - mostram frases inacabadas, palavras riscadas, erradas, mutiladas, aquilo que não se deve mostrar, aquilo que se quer apagar. Não existe narrativa, mas existe continuidade. As palavras estão soltas ou sobrepostas, entre espaços, no meio de vazios. As palavras fazem parte de perguntas e respostas. Funcionam como forças germinantes, como sementes à espera. 


Os cadernos materializam verdadeiras clareiras de diálogos múltiplos que se vão destapando. São conversas mudas, discussões encobertas, diálogos em aberto e discursos incompletos. O branco e o nada talvez simbolize o vazio da resposta ou o silêncio de uma pergunta. As diversas camadas de tinta escondem e cobrem palavras, linhas e marcas.


Bergstein gosta do desenvolvimento formal da linha, do ponto e do plano. Mas a desarticulação da escrita é a própria razão dos cadernos. Só assim há disponibilidade para que a escrita seja continuada, renovada, repensada ou refeita. A linguagem existe afinal em continuidade, nunca está completa e está sempre por acabar. A palavra, semanticamente, para ser lida tem de ter uma aparência e uma importância formal. E a pintura pode ser a narradora de uma história aberta, sem linearidade narrativa, nem temporal. Bergstein diz que, apesar da existência das palavras, as letras devem ter sempre a possibilidade de serem simplesmente letras, para que a procura e a experimentação nunca termine.

 

Ana Ruepp