Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O poder de determinação e a vontade que têm determinadas pessoas em acreditar que são capazes de ultrapassar obstáculos, por meios legítimos e pacíficos, para alcançar um fim que têm como missão para si próprias e o bem comum, é gratificante e louvável, por maioria de razão quando por exclusivo mérito próprio, transformando o querer mental do sonho em realidade.
Convencendo-nos de que estamos aptos e preparados, nas nossas circunstâncias, para voar mais alto, querendo obter o que desejamos e não conseguimos e sabemos que lograremos realizar, entusiasmando-nos com o que não sabemos e queremos saber, é um desígnio apreciável.
Foi essa garra afiada de querer saber e descobrir o que não sabia, que levou Mamadou Safayou Barry, guineense da África ocidental, a atravessar seis países africanos, de oeste para leste e norte do continente, para estudar na universidade de Al-Azhar, do Cairo, no Egito. Fê-lo numa bicicleta de montanha, comprada em segunda mão, percorrendo cem quilómetros por dia, num total de 4000, entre deserto, selva e zonas inseguras, atravessando o Mali, Burkina Faso, Togo, Benim, Níger e Chade. Neste último, entrevistado pela imprensa local e conhecida a sua odisseia, conseguiu viagem de avião até ao Egito através de um filantropo que a pagou.
O querer estudar e saber levaram-no a ultrapassar todas as vicissitudes por que passou, desde ter comprado a liberdade em troco de todo o dinheiro que tinha, ser detido por milícias e militares que lhe apontavam armas, visto como um intruso maléfico por populações civis, dormir em arbustos e longe das cidades receando o furto ou roubo da bicicleta, tendo sempre em mente, usando as suas palavras: “Se tens um sonho, mantem-te firme a ele. Sê forte, Deus vai-te ajudar”.
Esta épica pedalada de Barry, de 25 anos, durante quatro meses, por seis países, atingiu, com sucesso, o seu objetivo no passado dia 5 de setembro, sendo-lhe oferecida uma vaga e uma bolsa integral para estudar na universidade egípcia de topo por ele escolhida.
É um exemplo de que o que nos deve entusiasmar é o que não sabemos, tendo interesse por aquilo que não sabemos e queremos descobrir ou saber, não por aquilo que já sabemos ou conhecemos, sabendo que não podemos pensar que sabemos tudo, partindo da velha máxima de que saber é poder e de que querer saber é querer ter poder, sendo necessário, para isso, estar sempre à procura de mais para aprender, qualificando-nos, pela positiva, a nível do saber e do poder.
A etnografia bem nos ensinou o quanto os reis se não contentam com uma permanência esporádica na ideia dos seus súbditos.
Em rigor, a evocação do seu nome, ao constituir uma autorização ao súbdito para atuar, em muitas situações determinantes da vida social, mais tarde, iria levar a que se não descurassem para realidades similares, o imprimir dos rostos dos chefes de Estado em dinheiro, dinheiro este que por sua vez, estabelece, como se sabe, relações das pessoas entre si.
Também podemos identificar um equivalente entre a grandiosidade dos rituais reais e o desejo de impulso totalitário subjacente aos atuais grandes desfiles e paradas militares, nos Estados totalitários, ainda que, cremos, o poder do soberano não teria uma evidente relação com o poder expresso no fausto que referimos, não obstante em ambas as posições, se visasse, e ainda se visa, a ideia de projetar um poder eterno.
Palácios e mausoléus anunciam conquistas que perduram e fazem parte do nosso património, inclusive enquanto museus, com um poder que não nos obriga, mas pode feitiçar.
Entender a realidade do poder, é compreender o que está entre o que se declara poder fazer, e o que efetivamente se consegue fazer.
O sociólogo inglês Philip Abrams tem como ponto de partida que a individualidade e a sociedade, constituem construções históricas sucessivas, e que, necessário se torna analisar as suas interconexões, sob pena de se não descobrir onde é que o Estado não existe, e onde foi substituído pelas grandes burocracias a nível planetário (FMI, OMC, etc.) impedindo talvez, de muitos modos que a democracia possa, enfim, ser a inevitabilidade competitiva mais desejada.
