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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


138. UM TESTEMUNHO DE GOYA NO CENTRO CULTURAL DE CASCAIS


Em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, lê-se:


“(…) Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor”
.


Este excerto, de 1955, e a pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, de 1814, vieram-me à memória de visita à exposição “Goya Testemunho do seu Tempo”, atualmente no CCC, onde indaguei por registos associados ao tema, após me aperceber que entre as várias séries de gravuras, aí expostas, estão “Os Desastres da Guerra”.   


Se na célebre pintura a óleo (não exposta) nacionalismo, patriotismo, crueldade, brutalidade e demais horrores da guerra se combinam, evocando os espanhóis fuzilados depois da revolta contra os franceses (em que a vítima iluminada lembra, pela sua postura e pormenores, a crucificação de Cristo), isso mesmo sobressai nas várias dezenas de gravuras (80) alusivas aos infortúnios da guerra.   


Pelo título da série (“Desastres da Guerra”), antevê-se uma visão crítica, dura e crua, angustiante e penetrante, sem censuras, nem temor, de tons expressivos que mergulham na sabedoria da alma humana, não propagandeando o triunfo do ganhador, nem a hagiografia do vencedor, mas sim a barbaridade e desumanidade do agressor francês para com as gentes espanholas e destas com os invasores, num olhar que tenta ser neutro. Ao exprimir o lado doloroso e implacável dos conflitos bélicos, finda com o preconceito, tido por positivo, de glória, poder e vitória dos vencedores, até então associado à guerra, não esquecendo os vencidos, que são os heróis sofredores primordiais da sua obra artística. Não surpreende, para muitos, que Goya seja tido como o primeiro repórter de guerra, devidamente adaptado aos tempos que vivemos.


Dividida em três partes (representação da guerra, suas consequências e reflexões),  começa a série com o sugestivo e premonitório tema “Tristes pressentimentos do que há-de acontecer”, alusivo a uma situação penosa, derivada da inevitabilidade da guerra, com um homem ajoelhado, olhos no céu e mãos estendidas, rezando e lastimando-se, em farrapos e num lamento consentido, como um Cristo abandonado, a que Goya tenta dar resposta, na última gravura “Ressuscitará?”, numa indecisa e esperançosa interrogação, logo a seguir a “Morreu a Verdade”. Tudo isto num percurso de largas dezenas de gravuras com personagens deformadas, desfiguradas, massacradas, mutiladas, torturadas e mortas pelo conflito, em confrontos de seres esfarrapados e sangrentos, contra uma máquina de matar, perante a qual se quedam impotentes.


Foi em “E não há remédio” e “Não se pode olhar” que encontrei o Goya que agarra mais de perto a icónica pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, em todos elas surgindo as baionetas distinguindo-se, às vezes, só as suas vívidas pontas, incitando-nos a observar e a compreender o seu horror, em que as vítimas, como que iluminadas, mesmo quando mártires, são um apelo à liberdade, compaixão e justiça. Destaco ainda “Dura é a passagem”, “Estragos da guerra”, “Eu vi” e “As camas da morte”.   


Goya retrata “Os Desastres da Guerra” como uma realidade transversal a todos os intervenientes, vencedores e vencidos, embora tenha pertencido a uma geração de artistas e intelectuais espanhóis (tal como em Portugal) que começaram por ver nos ideais da revolução francesa a tão proclamada liberdade, igualdade e fraternidade, sem correspondência, na prática, quando confrontado com os horrores sinistros que viu e o seu legado nos deixou, alertando-o para um mal maior, como que endémico do ser humano.   


Entre os óleos, o conflito bélico está também presente em “Dois de maio de 1808 ou a Carga dos Mamelucos” (1814), a que acrescem pinturas de outros temas, como “Baile de Máscaras”, duas religiosas e uma deliciosa série de cenas de seis jogos infantis: crianças a brincar aos soldados, no baloiço, por castanhas, à procura de ninhos, ao salto ao eixo e às touradas, em brincadeiras alegres, ternas e ruidosas, ora brigando entre si para fartar a fome com castanhas, ou lutando por ninhos, dando tensão plástica e visual às cenas, sem esquecer a condição humilde dos miúdos descalços.


