Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POESIA

Minha metade lá, meu lá, meu cá 

  
    David hockney


1.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

porque não era este ser antes de ser

quase totalidade

que ao correr por tantas coisas

também as fui abandonando

para existir e ouvir

outros assombros


2.
 

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

que sobre terra e mar de minha vida

descobri as flores da oceania

percebi verdades

sem domínio

entendi falares, silêncios e muitas dores

na alegria das montanhas que se não inclinam

com o tempo

e que assim seja


3.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

grandeza que me torna diminuta

dentro de cada folha íntima da floresta inteira

muito além da minha pele

em ti

dedilhei o sol

e um medidor de chuva

às minhas lágrimas


4.
Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

os meus pés livres

em danças de partidas e regressos

em virações e desavisos

acordei

batucada em orações

que as nunca acreditei

sem medos


5.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

raízes fortes de onde eu vim de mim

licença de maternidade

tempo

que agora sou

e as ruas

cortejos de ilusões

fui esquecendo de esquecer

e acordei na minha porção

totalidade

metade lá, meu lá, meu cá

minha casa una entre uma curva e outra


Teresa Bracinha Vieira

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MIGUEL MANSO 

  


O tempo circular


há uma fotografia de ruy belo
e há também aquela praia muito ténue de “não há morte
nem princípio”

ou há uma fotografia do meu pai numa
beira-mar de moçambique

sentado com um outro que nunca soube
quem era, óculos escuros – a mocidade

– esse outro

o meu pai olhando o mar para lá do
fotógrafo como se o fotógrafo

e
agora
quem vê a fotografia segurando-a
com a mão vindoura

como se não existissem
não existíssemos mas que fosse minha
também

aquela praia onde ruy belo
ainda não usava barba e cabelo à ruy belo
à

allen ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)
tudo gente que habitou longamente
em algum momento uma praia

uma praia

que eu sei que há e que aconteceu
também quando eu morri

quando eu também fui jovem
e poeta numa fotografia ou num reflexo

de garrafa

a minha imagem
a beira de um verão segurando
desde o peito a vida


in Quando escreve descalça-se, 2008


Circular time


there’s a photograph of ruy belo
and there’s also that very faint beach of ‘there’s neither death
nor beginning’

or there’s a photograph of my father on
a mozambican seashore

sitting with some man I never
knew, sun glasses – youth

– this other person

my father looking at the sea beyond
the photographer as if the photographer

and
now
whoever looks at the photograph holding it
with a hand from the future

as if they didn’t exist
we didn’t exist but it would also be
mine

that beach where ruy belo
still didn’t sport a beard and hair styles à la ruy belo
à la

allen ginsberg (already bygone people
people yet to come)
people who have all inhabited at length
in some moment a beach

a beach

which I know exists and happened
also when I died

also when I was young
and a poet in a photograph or in a reflection

on a bottle

my image
on the verge of summer my breast
holding out life


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

POESIA

Quando no dia

o era

é

  


1.

Como era, como era?


Era como a passagem de uma brisa,

o pensamento ia sem norma,

tão leve, tão volúvel, tão impreciso como um sorriso


2.

Como era, como era?


O silêncio puro, o riso carmim, as essências molhadas

de laranjas

um nada muito cheio

enquanto os amigos nobres

nas mãos


3.

Como era, como era?


Quando a luz da tarde-oiro

no amor por entre os choupos

porque vivo, porque vivo

porque sei saber sentir

nas palavras por dizer

acesas


4.

Como era, como era?


A vida universal

um hálito da terra vestido de tristeza e de sorriso

Os pássaros vivendo em tudo

Os moinhos de vento, vagamente flores

e os comboios que não param


5.
 

Como era, como era?


Quando no dia

o era

é

por todas as razões

liberdade


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

  


1.
É manhã.


Desce o sol

como uma voz que chama o dia.