A etnografia, método consagrado no campo da pesquisa antropológica, não descura hoje a etologia, e o quanto ela tem contribuído para a compreensão do comportamento humano, peça central na civilização.
Cremos poder dizer que até nós não nos chegaram reinos de poder na sua forma acabada e que herdámos amálgamas de elementos conectados entre si, que cabe repensar, refletir em prol dos caminhos mais direcionados aos nossos ideais.
1. Quando visitamos um casal amigo com filhos pequenos, é permanente a experiência de que os miúdos começam por exaltar-se, mostrando-nos os seus novos jogos, desenhos, etc. Com o tempo, os adultos vamos às nossas conversas, ficando as crianças esquecidas. Mas elas vão de novo chamar a atenção, com o telemóvel, uma fotografia... Depois, como voltamos às questões dos adultos, pode não restar aos miúdos outra alternativa que não seja bater com o pé no chão, amuar, fazer birras...
Mas não são só os miúdos ou os adolescentes. O que os adultos fazem para chamar a atenção... O que se investe, o que se gasta, para parecer e aparecer!
Tudo para chamar a atenção... Afinal, é mesmo isto: não nos basta existir, estar aí pura e simplesmente. Queremos, temos fome ontológica de existir para alguém, para os outros. Não nos basta existir, sermos conhecidos; precisamos de ser reconhecidos pelos outros. As lutas, as pelejas que travamos para isso: para sermos reconhecidos!... Numa obra que constitui um dos cumes do pensamento humano, A Fenomenologia do Espírito, o filósofo Hegel, ao traçar o caminho das diferentes figuras da consciência até ao Espírito Absoluto, descreve a um dado momento, concretamente na dialéctica famosa do senhor e do escravo, a luta de vida e de morte entre as consciências, precisamente em ordem ao reconhecimento.
Também Sartre, nomeadamente em O Ser e o Nada, dedicou páginas célebres a esta questão do reconhecimento. Para que a nossa existência se legitimasse, este reconhecimento deveria ser incondicional. Daí, aquelas perguntas terríveis: será que ele, será que ela, seria capaz de mentir por mim?; será que, por mim, ela/ele seria capaz de matar? Mas, para Sartre, o reconhecimento é impossível, pois, concretamente mediante o olhar, ou eu coisifico o outro ou o outro me coisifica a mim. Apesar da nossa ânsia incontida de reconhecimento, não há possibilidade de sair desta luta. Por isso, "o inferno são os outros".
Foi com esta mesma problemática que se debateu São Paulo num dos monumentos culturais maiores da Humanidade: a Carta aos Romanos. De nada o ser humano precisa tanto como de justificar a existência, saber-se justificado. A nossa salvação consistiria no reconhecimento, na justificação incondicional da nossa existência pelo Absoluto, por Deus. Porque, seres humanos frágeis, falíveis, mortais, não podemos reconhecer-nos incondicionadamente, e, por conseguinte, salvar-nos. O Evangelho, a Boa Notícia do cristianismo, está precisamente em que Deus, em Cristo, nos justifica, isto é, nos acolhe incondicionadamente, de tal modo que a nossa vida vale a pena, pois vale para o próprio Deus. E, aqui, permita-se-me uma breve observação. Uma vez, em Maputo, numa palestra simples, tentei explicar isto da justificação. Soube mais tarde que um negro moçambicano ficou tão contente que fez pelo menos dez quilómetros a pé para ir dar a boa notícia a uma irmã de sangue: “Está lá, em Maputo, um tipo de Lisboa que esteve a explicar que nós todos valemos para Deus. Já viste? Valemos para Deus. Nós temos valor para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto.”