Na série “Os Caprichos”, de 1799, “Os assuntos tratados compõem um retábulo vivo de vícios e defeitos humanos e estão relacionados com a religião, a moralidade, o amor, o casamento, a sedução, o rapto, a violação, a superstição, a bruxaria, os abusos da inquisição, a vaidade e a tagarelice”.   


Satiriza e critica a sociedade do seu tempo, com base na razão ou entrando no campo exagerado do fantástico, conjugando o seu valor artístico, com um sentido didático e de universalidade, testemunhando que os abusos e vícios humanos podem ser pintados, onde se inclui “O sonho da razão produz monstros” (quando não se ouve a razão, tudo se converte em visões). De destacar, ainda, “Bufos”, “Os chichilas”, “Vem aí o papão”, “Ninguém se conhece”, “Amor e morte”, “Belos conselhos”.  


Na série “A Tauromaquia”, há uma pintura alusiva à brutalidade e violência real das touradas, onde surge a única mulher toureira da época em “Coragem varonil da célebre pajuelera na de Saragoça”.


Termina a exposição com as gravuras de “Os Disparates ou Provérbios”, tida como a série “(…) mais misteriosa que criou, chegando a anunciar o surrealismo, que não se desenvolveria senão um século mais tarde. As personagens grotescas e as formas incompreensíveis dos diabos apresentam um panorama fantasmal e supõem uma rutura total com a lógica”. Há nela representações delirantes, fantasiosas, oníricas, sublinhadas pelo carnavalesco, estranho, excêntrico, grotesco, desabrido, absurdo, irracional, pela desrazão, ignorância, ironia, superstição, violência e pelas trevas, uma exploração plástica do subconsciente e dos sonhos, numa mescla de desespero e para além do real, como que prevenindo a vinda do expressionismo e surrealismo. Entre os “Disparates” refira-se o “Feminino”, o “Fúnebre” e o de “Carnaval”. Atente-se em o “Toleirão” e o “Cavalo raptor”.      


Também há o Goya que não integra esta mostra, o dos famosos retratos, de arte profana mais conhecida, como pintor da corte, mas há que felicitar e reconhecer ser louvável que o CCC tenha conseguido reunir uma exposição tão especial e extensa, de assumida qualidade, que nos faz ansiar por iguais ou mais altos voos.   


De todo o modo, Goya continua intemporal, dado que a obra de arte vale por si, mesmo depois de ter aparecido, após a sua morte, a fotografia, pensando muitos pintores da época que seria o fim da pintura. E não foi. A pintura reconfigurou-se e permanece.


12.05.23
Joaquim M. M. Patrício 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de janeiro de 2023


Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.


UMA IDENTIDADE PRÓPRIA
A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes.  Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade.  Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.


CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO
O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.


UM DIÁLOGO PORTUGUÊS
O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


As pinturas das formas flutuantes de John McLean possuem um equilíbrio orgânico.


“The floating shapes that are none the less resonant of the moon, wings, maple seedlings or whatever, have evolved through compositional considerations more than anything else. I would of course admit, indeed rejoice in their having overtones of forms in nature, but would also point out they gain strength, meaning and universality from their mere configuration - the way, for example, they often reach out to the four corners of the canvas.”, John McLean, 1996


As pinturas das formas flutuantes de John McLean são quase geométricas. São pinturas que possuem um equilíbrio orgânico, uma lógica viva, uma ordem que pertence à natureza, uma coerência que integra os gestos mais simples e as formas mais primárias. Hesitam entre o planeado e o incerto. A intuição e a espontaneidade parecem resolver estas pinturas, talvez porque as intenções emergem do próprio ato de pintar. 