A vontade, o pássaro, o sonho, a sede, o farol,

as escadas insubmissas

tudo em nome de uma outra colheita, de uma outra raiz

que a vida vale a pena

que ela, nossa medida, nossa casa

não se adia

que a necessidade de abrigo

nos move a construir o habitável


2.

É manhã.


Não sei medida ou cálculo

para este céu total;

cor e hora únicas

e não, não está feita a minha palavra para dizer

tanto


3.

É manhã.


Com o ouvido no ar

escuto um segredo

de um anjo inicial e exato

e quanta tranquila degustação

ó sabor antes de mim

ó pão cheiroso

que não sou mais que este estar


4.

É manhã.


Tudo em teu redor – horizontes, terras, mares-

tudo transborda uma essência imensa, e, todavia,

solitária eu e do que sinto

me sorrio, como uma criança,

que se deixa lamber por ti

guardiã

da alma

só e vasta


5.

É manhã.


Não me importa que outros ames

ou que te amem, pois o que eu amo em ti,

tu não o sabes nem os outros o sabem,

nem eu sei que não sei,

mas em ti sou

e ficarei

se partires


Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

  

De 7 a 13 de abril de 2025


António Cícero (1945-2024) foi um poeta, compositor, pensador e escritor, com uma obra multifacetada que merece ser lido e pensado como representante da mais moderna capacidade criadora dos brasileiros e dos cultores da língua portuguesa.
 


O último número do ano de 2024, a “Revista Brasileira” da Academia Brasileira de Letras, dirigida por Rozisca Darcy de Oliveira, dedicou um importante conjunto de textos e de depoimentos à memória do académico recentemente falecido Antonio Cícero (1945-2024), compositor, poeta, filósofo e crítico literário, titular da cadeira 27. Como letrista celebrizou-se junto do grande público ao acompanhar com os seus poemas sua irmã Marina Lima bem como outros artistas como Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, João Bosco e Waly Salomão. Prestigiado investigador, coordenou na Universidade Federal Fluminense com Alex Varella Cursos de Estética e Teoria da Arte realizados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em colaboração com Waly Salomão, desenvolveu o Banco Nacional de Ideias, promovendo ciclos de conferências e discussões com artistas e intelectuais consagrados, como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, John Ashbery, Derek Walcott, Caetano Veloso, Richard Rorty, Tzventan Todorov, Hans Magnus Enzensberger, Peter Sloterdijk e Darcy Ribeiro.


Na antologia organizada por Italo Moriconi “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, o seu poema “Guardar” foi um dos escolhidos. E ao ouvirmo-lo, sentimos a força e a alma da sua palavra: “Guardar uma coisa  não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / Do que um pássaro sem voo. / Por isso se escreve, por isso, se diz, por isso se publica / por isso se declara e se declama um poema: / Para guardá-lo: / Para que ele, por sua vez, guarda o que guarda: / Guarde o que quer que guarda um poema: / Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar”. Merece referência especial a iniciativa em que participou com Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant da publicação de quatro CDs de homenagem a Carlos Drummond de Andrade (2002). Com José Saramago, Wim Wenders e Hermeto Pascoal participou no documentário “Janela da Alma” de João Jardim e Walter Carvalho. Em 2007 proferiu em Lisboa na Fundação Gulbenkian a conferência “Da atualidade do conceito de civilização”, no âmbito do encontro “O Estado do Mundo”, publicado em “A Urgência da Teoria”. Ainda em Lisboa, proferiu em 2008 a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa com o título “Fernando Pessoa – Poesia e Razão”, publicado em 2010. A Imprensa Nacional publicou “Guardar. A Cidade e os Livros. Porventura” (2020), uma reunião fundamental integrada na coleção Plural, com direção literária de Jorge Reis-Sá e o poeta teve participação relevante na Póvoa de Varzim nas Correntes de Escritas.