2. O ser humano, pessoa e não coisa, não tem definição adequada. Mas, reflectindo sobre a sua constituição, penso que Pascal, um dos maiores matemáticos de sempre e também um dos maiores cristãos europeus, tem razão, quando disse: o Homem mora ali algures “entre o nada e o infinito”. É isso. Aliás, a neotenia aponta também neste sentido. Nascemos prematuros, e, por isso, enquanto os outros animais nascem feitos — desde o primeiro dia fazem o que farão ao longo da vida —, o Homem, ah!, o tempo que demora a fazer um ser humano: tem de aprender quase tudo: a pôr-se em pé, a andar, a falar... Temos de receber por cultura e criando cultura o que a natureza nos não deu. Por isso, inovamos, criamos o novo, de tal modo que, se Platão, por exemplo, cá voltasse, encontraria os outros animais como os deixou, mas que dificuldades teria para se adaptar à nossa sociedade. O que isto mudou! Tendo vindo ao mundo por fazer, a nossa tarefa essencial, queiramos ou não, é fazermo-nos. O que andamos cá a fazer? Resposta: fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos..., e, no fim, o resultado será uma obra de arte ou uma vergonha...
Fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros e ou colaboramos ou destruímo-nos. Entretanto, na luta pelo reconhecimento, não penso que sejamos piores do que os que nos precederam. Pelo contrário, até há mais consideração pela dignidade humana, pelos direitos humanos... O que se passa é que temos mais poder, incluindo, pela primeira vez na História, o poder de nos destruirmos como Humanidade. E, desgraçadamente, é tal a fome de reconhecimento, que se pode chegar à loucura de actos de terrorismo: “hão-de reconhecer-me; se não for a bem, será a mal”.
Em busca de reconhecimento, queremos sempre mais poder, como constatou Thomas Hobbes no Leviatã: “Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e inquieto desejo de poder e mais poder, que só acaba com a morte. A razão disso radica no facto de que não se pode garantir o poder a não ser procurando cada vez mais poder.” Mas então, num mundo global e com armamento nuclear, o que pode esperar a Humanidade?
Finitos, queremos o Infinito. Mas, atenção!, só Deus é infinito e só Ele pode dar a plenitude, como escreveu Santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 2 de abril de 2022
Perante os horrores que estamos a viver, escrever o quê? O meu desejo era tão-só pôr como título: Ucrânia: o horror. Depois, pedir para colocarem na página em branco a imagem de uma cruz e, no fundo à direita, duas palavras: Lágrimas e solidariedade. E era tudo.
Mas estamos na Quaresma e, no Domingo passado, o Evangelho narrava as três tentações de Jesus, tentações que, lá no fundo, não são senão uma só: a tentação do poder total enquanto domínio: o poder económico — o diabo disse a Jesus: “diz a estas pedras que se transformem em pão” —, o poder religioso — levou-o ao pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, os anjos levar-te-ão nas suas mãos” —, o poder total — “o diabo mostrou-lhe todos os reinos do universo: Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória; se te prostrares diante de mim, tudo será teu.”
Jesus não cedeu. Mas, quando se cede, caindo na tentação do domínio total, da omnipotência, julgando ser Deus, então é o que se sabe, ao percorrer a História: horrores, tragédias sem fim, a brutalidade pura, reinos destruídos, impérios que se desmoronam, ódio, sofrimento e dor sem nome e sem fim... Lembrando apenas o século XX na Europa: várias guerras, com duas mundiais, custaram quantos mortos? E agora, quando pensávamos ter encontrado a paz, eis que, num desígnio imperial, Vladimir Putin, ignorando o Direito Internacional, a dignidade da pessoa, os direitos humanos, invade um país independente e soberano, a Ucrânia. E aí está outra vez a guerra, e as atrocidades sucedem-se, bombardeamentos indiscriminados, milhões de deslocados, feridos, mortos, edifícios arrasados, idosos, mulheres, crianças a fugir desesperados à morte, num calvário arrepiante, pungente. O intolerável que, no limite da loucura de uma guerra nuclear, poderia arrastar para o auto-aniquilamento da Humanidade...