McLean é único ao conseguir fixar o imediatismo de uma composição. As suas pinturas ao serem concebidas mantém a frescura da primeira ideia e da primeira pincelada. Parecem ser resultado de um esforço fácil e de uma sabedoria imediata. McLean é singular ao prender esse momento inicial antes que se desvaneça. Por isso, cada composição é como uma surpresa, sobrevem nova e nunca se repete. Cada pintura que sucede desenvolve-se a partir da anterior e cada forma surge através de considerações compositivas. A cor e as transparências ocorrem através da direta experimentação e da colagem. As várias camadas de tinta descobrem-se debaixo de cada superfície.


As pinturas não contêm uma narrativa segura e por esse motivo todas as formas se abrem a uma interpretação completamente acessível. A figura e o fundo, a forma e o espaço alternam-se constantemente. Nas telas descobrem-se círculos, pequenos triângulos ou talvez luas, sementes, diamantes, coroas e espirais. Contudo cada configuração pode ser o que se quiser - uma metáfora, um sinal, um símbolo ou apenas a forma pura. 


E são sobretudo as múltiplas relações, ligações e associações das formas que ondeiam, que tornam a pintura de John McLean mais intensa e mais complexa. Não existe uma hierarquia das formas e dos espaços - tudo está em equilíbrio, tudo é necessário. O objetivo talvez seja tentar estar sempre no limite do que se sabe. Só assim possivelmente, a força e a importância das formas inconstantes, ganhe continuidade no tempo e no espaço.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os cadernos de Lena Bergstein são uma provocação entre a palavra e a pintura.


Os cadernos da pintora Lena Bergstein (1946) exploram o diálogo entre o texto e a matéria, numa superfície pintada. São trabalhos em constante experimentação que acontecem ao cruzar a palavra com o tangível e com o concreto - as letras nascem sempre do gesto e da tinta. O acto de escrever é sempre físico, implica sempre o movimento da mão.


Essa relação de Bergstein, com a palavra começou com o desejo de arte (porque o desejo de pintar já existia). Por isso, a escrita, a poesia e a literatura somaram -se ao universo pictórico. 


No início, a escrita de Bergstein, recolhia-se em linhas e marcas que não falavam - eram fios que se cosiam na tela e no papel. A costura e a representação dela faziam parte de uma escrita silenciosa. Mas a costura, devagar, foi dando lugar à escrita e ao livro. 


Juntar o plástico, com o literário e com o psicanalítico é uma provocação, explica Bergstein. O sujeito dialoga com a pintura, mas a pintura também dialoga com o sujeito. Nos cadernos de Bergstein, aquilo que acontece dentro do pensamento, no momento presente do acto de pintar, abre-se, concretiza-se na matéria e na palavra, de modo a que nada do que acontece fique perdido. Existe um desejo de captar tudo o que está a acontecer, enquanto se pinta. Existe a urgência de que todas as instigações sejam reproduzidas e contadas. E essa é a poética que se instaura dentro de cada caderno, que se refere sempre a acontecimentos, gestos e marcas sem limite.


O livro faz naturalmente parte da escrita - o livro / caderno é, deste modo, visto por Bergstein como uma forma em potência. É o lugar onde se dá essa relação maior, de escrita com plasticidade.  Para Bergstein, a arte é um enigma e as palavras que vão aparecendo no caderno representam uma possibilidade de resposta. Mas também podem significar o sentimento e o afeto que ocorre quando se pinta. A ação de pintar faz parte de um processo íntimo, isolado e oculto e as palavras podem ajudar a descobrir quantas coisas se podem dizer em relação ao que se está a fazer num determinado momento e também podem facilitar na manifestação de quantas maneiras diferentes se pode dizer o que se quer pintar.


Algumas páginas dos cadernos parecem rascunhos, parecem o avesso de uma escrita - mostram frases inacabadas, palavras riscadas, erradas, mutiladas, aquilo que não se deve mostrar, aquilo que se quer apagar. Não existe narrativa, mas existe continuidade. As palavras estão soltas ou sobrepostas, entre espaços, no meio de vazios. As palavras fazem parte de perguntas e respostas. Funcionam como forças germinantes, como sementes à espera. 


