CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Na sua biografia de Pio V (sim, esse, o papa de Lepanto) - Saint Pie V, le pape intempestif (Le Cerf, 2018) - frei Philippe Verdin, também dominicano, entusiasma-se com o facto de três personalidades tão distintas (Pio V, Carlos Borromeo, Filipe Néri, todos aliás posteriormente canonizados) se terem conjugado para desenvolver a reforma católica da Igreja pós tridentina. Vale a pena traduzir-te um trecho saboroso e esclarecedor, em que o biógrafo coteja Pio com Filipe, ambos eles amigos e veneradores de Carlos, que lhes retribuía na mesma moeda:
Pio V não o compreende (a Filipe Néri). O papa inquieta-se com a sua doutrina e amizades com judeus e ciganos. Não gosta dessa loucura saltitante, a raiar o desrespeito, daquelas pantominas. Convoca-o e põe-no em sentido. Mas Filipe é edificante pela submissão e humildade. E Carlos intervém para lembrar os frutos do ministério oratoriano - [Filipe é fundador da Congregação do Oratório, à qual, mais tarde, pertencerão os nossos Bartolomeu do Quental, Manuel Bernardes e Luís António Verney] - e diz ao papa: «Filipe e vós combateis o mesmo combate, Santo Padre. Tendes a mesma paixão pela liturgia, os mesmos mestres teatinos, o mesmo zelo pela Igreja. Nunca Vossa Santidade ouvirá o Filipe criticar a autoridade pontifícia, nem pôr em causa uma só vírgula das vossas bulas. Todavia, vós agis em conformidade com o vosso papel e à vossa maneira, com autoridade, enquanto que ele o faz pela influência.» A título de curiosidade, Princesa de mim, lembro-te de que Sto. Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, conheceu pessoalmente S. Filipe Néri e admirava a bonomia da sua pastoral. S. Pio V, todavia, não se agradava com a sua aparente leviandade de maneiras, mas tolerava-as, pensando que ele era um santo, e aos santos tudo se perdoa. Escreve frei Filipe Verdin que o seu biografado diria para consigo: Ele é um amigo de Deus e há muitas moradas na casa comum, muitos membros diferentes no Corpo de Cristo. Esta diversidade é espantosa, mas inconfortável.
E o dominicano francês continua: Tal incompreensão lembra-me os dois dominicanos mais famosos ao tempo da minha entrada na Ordem, e dos quais terei a sorte de me tornar amigo: Christof Schönborn, cardeal arcebispo de Viena e autor do Catecismo Católico, tal como Pio V; Timothy Radcliffe, inglês fantasista e cheio de humor, Mestre Geral da Ordem. Esses dois homens respeitavam-se, mas não se compreendiam. Timothy, de jeans rasgados e cabelo em desordem, irritava Christof, um clássico, amigo de Bento XVI. Eis o equilíbrio precário, que encontramos em cada época da Igreja, necessário à vida dela, entre a retenção hierárquica e o impulso carismático.
Vem esta carta falar-te dessa misteriosa coexistência, debaixo do mesmo tecto - como também há milénios ensina o Tianxiá chinês, e podemos nós, cristãos de muitos e diversos tempos e berços, repetir, talvez chamando-lhe, não já céu, mas manto de misericórdia - de todos os homens de boa vontade que, na mensagem cristã, são a glória de Deus. Tal coexistência não é apenas simultaneidade, mas convívio e cooperação. E traz-me à memória aquela sentença de Paul Claudel: Um católico não tem aliados, só pode ter irmãos.