Pensador de uma fina inteligência aberta e livre, Antonio Cícero, ao tomar posse na Academia, afirmou:: “O cânone literário positivo, sendo produzido por uma sociedade aberta, é, ele próprio, aberto, expansivo, sempre sujeito a questionamentos, discussões e modificações. Convém ressaltar  que o reconhecimento de um cânone  não é absolutamente incompatível com a valorização da inovação na literatura. Assim, os movimentos de vanguarda não eram necessariamente contra o cânone. (…) Penso que a importância do cânone está, em primeiro lugar, no facto de que é através dele que sabemos o que é a literatura e o que é a boa literatura.. Não é através de nenhuma definição que sabemos o que é poesia, mas sim através da leitura de poemas e, em primeiro lugar, de poemas que têm sido considerados bons, modelares, clássicos, canónicos pela sociedade aberta de poetas, escritores, teóricos da literatura, críticos, professores, jornalistas, leitores etc.”. Ao longo das páginas dedicadas ao poeta homenageado, sentimos um percurso de rara coerência, bem demonstrada até ao seu último gesto. Simbolicamente, para além do dossiê de homenagem e dos diversos textos que o compõem, há uma página que estava destinada ao texto do poeta, que de algum modo, adivinhamos, relendo o que nos deixou. Como diz Rosiska Darcy de Oliveira: “Exercendo a sua última liberdade, ele escolheu colocar o ponto-final em sua história. Na sua ausência essa página em branco ilustra o vazio que ele deixou”.


Ilustrando a importância da vitalidade da cultura, o académico António Carlos Secchin, a propósito da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstra como os caminhos da criação são insondáveis dando, afinal, razão a António Cícero sobre a importância da sociedade aberta e das suas diferenças. E fala-nos paradoxalmente de “Os Sapos” de Manuel Bandeira como possível símbolo dessa célebre Semana (de que não participou), quando o poema de Carlos Drummond “No meio do caminho” seria porventura mais coerentemente “hino” da Semana…Mas a mitologia desenvolveu-se de outro modo. “O Olimpo em Chamas”, eis as repercussões de uma sessão académica agitada pelas polémicas sobre a Semana modernista, com troca de argumentos corrosivos e a saída de Graça Aranha em ombros, em rutura anunciada com a Academia… Contudo, por momentos, a sessão modernista da ABL cairia no olvido. Mas ocorreu a seguir um volte-face. «Ainda assim, a despeito de tudo isso (diz A.C. Secchin), a Semana de Arte Moderna se consolidou miticamente como o maior acontecimento da história brasileira. Se Oswald de Andrade fosse vivo e eu lhe indagasse por quê, ele, irreverente, talvez respondesse: ‘Ora, você não conhece a profunda verdade de um verso paradoxal de Fernando Pessoa? O  mito é o nada que é tudo’».


A “Revista Brasileira” está cheia de motivos de interesse como o importante ensaio de Lília Schwarcz  sobre Amália Augusta de Lima Barreto, exemplo das estratégias conhecidas de certas famílias afro-brasileiras para ganharem a liberdade jurídica e conquistarem o reconhecimento social pelo acesso à educação. Por fim, a recensão da obra de Edgar Morin, “De Guerra em Guerra – de 1940 à Ucrânia”, permite-nos ouvir o centenário sócio correspondente da Academia dizer-nos: “A certeza de políticos e economistas de que o neoliberalismo seria produtor de um crescimento continuo era ilusória; a pandemia mundial, que provocou uma crise planetária gigantesca e multidimensional, foi mal compreendida pelo pensamento reinante, mecanicista e linear, que se mostra incapaz de conceber a complexidade dos fenómenos. Enquanto nos felicitamos por ter conseguido chegar à sociedade do conhecimento, estamos mergulhados numa cegueira que, quanto mais acredita possuir os meios adequados do saber, mais aumenta”…    


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MIGUEL CARDOSO  

  


Canções para voz e lâmina,
ou Diálogos com Sophia I

O canto que corta a garganta

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

I

Ensina-me a revirar a língua.
Mas não tão subitamente.

