Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UCRÂNIAS

  

 

Nunca perde o dia
Quem passou pelo ponto exato
Da vida


Nunca perde a liberdade
Quem a vive na mesma aldeia
De um tempo


A espera é longa
Presentes
As infinitudes de coragem
Em noites de sangue pastoso


Quando as agonias
São gente em morte
Que nos entra pelas órbitas
E nos açoita


Irmão:


Sou um pequeno cascalho
Mas ainda veículo


Ao teu lado
Aceita-me


Basta-me até tu


Minha maravilha

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

 

Iam os ventos muito grandes em demanda

Das coisas deste mundo e era dezembro

 

Apressem-se, apressem-se – ouvia-se

Tendes vós pouco tempo para o nascer encontrar

E só ele vos dará o favor do deus para os poemas

Favorecidos pelo sonho que sois

Mânticos e núbios à aproximação da luz

 

Diz o Ouvinte:

 

Concedo-vos argila e oleiro

Moldai a ideia nova e se faça ela tão perto

De tão perto e tão humana

Que não haja casa nem rua

 

Onde não penetre

 

E de onde

Se não invada

 

Mão.

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA


EXERCÍCIO

 

Vencida pela força do meu dano

Nadei no manso rio

Onde as ninfas de todos os desenganos

Nos chegam transparentes como as águas

Disse-lhes:

Não estou exausta, enquanto tiver vida

A minha força será sempre

Pedida

Pelo rigor do desvio do mundo

Pelo cioso fogo do dia

Em que vencida pela força do meu dano

Nade, pois, no manso rio

E de tanto me levedar

Desate assim a laçada estreita

Do código das águas de destino próspero

E sejam elas o banho da rosa encarnada

Na maravilha dos teus olhos

Amor

 

Teresa Bracinha Vieira

 

Obs. Reposição

À MARGEM DE ANTIGAS CARTAS


SÓ PERGUNTO AONDE VAIS?
 


Persigo sobre a areia só
   
e é fugaz e fugidia
a deste deserto   
nas vagas impressões
  
dos teus muito frágeis passos
 


São de outrora, de depois ou só
 
de porvir
   
conformes a tempos e modos
de sentir  
porém de ti sempre


Porque como teus só
  
os reconheço

ou talvez por mim
os adivinhe 
e me transformem


Já tanto de ti só
  
no coração de Deus existe
e eu estou fora ainda 
por pegadas de vento buscando

na saudade o teu caminho


   Quando um de nós se perde na demência, só num deserto estranho o outro o pode encontrar. Eis como a comunicação possível se torna monólogo e se inventa outra existência. Perdeu-se alguém, de tão brutal maneira que a própria ausência é impossível de se conceber. No fundo de mim, terei de criar uma presença nova e fazê-la comunicar, por um caminho do espírito que em si só, no seu mistério, guarda o seu segredo.


   Quem morreu, sabemos que não está aqui, imaginamo-lo algures ou nenhures, mas sem nunca o ver, e a sua própria incomunicabilidade pertence à ordem natural das coisas. Não lhe pertence. Tortura maior é, sim, procurar quem vemos mas não nos fala, tentar escutar no silêncio o bater de outro coração, desvendar num segredo inacessível essa presença amorosa qe Deus nos esconde. Porquê? Saberás tu responder-me, ouvir-me-ás perguntar-te aonde vais?


   Como escrevi, em carta com mais de sete anos, no passado domingo republicada pelo blogue do CNC, "o silêncio interroga o silêncio. E é mais sentida a ferida".

 

Camilo Maria     

 

Camilo Martins de Oliveira

POEMA


Eu tenho um anjo de água que me desfaz os poemas-dor

 

Este meu anjo de água reescreve-me as lágrimas

A contra-coração

 

E quando sou medo logo vou ao ponto onde o sei

 

E na torrente que sempre me propõe

 

As cores balsâmicas

São as forças

Que me ateiam

 

Vindas do meu anjo de água-esmeralda

Meu anjo impalpável

 

No horizonte-tempo

Que me torna nítida

 

No exato momento em que o poema

Age

 

Ou amar não fosse

Desde tão antigamente

 

Disseste, olhando-me

 

 

Teresa Bracinha Vieira

2020

 

Esgotado o barco
Deixa-se de costas para a noite

Não anseia a maré
E todos receiam que não navegue
Sob o terror de ser livre

O fumo preto
É sinal que se toldou

O seu corpo
Tem o formato de uma boca descalça
As roupas
Do exílio

Descompasso

A realidade terrena é um prazo
Que acaba  

 

 