Un catholique n´a pas d´alliés - eis o título de uma coletânea da correspondência epistolar de Jacques Maritain com Paul Claudel, Georges Bernanos e François Mauriac, todos franceses do século XX, e católicos, o primeiro sendo um filósofo oriundo de família protestante e republicana, os outros três grandes escritores, dois deles, aliás, consagrados pelo Nobel e membros da Académie Française.[Só Bernanos ficou fora das honras oficiais, por opção própria, tendo recusado três vezes a Légion d´Honneur - considerando que só a soldados era devida - e chegado a dizer, bem ao seu jeito, acerca da Academia: Je ne voudrais empêcher personne de s´habiller d´une manière ridicule, mais il y a des vérités qu´on ne saurait dire, ni même écrire, en habit de carnaval.] O professor Henri Quantin, organizador desta edição (Éditions du Cerf, 2018), a dado passo da sua introdução, escreve: As cartas aqui reunidas testemunham que pode haver correspondência epistolar sem «correspondência de ideias e de gostos», porque o Evangelho é uma boa nova para anunciar, não uma ideologia para triunfar. A Igreja não é um partido político cujos membros tenham de, ou seguir uma linha eleitoral ou, então, bater com a porta, mas uma família cujas reuniões podem exaltar-se, vez sim, vez não, sem que os irmãos deixem por isso de ter o mesmo Pai. Eis palavras de uma das últimas cartas de Claudel a Maritain: «Espero que tenha esquecido os nossos pequenos desentendimentos, que pessoalmente nunca me impediram de reconhecer em si um irmão com quem tenho orgulho de partilhar uma fé comum». Aquando desses «pequenos desentendimentos», Claudel até chegara a chamar imbecil a Maritain, mas trata-se, afinal, de um adjetivo muitas vezes utilizado entre irmãos...
Explica Quantrain queTal fraternidade conflitual explica a ordem escolhida para este volume: começar por Mauriac, continuar com Claudel e acabar com Bernanos é uma maneira de submeter a caridade e a paciência dos Maritain a provas de dificuldade crescente. É certo que os irmãos não são aliados, mas certas alianças feitas por um irmão podem tornar mais difícil a vida em fraternidade. A defesa de Drumont por Bernanos será, por exemplo, difícil de aceitar pelo autor de L´impossible antisémitisme. De maneira geral, na ordem das ideias políticas em sentido lato, Claudel e Bernanos afastam-se muitas vezes de Mauriac, ficando este mais próximo das posições de Maritain. Note-se que esses papéis não estão estabelecidos para sempre: se a oposição a Maurras junta, pelo menos de 1927 a 1932, Maritain, Mauriac e Claudel contra Bernanos, a guerra de Espanha, pelo contrário, vê uma frente Maritain-Mauriac-Bernanos opor-se a um Claudel fervente defensor da Igreja espanhola e dos nacionalistas. O sabor dessas trocas deve, aliás, muito aos dramas históricos que lhes são, simultaneamente, pano de fundo e campo de batalha.
Na minha mocidade, li muito estes quatro autores de que te falo agora, com gosto especial por Mauriac romancista e Bernanos escritor de combate, que devorava. E essas leituras feitas entre os catorze e os dezassete anos marcaram-me muito: hoje ainda, quando penso em honestidade intelectual e frontalidade profética, recordo Les grands cimetières sous la lune, La France et les robots, La grande peur des biens pensants; e para falar de língua francesa lindamente escrita, vou buscar trechos de Mauriac para ilustração... tal como me abismo nas suas visões de negruras e alvuras das almas.
Aliás, para partilhar essas experiências contigo, traduzo-te um passo do Bloc-notes de François Mauriac, com data de Domingo, 6 de novembro de 1960, registando o velório a Raïssa Maritain [Ocorreu-me este trecho várias vezes, neste mês e meio, ao meditar na morte recente de dois muito queridos amigos, ambos embaixadores, João de Deus Bramão Ramos e Nuno da Cunha e Távora Silveira e Lorena. Amizades com mais, ou muito mais, de seis décadas, apesar de as vidas vagabundas de todos três nos terem, com frequência, geograficamente afastado, sem todavia quebrar diálogos e partilhas]:
Ajoelhado ao lado de Jacques Maritain, no quarto em que Raïssa Maritain descansa, contemplo avidamente essa bela fronte, donde se retirou o pensamento, e que todavia dele conserva a irradiação. O corpo tornado coisa deveria ser igual às coisas (que é no que se torna um bicho morto). Podem dizer que não acreditam na alma: ela nunca me parece tão visível como quando já lá não está: o rosto dessa mulher duas vezes inspirada, pois que vivia de Deus e era poeta, esse rosto, no momento de se desfazer e voltar a ser pó, de não ser nada, guarda o estigma de um pensamento para sempre ausente, mas é infinitamente mais do que um pensamento.