Mesmo se a União Europeia e a NATO não souberam gerir da melhor maneira o pós-queda do Muro de Berlim e o desmembramento da URSS — não se deverá esquecer a ideia de De Gaulle sobre uma Europa “do Atlântico aos Urais” nem o discurso do Papa João Paulo II sobre o Ocidente e o Oriente como “os dois pulmões” da Igreja e da Europa —, isso não justifica de modo nenhum a invasão. Aliás, felizmente, como que anunciando o despertar para uma nova Europa, nunca a Europa esteve tão unida como nesta condenação e, também na Assembleia geral da ONU, 141 Estados votaram a favor da resolução condenando a invasão; apenas 5 votaram contra. Putin sentir-se-á isolado como nunca, já com um lugar na história dos tiranos, e a solidariedade com os ucranianos é gigantesca e cordial.
Nesta solidariedade e procura da paz mediante negociações diplomáticas, o Papa Francisco tem sido incansável. Logo nos primeiros dias da guerra, encontrou-se com o embaixador russo no Vaticano, telefonou ao embaixador da Ucrânia, manifestando a sua “profunda dor” pela invasão, e falou com o presidente ucraniano Zelensky.
Entretanto, enviou à Ucrânia dois cardeais: Krajewski, o esmoleiro, e Czerny, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, como mensageiros da paz. No Domingo passado, foi claro: “Na Ucrânia, correm rios de sangue e de lágrimas. Não se trata de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria.” Lembrando as tentações, sublinhou que elas são “uma proposta sedutora mas que conduz à escravidão do coração: cegam-nos com a ânsia do ter, reduzem tudo à posse de coisas, de poder e de fama. Jesus, porém, opõe-se vitoriosamente à atracção do mal. Como? Respondendo às tentações com a Palavra de Deus, que diz que a verdadeira felicidade e a liberdade não estão no ter, mas na partilha, não no aproveitamento dos outros, mas no amor, não na obsessão pelo poder, mas na alegria do serviço.” E, mais uma vez, declarou: “A Santa Sé está disposta a tudo, a pôr-se a caminho pela paz.” Numa conversa telefónica entre o Secretário de Estado do Vaticano e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, o cardeal Parolin repetiu a Lavrov o apelo de Francisco e a disposição da Santa Sé para todo o tipo de mediação considerado útil para fomentar a paz: “Os combates têm de cessar, impõe-se abrir corredores humanitários, negociar.”
O grande objectivo de Francisco é poder entrar em contacto, pelo menos telefónico, com Vladimir Putin. Para isso, precisaria da mediação do Patriarca ortodoxo de Moscovo, Kirill, que, desgraçadamente, se tem colocado ao lado de Putin.
Termino com parte da letra de uma canção, enviada por um amigo, intitulada: “Senhor Putin”.
“Sr. Putin, permita que lhe pergunte: afinal, quem é? Nasceu de pai e mãe? Tem coração que bate? Pensa? Sente? Já alguma vez sofreu? Já chorou? Como é possível sob o seu comando tanta gente perder a vida, perder a paz, ter de abandonar as suas casas, fugir das armas e tanques de guerra, tudo sob o seu comando? Como pode ver crianças a sofrer, a chorar assustadas, crianças mortas? Crianças a nascer em bunkers, mulheres a ver os seus maridos e filhos a morrer? Quem é afinal, Sr. Putin? Pense... Alguém lá acima, mas muito acima..., Esse, sim, a quem todo o poder pertence, Ele fará justiça e o Sr. Putin irá então encontrar-se consigo mesmo, dando conta da sua pequenez, ignorância, insignificância, frieza, crueldade e materialismo. A vida aqui tem um tempo limitado. Abra os olhos. Pare, Sr. Putin, pois esta guerra não é dos russos, é do Sr. Putin. Deus, sim, Ele é o Senhor de tudo.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 de março de 2022
No Evangelho, as três tentações de Jesus estão todas relacionadas com o poder. Antes de iniciar a sua vida pública, Jesus teve de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda via que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida, dar a vida para testemunhar a verdade e o amor. A verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação.
Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável, tem de haver instâncias de poder. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram de que Ministro, etimologicamente, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Por isso, Jesus disse aos discípulos, também ao Papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".
Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar, fazer crescer. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade, na realização plena de todos os seres humanos em todas as dimensões... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer, quando preserva e aumenta a dignidade humana... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos os que clamam por mais liberdade e dignidade...
Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.
A grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Mas então esqueceu e ignorou o Evangelho. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder".
A novidade do Deus cristão, revelado em Jesus, é que Ele é poderoso, infinitamente poderoso, mas o Seu poder não é de domínio, mas de criação: Força infinita de criar. Fez-nos livres, para estabelecer connosco uma aliança. Com todas as consequências...
Aí está a razão por que, quando se fala em Igreja, é difícil não se ser imediatamente confrontado com alguma situação de desconforto. De facto, a Igreja aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, não se percebendo muitas vezes se essas ordens e proibições querem realmente o bem das pessoas ou, se, pelo contrário, não são expressão disfarçada de interesses económicos e políticos, enfim, do poder...
Num primeiro momento, pelo menos, a Igreja surge como uma hiperorganização. Mas não deveria ser assim. De facto, a palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc., a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de "pertencente ao Senhor" (Kyrios) e, por extensão, "casa ou comunidade do Senhor". De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Cristo, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo, portanto, segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença era o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, até que Ele venha.
Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços. Significativamente, o Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diakonia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros dos Governos não esqueceram já que ministro é aquele que presta um serviço?).
Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o Papa, antes de ser Papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, precisamente como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que prestam serviços uns aos outros e a todos, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 11 de dezembro de 2021
O drama da queda do Império Romano sugere que a civilização não progride em linha reta e sempre em direção a mais prosperidade, lei, ordem, tecnologia, segurança, tolerância e unidade na diversidade.
O progresso linear e ascendente em linha reta não é um dado adquirido e permanente em termos civilizacionais.
A antiguidade greco-latina mostra-nos feitos incríveis alcançados por gregos e romanos que se perderam.
A imperatriz de Roma, Eudóxia, foi escravizada por um bárbaro, Genserico, líder de uma tribo germânica, os Vândalos.
Com a queda de Roma a Europa fragmenta-se e ficará dividida durante 1500 anos. Ficará fragmentada e habitada por bárbaros, para os romanos, em paralelo com os bárbaros que adjetivamos hoje de fundamentalistas e terroristas, tal como éramos e eram os germanos, gauleses, lusitanos, etc, no tempo dos romanos, para estes.
Com a desagregação do império romano, anglos e saxões vão para a Grã-Bretanha.
Francos, vão para a França atual, a que deram o nome.
Visigodos para a Península Ibérica.
Há vikings no norte da Europa.
Árabes no sul: Córdoba era uma cidade tolerante, de judeus, cristãos, muçulmanos, estimulando a ciência e as artes em geral, destoando da idade das trevas europeia e da imagem atual que temos, ocidentais, de várias sociedades árabes.
Aquando da primeira guerra mundial, falava-se em “grande guerra”, porque se acreditava ser a última (guerra), devido às luzes da tecnologia, da ciência positivista, segundo a qual as luzes derrotariam as trevas.
Há os que são coerentes quanto àquilo que defendem e fazem (moral da convicção) e os que dizem que os fins justificam os meios (moral da responsabilidade).
São Tomás de Aquino defendeu o tirocínio (morte do tirano), o que, na realidade, para muitos, é um ato terrorista.
A revolução contém estruturalmente terrorismo e violência.
Se é ganha, os ganhadores são heróis.
Se se perde, os perdedores são terroristas.
Quando se conquista ou ganha, deixa-se de ser mau /terrorista, para se ser bom/herói. Há a história dos vencedores e vencidos, conquistadores e perdedores, colonizadores e colonizados, a que a própria natureza, per si, também não é alheia.