Os cadernos materializam verdadeiras clareiras de diálogos múltiplos que se vão destapando. São conversas mudas, discussões encobertas, diálogos em aberto e discursos incompletos. O branco e o nada talvez simbolize o vazio da resposta ou o silêncio de uma pergunta. As diversas camadas de tinta escondem e cobrem palavras, linhas e marcas.


Bergstein gosta do desenvolvimento formal da linha, do ponto e do plano. Mas a desarticulação da escrita é a própria razão dos cadernos. Só assim há disponibilidade para que a escrita seja continuada, renovada, repensada ou refeita. A linguagem existe afinal em continuidade, nunca está completa e está sempre por acabar. A palavra, semanticamente, para ser lida tem de ter uma aparência e uma importância formal. E a pintura pode ser a narradora de uma história aberta, sem linearidade narrativa, nem temporal. Bergstein diz que, apesar da existência das palavras, as letras devem ter sempre a possibilidade de serem simplesmente letras, para que a procura e a experimentação nunca termine.

 

Ana Ruepp

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A ÚLTIMA CEIA


1 - 
No mundo latino, não há sacra imagem mais reproduzida e mais divulgada. Nessa divisão, normalmente situada ao fundo de longos e desabridos corredores, a que no século XIX e em grande parte do século XX, se chamou casa de jantar, a burguesia e a pequena-burguesia, mesmo quando maçónicas ou jacobinas, entronizaram, quase sempre, gravuras, litografias ou, nas casas de pior gosto, horrendos baixos-relevos esmaltados ou pintados, reproduzindo o cenáculo davinciano pendurado sobre o aparador com torcidinhos. Nenhuma dessas reproduções reproduzia a pintura de Leonardo, como ela estava ou como ela era à época da sua mais intensa popularidade. Bem cedo depois de ter sido pintada (1495-1497), "L'Ultima Cena" já começara a obscurecer-se. Em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca". Mas a fama de Leonardo era tamanha, tamanha era a reputação da "tavola" pintada no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, que, na primeira metade do século XVI, já se multiplicavam as cópias a óleo de discípulos do Mestre, como Solari ou Luini. A mais famosa dessas cópias data de 1625, quando o cardeal Federico Borromeo a encomendou a um tal Vespino, para que a "reliquiae fugiente" da "Ceia" ficasse para a posteridade.


Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.


Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da conceção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objetivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma ação definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de atos e reações mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra." Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projetou, como se luz fosse de um projetor cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.


2 -
 Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjetivando. É que até eu, e até ao dia 11 de novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia ação)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exatos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.


3 - 
Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia". Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas. Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?" Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação. Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz.

Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.

João Bénard da Costa
14 de novembro de 2003, in Público

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 


A pintura de Imran Mir é uma porta aberta para a contemplação.


“Attention is the rarest and purest form of generosity.”, Simone Weil


O advento da modernidade aprofundou a separação entre o ser humano e o cosmos. A partir desse momento o humano opôs-se ao natural. A esfera opôs-se ao cubo. A casa opôs-se à paisagem. O estático opôs-se ao que se move. O mecânico opôs-se ao êxtase.


No texto “A Cosmic Archaeology of Doubt”, Momtaza Mehri escreve que a metrópole suga toda a restante vitalidade das terras mais distantes. Vivemos, por isso, presos numa imensa e pulverizada teia de ligações. A multidão que nos rodeia é uma torrente de solidão. Vivemos sós num mundo cujo centro somos nós próprios.


As pinturas de Imran Mir abrem a possibilidade de olhar para algo que não seja a nossa eterna face no espelho. Escavam o espaço necessário para dar lugar à contemplação do maravilhoso. Aquilo que se vê é exatamente aquilo que se vê, afirma Imran Mir sempre que se refere às suas pinturas.