O original está num francês muito bonito, mas reflete bem essa sensibilidade da alma, tão feminina, que levava François Mauriac a tão bem escrever sobre as mulheres, como nesse romance do claro-escuro de uma vida humana que é Thérèse Desqueyroux. E já que te falo desta, também te digo como entre o filósofo tomista, de origem republicana e protestante, e o escritor burguês, de origem conservadora e católica, se foi desenvolvendo - até pelos processos de conversão próprios a cada um deles - um profundo entendimento espiritual (apesar da embirração de Mauriac com o tomismo). Este trecho de Maritain, que de seguida te traduzo - tirado da Réponse à Jean Cocteau, que a Librairie Stock publicou, em maio de 1926, simultaneamente com a Lettre à Jacques Maritain, do mesmo Cocteau - mostra bem, como diz Michel Bressolette, um ponto de encontro Maritain-Mauriac muito íntimo. Qualquer leitor de Thérèse Desqueyroux, por exemplo, o notará:
Entre o mundo da poesia e o da santidade há uma relação de analogia, e tomo esta palavra com toda a força que lhe dão os metafísicos, com tudo o que ela significa, para eles, de parentesco e de distância.
Mesmo para com o pecado, a arte ainda imita a graça. Quem não conhece as regiões do mal pouco entende desse universo. O artista também conhece as rugas do coração, e visita os lugares inferiores.
Quiçá outro jeito de confirmar esta afirmação de Jacques Maritain seja a troca de incompreensões mútuas e contrições sentidas entre o filósofo e Georges Bernanos. Este, quando panfletário, deixava-se cair em tentações de grandiloquência feroz, daquelas que, tantas vezes assediam os corações proféticos. Nalgumas delas terá sido, foi mesmo, injusto, acintoso até, para com Jacques Maritain, por tabela magoando muito Raissa. Não vou agora, Princesa de mim, contar-te histórias dessas, muito menos comentá-las. Espero que sejam suficientemente elucidativos - e servindo o propósito desta minha carta - os trechos dos próprios protagonistas, que seguidamente traduzo. São bilhetes e cartas:
De Raissa Maritain a Georges Bernanos, a 4 de abril de 1930:
Excelentíssimo Senhor:
Se o bilhete que lhe enviei, na ausência de Jacques, lhe causou mágoa, lamento imenso. Mas como podia eu pensar que o senhor quisesse mesmo comunicar a sua dor a alguém que publicamente acusou de ensinar aos amigos «a ciência e as delícias do pecado mortal»? O meu primeiro impulso foi escrever-lhe, mas disse para comigo que alguém que não cessa de desentender as intenções do Jacques só poderia acolher mal um testemunho de amizade da nossa parte... ... Se hoje lhe escrevo é porque, no fim de uma carta dura, pede todavia ao Jacques que reze por si. E isso toca-me profundamente. Creia, senhor, que perdemos um amigo que nunca deixámos de amar, e que toda a pena é nossa.
De G. B. para Jacques Maritain, a 30 de agosto de 1930:
Meu Caro Maritain:
...Perdoe-me não lhe ter agradecido as suas duas cartas, estive muito doente. Parece-me que me conhece mal. Mas dizemos isso sempre! Ao fim e ao cabo, nem tenho bem a certeza de saber mais do que V. acerca do mesmo assunto. Assim sendo, creio que será melhor aturarmo-nos tal qual somos, pacientemente, ou mesmo alegremente (ambos temos lados cómicos!), esperando que a meiga piedade de Deus nos cubra.
As minhas melhores e especiais homenagens à Senhora Maritain, com a minha afetuosa mágoa de, por vezes, lhe causar pena. E pense em mim diante de Deus.
De R. M. a G. B., a 24 de maio de 1931
Caro Amigo:
...Toca-me, mais do que sei dizer, a amizade que V. me testemunha. Sensibilizo-me, admirada, porque não a mereço. Mas é desse mais acima dos meus méritos que verdadeiramente preciso, porque só o dom opera a salvação.