Temos, por um lado, o princípio da igualdade, um direito individual e essencial do ser humano, que diz respeito a cada pessoa enquanto ente físico e espiritual.
Em matéria de dignidade e em direitos, não há seres humanos diferentes por natureza e em espécie.
Todos os seres humanos são iguais, razão pela qual têm o dever, intrínseco à sua própria condição, de respeitar e tratar os outros por igual, independentemente das suas diferenças físicas, psíquicas, religiosas, sociais ou outras que os separem.
Temos, por outro lado, o poder.
O poder é afrodisíaco, fazendo vir à superfície, se ilimitado ou não escrutinado, o que temos de pior.
Porque não há poder sem autoridade, sendo o exercício coativo de uma tutela sobre alguém.
Todavia, na prática e no nosso dia a dia, temos de aceitar que existam, por razões organizacionais, de bem-estar e de segurança, seres humanos que assumam e exerçam funções de autoridade e de orientação de outros.
Justifica-se, assim, que o princípio da igualdade se tem de afirmar como sendo um limite inequívoco ao exercício abusivo do poder ou com caraterísticas discriminatórias. Daqui decorre que é com este sentido de limitação do exercício do poder que também deve ser entendido o princípio da igualdade.
A fúria com que, em “Red River”, Montgomery Clift e John Wayne esmurram as ventas um do outro não é de esquerda nem de direita. Os murros deles não são políticos. Nem é político o rabo de Marilyn Monroe, que em curtas cenas de 20 segundos, desreprimiu o recalcado baixo-ventre do cinema, a cores em “Gentlemen Prefer Blondes” e a preto e branco em “Some Like It Hot”, por obra e graça do bom olho de Hawks e de Wilder.
Filmes, poemas, romances, pintura, mesmo a do comunista Picasso, não são políticos. Não me venham dizer que a poesia é anti-poder ou pró-poder. O poeta pode ser fascista ou comunista. Maiakovski ou o dúbio Aragon eram comunistas, Ezra Pound era fascista e T. S. Eliot talvez andasse lá perto; o pluralíssimo Pessoa, se alguma coisa fosse, era de direita, e o queixinhas Ginsberg uivava parvamente à realidade. Mas se ainda os lemos como poetas é porque a poesia deles continua a transfigurar a modesta realidade política que na vida os entretinha.
Camões cantou o Gama em “Os Lusíadas”, mas um só olho de Camões criou em dez cantos um herói que o real e cruel Vasco da Gama, ocupado com a canela e a pimenta, não reconheceria. Como não reconheceria o Gama que Robert De Niro teria sido se algum desmiolado estúdio americano tivesse decidido pagar a Samuel Fuller o filme com que o cineasta americano queria incensar o navegador português.
Poemas, filmes e romances seriam muito pequeninos se reduzidos à deslavada ideia de serem anti-poder. Nem há mal intrínseco em haver poder, afinal uma humaníssima e necessária realidade. E os males que escorram do exercício do poder são para se lavar na cama real da política. Mas as traições e as conspirações de Shakespeare, as bruxas de Macbeth e o fantasma de Hamlet, o arrebatado discurso de Marlon Brando com o cadáver de Júlio César aos seus pés, já são da matéria dos sonhos.
A beleza de poemas e filmes, de canções e pintura está na sua esplendorosa inutilidade. A grandeza das artes está na individualíssima convulsão que precisam de nos provocar se quiserem ser arte: uma convulsão íntima, vergonhosamente espiritual e libidinosa. Os nossos melhores cantores de intervenção, no PREC, quiseram servir uma forma dita utópica de poder. “E se eles ganharem?” perguntou um amigo meu a um desses cantautores, que era genuíno e grande. “Bom – disse ele –, temos de ser os primeiros a fugir.”
A Winchester de John Wayne, a voz e a guitarra da canção não são armas de serventia. Seja do poder, seja do antipoder.