A nova realidade, em que todos estamos incluídos, através de algoritmos, dá-nos o que sabe que queremos. Estamos rodeados de eternos reflexos de nós próprios. Neste momento, o mundo é somente reflexivo - à nossa volta as imagens, as notícias e as coisas que temos, simplesmente refletem quem somos. O sistema que nos constantemente alimenta, permanentemente nos diz que não precisamos de nos preocupar com mais nada, somente connosco próprios e com a nossa imagem.


“Life is but the rapture of flight”, Muhammad Iqbal


No entanto, o texto de Momtaza Mehri dá a conhecer, através do poeta Muhammad Iqbal, que a vida é não mais do que o arrebatamento da experiência de um voo. O ato de voar revela um esforço de ver através de um outro ponto de vista, através de um outro lugar, perante o desconhecido e longe das ilusões de conforto e de estabilidade.


As pinturas de Imran Mir são sim, estruturadas, obedecem a uma ordem e revelam uma técnica muito apurada, quase mecânica. Mas são sobretudo etéreas. Tal como se vê em ‘Twelfth Paper on Modern Art’ (2014) máquina e mão, concentração e dispersão, regularidade e acaso caminham lado a lado. ‘Twelfth Paper on Modern Art’ fixa na tela uma determinada fase que possivelmente se transformará. É uma lua em desintegração. É uma sombra que flutua. É o infinito que se unifica. A rede monocromática infindável é uma exigência para a curiosidade.


Esta pintura de Imran Mir é pois uma dádiva, é um pedido de atenção. É uma súplica para que a experiência de um voo se possa concretizar. Só a atenção nos leva a sair de nós próprios. Só a atenção permite olhar mais próximo e descobrir algo novo, vezes sem conta. A concentração e o cuidado de observar transporta-nos para fora, para o mundo e para o cosmos. A pintura de Imran Mir é assim, uma porta aberta para a contemplação.


“…Mir was resolutely open to the world around him. He reveled in the ‘absence of rules,’ blurring the lines between the technical and the transcendental. ‘I am an artist constantly, not just when I am creating it,’ he once expounded.” (Mehri 2022, 33)


A pintura de Imran Mir é a intersecção entre a pura repetição e a pura diferença. Imrad Mir constantemente pede para acolhermos a multiplicidade e a dúvida. Ao aceitar as variações e o desconhecido poderemos melhor compreender e ser compreendidos. Imran Mir deseja que o centro da sua arte esteja fora das suas pinturas - as suas pinturas são talvez o início, o treino no exercício da contemplação. São uma lição para o ato de voar. As pinturas de Imran Mir contribuem para que o mundo que nos rodeia passe a ser visto sob uma nova luz. O eu que vê é que se deve transformar.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Nathalie du Pasquier: objeto, construção, composição.


“I am also interested in understanding that link between geometry and representation of space – the ambiguity of how three dimensions render on a flat plane… Adventures are like that: you follow tracks, you don’t follow ideologies.”, Nathalie du Pasquier


Nathalie du Pasquier (1957) pinta objetos e ultimamente a construção desses objetos faz parte do processo do seu trabalho. A composição dos objetos no espaço é muito importante e determinante. Uma vez estabelecida a composição- que pode formar-se infinitamente (talvez seja aqui que a intuição atua e o desconhecido se revela) - Pasquier representa-a. Porém a sua pintura aceita variações à composição que poderão surgir.


É sem dúvida uma pintura baseada nas formas geométricas mas é uma pintura puramente objetiva - porque a atenção da pintora está no modelo e na sua sombra enigmática (e o tema das suas pinturas é literalmente construído). Mas existe uma certa ambiguidade na linguagem das formas geométricas utilizadas. As pinturas podem ser meras representações de objetos ou ser uma representação de uma arquitetura que nunca existirá - descobrem-se plantas, cortes, alçados e representações de um espaço exterior e de um interior. Na verdade, o processo de trabalho que Pasquier segue é semelhante ao do arquiteto - através da construção do modelo geram-se perspetivas. E na sua procura como pintora, a composição dos objetos é sempre geradora.


Por isso, tal como nos Proun ( https://www.moma.org/collection/works/79040 ) de El Lissitzky, Pasquier explora, nas suas pinturas e objetos, a névoa que existe entre o espaço real e o espaço abstrato e desenvolve a ténue e obscura ligação que existe entre a pintura e a arquitetura. Tal como os Proun, as pinturas de Nathalie du Pasquier são devotas à atenção formal dos objetos, por si construídos, através da luz e da sombra, da transparência e da opacidade, da cor e da materialidade. Tal como Lissitzky, também Pasquier estende a sua dedicação a instalações tridimensionais que permitem a experiência das suas construções no espaço real.


Mas Pasquier não desenvolve uma geometria primordial. Não anseia o universal, nem o eterno que liberta e que cura, tal como nas obras dos pintores suprematistas. As pinturas geométricas de Pasquier são antes uma ode ao silêncio de determinados objetos colocados no espaço do atelier - não são um método de redenção nem um meio para despertar ou renascer.


As composições de Nathalie estão sim preocupadas com as reais propriedades do espaço e com a verdade dos seus objetos dispostos. A relação que estabelece com o objeto é pois subjetiva e particular. Sem distorcer nem desintegrar, Nathalie du Pasquier talvez deseje só a associação, o equilíbrio e a harmonia das partes concretas e diversas sem destruir o todo.

 

Ana Ruepp

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXVIII) O MUNDO DE JÚLIO POMAR

 

Helena Vaz da Silva terá sido porventura quem melhor entendeu a força e a diversidade do mundo de Júlio Pomar, num magistral diálogo que com ele teve. Pomar nasceu em 1926 em Lisboa. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e as Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto. Em 1942 participou numa primeira mostra de grupo, em Lisboa. Realizou a primeira exposição individual em 1947, no Porto. Em virtude de atividades oposicionistas é preso durante quatro meses, com apreensão de um dos seus quadros pela polícia política (“Resistência”) e ocultação dos frescos realizados para o Cinema Batalha no Porto. É autor do célebre retrato de Norton de Matos, candidato oposicionista. Afirma a independência da criação artística, mas associa o trabalho de pintor ao combate político, dando prioridade à defesa da responsabilidade social na criação de uma arte acessível e interveniente. Em 1963 instala-se em Paris. Na expressão de José-Augusto França, Pomar pertence à terceira geração modernista com uma obra multifacetada que se prolonga por sete décadas, destacando-se depois de um período inicial, dito neo-realista (“O Almoço do Trolha” ou “O Gadanheiro”), e de uma transição marcada por “Maria da Fonte” (1957), as exposições «Tauromachies» e «Les Courses» (Galerie Lacloche, Paris, 1964 e 1965); a participação numa mostra dedicada ao quadro de Ingres “Le Bain Turc” no Louvre (1971); as séries de pinturas “Mai 68” e “Le Bain Turc” (Galeria 111); as exposições «L’Espace d’Eros» (La Différence, 1978); «Théâtre du Corps» (Galerie de Bellechasse, 1979) e «Tigres» (Galerie de Bellechasse e Galeria 111, 1981 e 1982). Refira-se ainda «Um ano de desenho – quatro poetas no Metropolitano de Lisboa» - Camões, Bocage, Pessoa e Almada (Estação Alto dos Moinhos) em 1984 no CAM - Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian - que já em 1978 promovera a sua primeira exposição retrospetiva; além de «Ellipses» (Galerie de Bellechasse, Paris, 1984) e «Mascarados de Pirenópolis» (Galeria 111, ARCO, Madrid, 1988).

No começo da década de noventa, na sequência de uma estada no Alto Xingú, na Amazónia, realiza em 1990 as exposições «Los Indios» (Galeria 111, ARCO, Madrid) e «Les Indiens» (Galerie Georges Lavrov, Paris), a que se sucede «Pomar/Brasil», antologia organizada também pelo CAM da Gulbenkian e apresentada em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa. O Ministério da Cultura francês convida Júlio Pomar a realizar um retrato de Claude Lévi-Strauss, que precede o do presidente Mário Soares para a galeria oficial do Palácio de Belém (1991). Seguem-se as exposições «Pomar et la Littérature» (Charleroi, 1991), «Fables et Portraits» (Galerie Piltzer, Paris, 1994). A temática ficcional é retomada em «O Paraíso e Outras Histórias» (Culturgest, 1994) e «L’Année du cochon ou les méfaits du tabac» (Galerie Piltzer, 1996). A presença da Amazónia reaparece em «Les Joies de Vivre» (Galerie Piltzer, 1997) e «Les Indiens – Xingú 1988-1997» (Festival de Biarritz), enquanto a série “La Chasse au Snark” é mostrada em Paris (Galerie Piltzer, 1999) e em Nova Iorque (Salander-O’Reilly Gallery, 2000).

Trata-se de uma atividade intensa e de um permanente desejo de diversificação temática, que encontramos na repetição exaustiva, exigente e transformadora. Pomar recusou sempre a facilidade da expressão plástica. Nas suas múltiplas obras encontramos tigres, chapéus de chuva, macacos, retratos, mais ou menos explícitos; sendo clara a vontade de buscar as raízes culturais como em “Lusitânia no Bairro Latino – retratos de Mário de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso” de 1985, do mesmo modo que procura temas em fontes literárias e em matéria mitológica.

Apresenta «Pinturas Recentes», inéditas em Portugal, no Centro de Congressos de Aveiro em 2000. Regressa à Galeria 111 com a exposição «Os Três Efes – Fábulas, Farsas e Fintas» (2002), a que se sucedem «Trois travaux d’Hercule et quelques chansons réalistes» e «Méridiennes –Mères Indiennes» (Galerie Patrice Trigano, Paris, 2002 e 2004); «Fables et Fictions», esculturas e suas fotografias por Gérard Castello-Lopes (Galerie Le Violon Bleu, Sidi Bou-Said, Tunísia, 2004), que se prolonga em «A Razão das Coisas», assemblages e bronzes, fotografados por José M. Rodrigues, Serralves, Porto (2009). Marcelin Pleynet comissaria a exposição antológica no Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo, designada «Autobiografia» (2004). As décadas recentes da obra de Júlio Pomar foram antologiadas por Hellmut Wohl no Centro Cultural de Belém em «A Comédia Humana». O Museu de Serralves, no Porto, incluiu numerosas assemblages inéditas na mostra «Cadeia da Relação», comissariada por João Fernandes (2008). Em 2009 expôs «Nouvelles aventures de Don Quixote et Trois (4) Tristes Tigres» (Galerie Patrice Trigano), e em 2012-13 apresenta «Atirar a albarda ao ar» na Cooperativa Árvore e na Galeria 111, Lisboa. Júlio Pomar é autor de “Catch: thèmes et variations”; “Discours sur la cécité du peintre”; “Et la peinture?”  (Éditions de la Différence), tendo os dois últimos sido traduzidos por Pedro Tamen com os títulos “Da Cegueira dos Pintores” (IN) e “Então e a Pintura?” (Dom Quixote); com duas coletâneas de poesias “Alguns Eventos” e “TRATAdo DITO e FEITO” (Dom Quixote). Júlio Pomar criou em 2004 a Fundação com o seu nome, tendo sido inaugurado o Atelier-Museu Júlio Pomar, criado pela Câmara Municipal de Lisboa, no edifício na Rua do Vale n.º 7, Mercês, com o projeto arquitetónico de reabilitação da autoria de Álvaro Siza. (Texto baseado na biografia do Atelier-Museu Júlio Pomar).

GOM

 

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Transcendendo a superfície material.


‘It’s what’s important to me – finding a quantity for myself and whatever problem I might get with it. I might find something else, answer some question, or find some form or thought.’, Eva Hesse, 1969


‘Hang Up’ (1966) transcende a pintura como suporte bidimensional.


Eva Hesse considera ‘Hang Up’ como o seu trabalho mais absurdo, surreal e estranho. O trabalho de Eva Hesse sempre refletiu a sua vida e sua experiência.


Uma vez conhecendo a história da sua vida, faz-se automaticamente uma ligação com o seu trabalho como artista. A sua vida foi considerada absurda e cheia de contradições: a fuga para os Estados Unidos, a relação amorosa da sua mãe com o psiquiatra e o seu suicídio, a relação doentia e incestuosa com o seu pai e no final o tumor cerebral (que era a mesma doença da sua madrasta).


‘Hang Up’ foi feito depois da sua estadia na Alemanha, da morte do seu pai e da separação de Tom Doyle. Com este trabalho, parece que Eva Hesse começou a construir estruturas para suportar a sua vida. Estruturas para suportar ausências.


‘Hang Up’ ainda é uma ideia. É uma peça primitiva, básica tal como um esqueleto de uma construção. Tem profundidade material, mas também profundidade em termos de significado: ‘...it is a kind of depth or soul or absurdity or life or meaning or feeling or intellect that I want to get…’


É considerada a base de seu trabalho artístico. É espaço e é contacto.


É um metal muito fino e forte, facilmente dobrável. A moldura tem um significado pictórico muito forte. É toda amarrada, tal como uma ligadura de hospital, com um cordão rígido em volta e que depois foi cuidadosamente pintada com diversas camadas – é mais do que apenas um simples retângulo, talvez seja uma janela... Está relacionada com um grande vazio interior.


Esta peça é um desenho ausente com extensão. É um vazio, um nada sem conteúdo. Apenas uma linha absurda salta para fora do quadro, transcendendo a borda e a fronteira e fazendo duas direções infinitas coexistir: o dentro e o fora.


Hesse perde a dimensão da moldura tal como se perdesse a dimensão de si mesma. Parece que o objeto está completamente limpo - apenas uma linha se concretiza, cheia de contradições, apresentando uma instabilidade radical. É um desafio a qualquer possibilidade de fixação e de definição. Os elementos de ‘Hang Up’ são por natureza instáveis, inconstantes e transeuntes. (Pollock 2006, 43)


‘Hang Up’ é uma peça ativa que une a artista com o público. É como um desenho tridimensional, que lembra a obra de Helena Almeida ao projetar-se na terceira dimensão e ao representar pedaços de uma vida que se conservam na tela.


Com ‘Hang Up’ Eva Hesse transcende todos limites. Simultaneamente combina criação com receção. Hesse queria que o desenho literalmente saísse e caísse com a gravidade e parecesse colado ao chão. A corda de metal duro materializa a terceira dimensão. O desenho salta e torna-se independente da superfície.


Com apenas um gesto - um gesto mínimo - Eva Hesse estabelece todo o controlo da forma.


A linha corre pura e mutável, no vazio. A linha une a diagonal e ocupa todo o espaço disponível que está à sua frente. É como se fosse um gesto com sombra. O espaço é agora a superfície da pintura. Eva Hesse pinta para a frente e faz com que o público participe na conceção e na interpretação desta obra.


Eva Hesse combina vazio, espaço, descontinuidade e sensibilidade. É quase como se fosse a estrutura de uma perda, de uma carência, de uma privação – é um objeto perdido.


A haste de metal em 'Hang Up' não permite que a peça fique flácida, em vez disso, define uma curvatura aparentemente firme e crescente mesmo à frente da estrutura vazia.


'Hang Up' pode ser considerado a extensão de um vazio? Será ausência de presença? Ou talvez materialização de algo que nunca se concretizará, nem voltará?


‘Hang Up’ é na verdade uma peça muito contraditória: é em simultaneamente ocupação e vazio; afirmação e negação; definição e ausência; parede e chão; verticalidade e horizontalidade; estabilidade e instabilidade; fixo e solto; duas dimensões e três dimensões; pintura e escultura; tudo e nada; rigidez e fluidez.

Ana Ruepp