Mas os meus olhos resgatarão os teus
Amor

Imagina-me como quem não existe
Unicamente para estar contigo

Meu eleito após o mundo

Ocasião
Ocasião

De nos salvarmos

Longe e aqui

 

 

Teresa Bracinha Vieira

PORQUE TE AMO

 

Se beijar o infinito

Loucura fosse

Nunca poderia dizer que tenho em mim

Quando te abraço

Toda a beleza que não vi criada

 

E ambos chamamos luz à luz

Como as crianças

 

E semeamos

Que diferente até o amor será

Na espera de já não sermos

Os vagabundos dos sonhos

 

Agora

Enlaçamo-nos

Nas horas que em nós

São a lida

Incansável

 

Asa transparente

Afinal

Aço

 

E

Se o vento mau te levar

Restarás comigo

 

Sempre                  

                  

 

Teresa Bracinha Vieira  

O VÍRUS

 

Sim
Está por todo o lado
Debaixo dos pés das pessoas
Nos bolsos dos automóveis
Nos refúgios do ar da velhice


Sim
É uma fúria dissecante
Às crianças afoga-lhes os céus
Cola-se aos mármores dos cemitérios
Dessegura as miragens


Sim
Delira na gargalhada
Que rasga as artes ao meio
E semeia-se
Num qualquer vento


Usando as metamorfoses 
Para assediar o medo
Que greta a vida
Mas não sabe


Que um livro fechado
Já se abriu de novo
Soltando as letras
Convocadas


E ao nosso tempo breve e débil
Ordenaram
Dias futuros
Razão por fim


Onde as minhas-nossas


Mãos


Rezam

 

Teresa Bracinha Vieira

SE SEI VIVER SÓ

 

Se sei viver só?

Quem sabe?

Nessa imagem revelada pelas montras

Passeia-se a rua interior

De mão dada com cada um

Ou não fossemos a primeira e última

Trincheira

Unida a outra e a mais outra

Corredores sem fim e labirínticos

Por entre as mensagens como flechas

Chegadas ao nosso, meu coração rebentado.

Se sei viver só?

Quem sabe?

Cada um compõe a alegria obrigando-se a voltar

Eu a ti e às tuas pálpebras regresso

Para que me ampares o terror experimentado

Na aberta realidade aquela que arboriza a solidão

Sem água

Rosa dos muros, cama das poeiras, orçamento que vela

O nada escrito no pleno dos vazios

Quando se renova a procura de nós

E a rota que turista se passeou à nossa janela

Quando o amor e só ele era o acreditar.

E de novo

Se sei viver só?

Quem sabe?

O parapeito é sempre cais

De onde os sonhos quantas vezes partem confundidos

Por histórias banais que nos ficam na memória

Entrada nela por navios e a ti neles regresso

E afinal a inocência é muita

E por ela a morte passa

Na preocupação de fechar segredos.

E eu quero tanto aquele morango, aquela cereja

Porque a minha obra, se o for tem um fundo vermelho

De sangue e flor futura e cega

E foi minha a andorinha e os xailes esgaçados de tão rotos.

Se sei viver só?

Quem sabe?

A semente é feita de carne humana

Poeta, não grites, não!

Poeta, não deixes fugir as pombas

Ou escuta os astros

E por lá deixa teus olhos

Definitivamente muito definitivamente.

E de todos

Ai anjo que de nós foge

E que me procura há quanto?

Pasmo, quebro-me e vou-me dando

Só paro em deltas

Abraçada ao teu olhar

Porque assim os oceanos

Embrulham-me num musgo, naquele mesmo que foi

Manta de alma enquanto vivi

Enquanto espreito

 

Se sei viver só? 

 

Teresa Bracinha Vieira

NINGUÉM É INOCENTE

 

Oriundos de El Salvador!
Oscar e Valéria unidos
Pelo corpo e pela alma e por uma camisola
Que a ambos abraçava

 

Assim chegaram às correntes bravas do rio
Que lhes permitiria a aproximação ao justo sonho
À vida que seria sorriso, ouro, prata e verde

 

El Salvador? Que escuridão?!
Deixa-nos
Que vamos voar!

 

Então as flores deram-se as mãos em perfeita robustez
Pois o voo estava a ser um pássaro que não parte

 

E chamou-se nomes à dor, ao branco, ao amarelo-torrado das águas
E em pranto desesperado, encalhado, no acesso ao salvador
Mordido, sangrado, não asa, desfizeram-se as forças

 

Pai e filha
Doces ramos, definitivamente partidos, destruídos
Por um mundo todo que está morto
Enquanto o sol tomba
Em espanto ilimitado

 

Por nos ver, a nós, tão instantâneos, tão sem destino, tão sem memória

 

Tão terminados.

 

Teresa Bracinha Vieira