Preciso destas poeiras e ventos
(e não só para que me arranhem)

Ensina-me o vagar da língua
que não estranha as estranhas ranhuras
da saliva ou o assobiar do respirar
nos contornos murmurados
do cinzento, a inclemência
dos objectos lisos nas escuras câmaras
da minha lucidez. Sôfregas,
mundanas.
O incalculável, sobretudo.
A ressaca de estar tão rente
ao presente, de ter as têmporas tão
enroscadas em mim.

Ou lá o que é isto.

Ensina-me o canto que verga
incomodamente a excitação da língua.
O que é certamente uma maneira
de apressar a reticência do futuro.

Ensina-me esse mastigar
só com a sua ondulação de músculo
e porventura a refinar
o cuspo azedo que fabrico.

São ensaios.
Para ir treinando a urgência.

Guardarei os dentes para outras tarefas,
Outros verbos, sentidos menos restritos.

Ensina-me uma língua
Que arranhe.
É só isso.

Como cambalhotas no asfalto:
Felizes, ainda que necessárias.

Mais: que arranhe o próprio arranhar.

Uma língua
como a falam os homens
mesmo que nem sempre o saibam
(Que eu o saiba e o não saiba
Ao mesmo tempo)

Como a cospem
Os que vezes sem conta cuspiram
o belo, porque era levemente implacável.
Como aqueles a quem foi ensinado
que as horas que assim
suaves batem as certezas
nos agarram a este solo
e que essa é a única canção.
Todos eles têm outro obscuro
Canto a assobiar entredentes.
Consoantes cerradas
de embaraçada dor e vogais
tenazes no seu indistinto ressoar.

A voz em esforço
Pois passa esfolada e indecisa
Um pouco pelas frinchas do necessário
– A ele voltamos sempre
Ao espreitar pelas nesgas da raiva.

Dizem-me que a língua
pertence ao obscuro e húmido.
Ou vice-versa.
Que os poetas portanto a têm
Particularmente retorcida
E golpejada pelas sombras.

Mas não é isso:
Que se foda a língua dos poetas.
As suas pregas dão-se mal com o meio-dia.
Eu dou-me mal com estes dias
Mas insisto em lhes lamber o pó.

Ensina-me a lamber o pó
de outra maneira.

Quero a língua de todos
Os aflitos, as espirais toscas
Da lâmina desvairada que é o mundo.

Areja-a ao sol,
Contorce-a sob a luz
Desatina-a para que encontre
a fala desencontrada.
O torcer esforçado
que se esgueira pelos lugares
que nos deu este tempo.

Ensina-me a dobrar a dor
A estirar o corpo e o embaraço
Dos gestos quase possíveis
Nesta língua, neste prenúncio
zumbido de quase futuros.

Ensina-me, musa, a música impraticável

II

Já não procuro a causa
Primeira – a causa sem causa
– em explosões ou soluços da matéria.
Presumo a estúpida necessidade
Do início e a contingência
Necessária da desordem.
Presumo os fins com um arreganhar
que reconheço também nos outros.
Assumo com eles os vacilantes meios.

Vamos onde nos levarem
As ligeiras tremuras
que nos inclinam.

Aquilo a que vamos chamando o futuro.

Ensina-me a ofegante pancada

que nos enrosca a língua.

Canta-me o que nos corta

a doçura da respiração.

Aquilo por que vamos chamando
E a que alguns chamaram o canto.

Talvez erradamente.
Mas que se comece pelo erro
E que se levem os seus nós
até às nossas ferozes
e possíveis conclusões.

Que se estilhaçem as granadas
nas pregas da garganta.

Com dentes, unhas, o hálito
ainda vivo de tanta poeira
e rouquidão. Evidência da dúvida.
Tudo o que houver de mais lascado.
Nós, a cólera latente, os punhais
Empoeirados de revoltas de outrora.

Até o presente.