Procuro, à luz dessa amizade, situar o mal tão gravoso que V. disse do Jacques, e compreendo que V. só possa pensá-lo quando entra nessa região, a certos títulos não-humana, da polémica cujo objetivo não é a verdade mas a batalha por uma causa à qual julgamos tudo poder sacrificar, mesmo a amizade e a justiça, porque milagrosamente parece em si conter tudo isso, e sobre tudo o mais prevalecer.
É nessa região da polémica que também incluo o seu livro sobre Drumont. [Raïssa refere-se a La Grande peur des bien pensants, onde, na verdade, se encontram textos suspeitosamente inspirados de algum antissemitismo].
O amor apaixonado da França, o conhecimento concreto, vital, da pessoa e da sua história são como labaredas a percorrer todas essas páginas, e ali tudo serve para alimentar esse fogo e propagar esse incêndio. Mas como poderei levar-lho a mal? Pois se, quando a palha de certos argumentos tiver ardido, ficará o rasto imortal de um coração que muito amou.
Tampouco é o antissemitismo que me magoa no seu livro. Na verdade, pouco lugar lhe deu. E não tenho o menor desejo de defender as «potências do dinheiro», mesmo que sejam judias. Aliás, pessoalmente, não conheço judeus ricos. Na minha família, sempre fomos pobres, e talvez por isso eu tivesse tido, pelo Mendiant Ingrat, amor à primeira vista. [Referência, aqui, a Léon Bloy, de quem já te falei, admirado por Bernanos, padrinho de batismo dos Maritain, que ele próprio apoiara no caminho da conversão. Como verás, Princesa de mim, Bernanos, na resposta, terminará a carta recordando a memória do "velho padrinho, na meiga piedade de Deus, que um dia nos reunirá"]
De G.B. para R. M., a 28 de março de 1933
Querida Senhora e Amiga:
... há por vezes uma espécie de florinha no terreno vago ao qual, apesar de tudo, não posso chamar jardim nem vida minha. Eis aqui uma que colhi para si: fui muito estúpido, outrora, ao magoá-la, e peço-lhe perdão por isso. Com muito afeto, na memória do vosso velho padrinho e na meiga piedade de Deus, que certamente um dia nos reunirá.
De R. M. para G. B., a 31 de março de 1933
Caro Amigo:
Essa florinha que me envia não pode ter sido colhida num «terreno vago», vem direitinha do jardim da caridade.
Dizer: magoei-a, peço-lhe perdão, é de uma simplicidade rara, é algo raro e puro como a boa vontade.
Considerava a questão resolvida entre nós; a sua carta é, pois, um belo excesso, pelo qual vos fico infinitamente reconhecida.
Afinal, sobre a relação, por vezes difícil, entre Bernanos e os Maritain sempre planou a lição de Léon Bloy, o «mendigo ingrato»: a busca de Deus como caminho de reconciliação. Em fevereiro da 1947, ano e meio antes de morrer Georges Bernanos escrevia, num texto intitulado Dans l´amitié de Léon Bloy: O nosso Bloy, o nosso velho Bloy, que de acordo com a predição do senhor seu pai, terá falhado tudo, não nos falhou a nós, a nós seus amigos, e até seus discípulos, pelo menos seus afilhados ao mesmo título que Maritain e Van der Meer.
Esses livros, recentemente ou agora publicados, de que te falo, levam-me a revisitar a biblioteca de meus pais - da qual pouco me sobra, à parte edições antigas do Eça e do Camilo, em português, e outras mais esparsas de autores franceses et alia... Estes são sobretudo católicos militantes, dos que minha Mãe lia na Universidade de Lovaina, quando por lá andava. Até conservo uma tese de doutoramento, escrita em francês, por um português, sobre a nossa Constituição de 1933... Interessante, nunca encontrei nada parecido em Portugal. Curiosamente, antes de assinar esta carta, surge-me a imagem de minha Mãe, comodamente sentada na sua sala de estar, de óculos postos, a ler Maritain; e a de meu Pai, mais sonora, já deitado no quarto onde lhe ia dar as boas noites, rindo com gosto em divertida leitura de A Relíquia ou do Tintin en Amérique. Por acaso, ainda tenho os mesmos exemplares (hoje dizem cópias) de ambos... E dou graças a Deus pela minha vida ter tido tantos momentos de Graça com graça.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira