Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Que Fizeste do Teu Irmão? – Um Olhar de Fé sobre a pobreza do mundo” de Alfredo Bruto da Costa (Cáritas, Forum Abel Varzim, 2020) constitui um testemunho fundamental do autor sobre o momentoso problema da pobreza.
DOCUMENTO PRECIOSO E ORIGINAL Quando a engª Vera Bruto da Costa me mostrou o texto que o marido deixara incompleto, ao partir, não tive dúvidas em dizer que se tratava de um documento precioso e original, sobre um tema que ocupou intensamente Alfredo Bruto da Costa. É um conjunto indispensável de temas, no qual se unem o rigor da análise e o alerta atualíssimo relativamente a uma situação dramática da pobreza na atualidade. Seguindo passo a passo o livro, começamos pela referência ao “maior equívoco da história da Humanidade”, a contradição entre a espera de um libertador e a sua recusa, como vemos na atitude do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov” de Dostoievsky, a dizer a Jesus Cristo, regressado inesperadamente, que deveria desaparecer rapidamente por ser indesejado. É verdade que não era a pobreza o tema do grande equívoco, mas a partilha e a exigência do cuidado dos outros e da não indiferença, marcantes na essência da novidade cristã. E, refletindo sobre o Amor de Deus, o autor pergunta: “quem pode ousar falar do Amor de Deus”, realidade tão complexa e indefinível, não suscetível de simplificações humanas. E então a pobreza surge como exigência de disponibilidade, como obrigação de compreender o outro e de ter respostas. Assim, os pobres de que fala a Bíblia são aqueles que o são no seu íntimo, como afirma a primeira Bem-Aventurança. É de disponibilidade que se fala, como scolè é a origem etimológica grega da palavra escola como lugar do ócio, enquanto disponibilidade plena para saber e compreender. Não há, contudo, não pode haver, elogio da pobreza sociológica. E lembre-se o que dizem os Atos dos Apóstolos relativamente à vida na comunidade cristã. “Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum”. Estamos perante a relação do ser humano com os bens materiais. Não está em causa o reconhecimento do direito de propriedade, mas a compreensão do princípio do destino universal dos bens da terra. E assim temos de compreender o sentido e o alcance do direito de uso e do direito de posse. Como afirma a encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, “a propriedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho”. Eis a importância do desapego ao material, para que dele não nos tornemos servos. A necessidade do outro, como outra metade de nós, para usar a expressão do Padre Mateo Ricci, significa a possibilidade de ter resposta ao outro, não nos fechando sobre nós mesmos.
OS BENS DA TERRA NO MUNDO A distribuição de bens da terra no mundo é hoje, contudo, cada vez mais desigual. As disparidades agravam-se. Em 1960 o rendimento dos 20 % mais ricos da população mundial era 30 vezes o rendimento dos 20 % mais pobres. Mas no ano 2000 essa relação passara a 75 vezes. Por outro lado, “as desigualdades no domínio das capacidades avançadas estão a agravar-se. Por exemplo, apesar dos desafios no tocante aos dados, as estimativas apontam para ganhos ao nível da esperança média de vida aos 70 anos, entre 1995 e 2015, duas vezes superiores nos países com um nível muito elevado de desenvolvimento humano, em relação aos países com um baixo nível de desenvolvimento humano. Existem elementos que demonstram a presença do mesmo padrão de divergência num vasto leque de capacidades avançadas. De facto, as divergências no acesso a um conhecimento mais avançado e à tecnologia são ainda mais vincadas” (p. 107). Daí a exigência, para Alfredo Bruto da Costa, de uma leitura evangélica da pobreza no mundo. A noção de cidadania mundial, de que falou o Papa João Paulo II e de que fala o Papa Francisco vem reforçar a urgência de alargarmos o horizonte do nosso pensamento para além das fronteiras nacionais. Trata-se de assumir o princípio da subsidiariedade, que significa, a um tempo, tratar e solucionar os problemas o mais próximo possível das pessoas, mas sempre a um nível adequado. O pensamento “glocal” é a um tempo global e local, centrífugo e centrípeto. Se as questões do ambiente ou das pandemias, do aquecimento global ou da cultura da paz têm de ser tratadas acima das fronteiras nacionais, as opções ligadas à organização local ou aos cuidados das pessoas concretas têm de ter dimensão local e comunitária.
GLOBALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO Como lembra Bruto da Costa: “a globalização é demasiado importante para ser deixada ingovernada, como acontece presentemente, porque tem capacidade de fazer extraordinário mal, como bem”. Exige-se, assim, coesão social, sustentabilidade cultural, económica, social e ambiental, conhecimento e aprendizagem. O que é libertar os pobres de hoje? É combater e resolver a privação (fome, sede, nudez, falta de abrigo) e a falta de recursos, de modo a garantir autosuficiência, autonomia e defesa do bem comum. “A definição de pobreza que adotámos (diz ABC) conduz-nos a duas conclusões da maior relevância teórica e prática. A primeira reside no facto de ser possível resolver a privação, sem resolver a pobreza. Para tanto, basta que o pobre tenha acesso aos bens e serviços básicos por via de apoios extraordinários (por exemplo, o acesso aos alimentos do Banco Alimentar, a algum ‘roupeiro’ gratuito, a uma residência social para indivíduos e famílias sem habitação, etc.). Apoios deste tipo têm duas características importantes: resolvem a privação, mas mantêm o pobre numa situação de dependência. Isto acontece porque, apesar de sair da privação, o pobre continua sem os recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas como o comum dos cidadãos. Matar a fome, sendo indispensável, não conduz, só por si, à autonomia. Daí a segunda conclusão, a de que a pobreza só é vencida quando o pobre sai da situação de privação por seus próprios meios… Por outras palavras o pobre só vence a pobreza quando já não precisa de recorrer a medidas e políticas de luta contra a pobreza” (p. 131).
O QUE FAZER? O que fazer? Agir em vários tabuleiros: na igualdade de oportunidades, na correção das desigualdades, na justiça distributiva, na equidade integeracional, no desenvolvimento sustentável. Não é por acaso que o primeiro dos objetivos das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável é a erradicação da pobreza. Partindo do destino universal dos bens da terra e da exigência de sobriedade, o combate à pobreza obriga a haver metas claras e uma definição de meios que nos permitam superar as condicionantes que nos afetam, sobretudo depois da pandemia, que agravou as disparidades e tornou mais difíceis os objetivos anteriormente definidos. E Alfredo Bruto da Costa deixou-nos o desafio de não baixarmos os braços nesse caminho no sentido da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
«Um Olhar sobre a Pobreza – Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal Contemporâneo» (Gradiva, 2008), coordenado por Alfredo Bruto da Costa constitua uma obra fundamental para a compreensão da Pobreza como fenómeno político e social a exigir atenções especiais.
POBREZA, FENÓMENO COMPLEXO Tantas vezes Alfredo Bruto da Costa telefonava ou pedia um encontro para debater uma dúvida, uma iniciativa ou uma ideia. Era extraordinária a sua atenção aos acontecimentos e à necessidade de os refletir serena e profundamente. Relativamente a um dos últimos livros de Amartya Sen («The Idea of Justice», 2009) anotou criteriosamente as suas dúvidas e sentiu-se algo desiludido, uma vez que esperava pistas mais inovadoras, para além do muito que o pensador já tinha dado, e que ele tanto admirava. Como este exemplo poderia dar muitos mais. E falámos longamente da experiência emancipadora de seu pai em Goa no grupo de Margão… Foram muitas horas de gostosa conversa e muitas ideias e iniciativas, algumas das quais ficaram por realizar – apenas adiadas. O que o preocupava era passar das ideias para os atos. Ele era a demonstração de que Emmanuel Mounier tinha razão quando dizia que «o acontecimento é o nosso mestre interior». Se no campo das ideias era extremamente estimulante, o certo é que esteve sempre preocupado com o modo de influenciar a realidade. Daí que muitas das suas preocupações nesses fantásticos diálogos, sempre como se todo o tempo estivesse ao nosso dispor, tivessem a ver com o difícil passo no sentido de melhorar a vida das pessoas concretas, de carne e osso, ignoradas e esquecidas. O seu combate foi sempre contra a indiferença, compreendendo que era mais fácil passar ao largo dos problemas, como se eles não nos dissessem respeito, em vez de os encarar frontalmente. As parábolas do bom samaritano e dos talentos estavam sempre presentes no seu pensamento. Conheci-o melhor na fugaz experiência governativa de Maria de Lourdes Pintasilgo, e depois não deixámos de estar em contacto regular. Não esqueço o seu contributo nos Estados Gerais lançados por António Guterres e saliento a consciência aguda que tinha dos problemas da educação e da formação, em ligação estreita com a criação de condições de justiça para todos – o rendimento mínimo garantido e a educação pré-escolar foram temas em que se empenhou e que refletiu intensamente. E quer no Conselho Económico e Social quer na Comissão de Justiça e Paz fui testemunha de uma ação determinada e muito inteligente no sentido de construir na opinião pública um ambiente de conhecimento e disponibilidade para os difíceis problemas da pobreza. Beneficiei também muito da sua ajuda no tocante ao tema da prevenção da corrupção – que se encontra paredes meias com a justiça social, já que esse flagelo, além de corroer os fundamentos da sociedade, retira meios indispensáveis para a justiça distributiva, para o emprego, para a correção das desigualdades e para o combate à exclusão.
DISTINGUIR DA EXCLUSÃO SOCIAL Sei que a melhor homenagem que lhe posso fazer nesta crónica é relembrar o seu pensamento. Não me perdoaria se não o fizesse. Tantas vezes o ouvi repetir que é preciso clarificar ideias e não confundi-las para que os problemas possam ser solucionados devidamente. O fenómeno da pobreza deve distinguir-se da privação e da exclusão social. Não podemos misturar tudo, uma vez que fazendo-o afastamo-nos do cerne das ações necessárias. Bruto da Costa sempre nos disse, assim, que a pobreza é um grave problema político, a que importa dar atenção. A pobreza é uma situação de privação por falta de recursos, enquanto a privação em geral corresponde a não ter as necessidades básicas garantidas, por falta de recursos ou outra razão – desde a dependência de um vício ou de uma doença até à falta de capacidade para administrar os seus bens. Para cada um dos casos as soluções são muito diferentes. Na pobreza é preciso ajudar as pessoas a ter os meios necessários, na privação é indispensável apoiá-las a fim de que a gestão dos recursos seja melhor assegurada. A pobreza apenas se resolve com autonomia. A cana de pesca é importante, mas pode valer pouco, se não prepararmos as pessoas, de não as formarmos, se não as acompanharmos. A pobreza é uma das formas de exclusão social, mas não a única, há outras – como o isolamento dos idosos, que podem ter recursos materiais e a discriminação social de imigrantes ou deficientes etc..
POBREZA E DESEMPREGO Também o desemprego é um fenómeno diferente do da pobreza, sem dúvida muito grave, mas diverso. Cerca de 40% dos membros das famílias pobres têm emprego e outros 30% recebem pensões de reforma. Ora, quando temos 40% de pobres ativos verifica-se que o problema não é apenas de distribuição, mas de repartição primária de rendimentos. A pobreza é um flagelo que exige políticas económicas – que corrijam as desigualdades. Muitas vezes pergunta-se se devemos ter primeiro crescimento económico para distribuir depois ou se das várias maneiras de crescer e criar riqueza devemos escolher a que assegura à partida uma melhor distribuição. Para Alfredo Bruto da Costa, tem-se demonstrado que a primeira hipótese não acontece – há décadas que se espera pelo dia e a hora em que já crescemos o suficiente para distribuir. Como diz a Constituição Pastoral «Gaudium et Spes» do Concílio Vaticano II: «Para satisfazer as exigências da justiça e da equidade devem fazer-se grandes esforços para que, dentro do respeito dos direitos da pessoa e da índole própria de cada povo, desapareçam, o mais depressa possível, as enormes desigualdades económicas unidas à discriminação individual e social, que ainda hoje existem e frequentemente se agravam» (nº 66). Importa, no fundo, jogar em vários tabuleiros: pôr a tónica no desenvolvimento humano, o que exige agir sobre as instituições, apostar na inovação, apoiar o capital social e humano, cuidar do emprego justo, criar riqueza sustentável e favorecer à partida a melhor distribuição possível. Michael Walzer fala, por isso, na ideia de justiça complexa. Os governos têm responsabilidades especiais, mas importa compreender que há resistências na economia e da sociedade que têm de ser superadas. Não basta, assim, a vontade ou a boa intenção que levam a uma lógica meramente assistencialista. A maior parte das medidas adotadas visa atacar a privação, o que já é bom, porque é um problema urgente, mas é insuficiente. Impõe-se que as políticas de desenvolvimento, de que falam o Padre Lebret e a encíclica «Populorum Progressio», se traduzam não apenas em medidas visando reduzir a privação – o que é positivo – mas em compreender que é a pobreza, ela mesma, com as suas especificidades que tem de ser combatida. O mal não está no que se faz, mas no que fica por fazer… E a grande lição, que continua na ordem do dia, é a de que o planeamento estratégico deve ligar criação de riqueza e de valor, sustentabilidade, disciplina, combate ao desperdício, defesa do meio ambiente e da qualidade de vida, distribuição, repartição e justiça. É o que fica por fazer que nos deve preocupar. Essa a herança e o testemunho de Alfredo Bruto da Costa que não poderemos esquecer!
Guilherme d’Oliveira Martins
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