Onde começar senão
Onde nos levarem
as suas ligeiras inclinações.

As minhas têmporas vão sobrevivendo
A sucessivos necessários massacres do ego.

O presente.
As suas leves declinações.
As suas certezas, impurezas,
os seus vagos messianismos
As suas claridades, oclusões,
os seus espessos ritmos.

O óbvio é o lugar onde as coisas já não são
Senão o recitar mal disfarçado da espera.

Vivos, ou coisa assim.

Sim, vivemos de poeiras.
Brutos, abruptos.
Entre a língua apavorada e a têmpora nebulosa.
Mas vivos, ainda assim.

Alguém falou das impurezas necessárias.

III

Será canto o que assim
me acorda quase vivo nas pontas
tão tenras que nem sei
se de dedos ou densas
ferozes fixas
ideias que entretive enquanto
assim me respirava me respirava
e merrespirava
uma e outra vez.
O que assim me comove
e me arranha.

Respirei porque o sopro traz
os ganchos onde prendo
à pressa o canto.

Assim. O que. As pancadas do rumor.
O que o que O canto O que assim
Me fez instrumento de intácteis cordas?

Habitua-te. E desenreda-te como podes.

Ouvi uma vez desfazer-se uma voz.
O que do outro lado me
lançou na sombra?

Há outros sons, ventos e exercícios
Para que tremam as cordas do silêncio,
do centro e dos extremos implícitos.

Sinto ainda o fio que dos ganchos
Do ar nos conduz às preces.

Nem êxtase nem furor
nem devastação, nem nada.
Compõe ainda assim
como se houvesse.

Que o vento acorde o obscuro
e imperfeito rumor com pinças
precárias. Disse.

Que acordes
tu. Disse.
As manhãs ferozes e oblíquas,
o futuro

em acordes
de tumulto e ira e limpidez.

Isso sim, o novelo que me interessa.
A boca que esqueceu o canto
Mas não a agonia que o sibila.
A musa que se esqueceu de mim
Mas não largou o que será um dia
a minha outra vez adiada lucidez.
O verbo que empurra por dentro
as paredes do ruído.
Se houvesse dentro.
Se não houvesse apenas o vento
E os mecanismos do incerto.
Afinal o canto.

Eis outra explicação para a minha timidez.

Qual o canto mais agreste
(pois há que achar o tom)

Que não sejam em vão
os sons e os sucessivos versos
onde caem.

É assim que ouço
o que mal distingo
E fabrico o que tão pouco
entendo
Assim que a pouco e pouco o mundo.

Que o confuso seja
apenas princípio
Que o olho seja
embalo além do vago
Que o braço seja
o que faz nosso
o solo, que a voz
vá servindo de luz
e de compasso.

Preces humildes, eu sei,
e incertas: apenas o que
aos sons me prende e o que
no teu nome sussurrado
me lança.

Ensina-me a espreitar o ranger da nuca.

Ensina-me tudo o que fôr mais que isto.


in Que se diga que vi como a faca corta, 2010


Songs for voice and blade,
or Dialogues with Sophia I

The song that cuts the throat

Muse teach me the song
that cuts my throat

I

Teach me to twist the tongue.
But not so suddenly.

I need this dust and wind
(and not only to be scratched)

Teach me the leisure of the tongue
which is no stranger to the strange saliva
slits or the breath whistle
in the whispered curves
of greyness, to the severity
of flat objects in the dark chambers
of my lucidity. Eager,
mundane.
The incalculable, mostly.
The hangover after being so close
to the present, after having my temples
so inward looking.

Or whatever this might be.

Teach me the song that uncomfortably
bends the tongue’s excitement.
A sure way to hasten
the reticence of what is to come.

Teach me this chewing
this muscle-waving
and eventually refine
the bitter spit I generate.

Rehearsals.
For training the urgency.

I’ll save my teeth for other tasks,
Other verbs, less narrow meanings.

Teach me a language
That scratches.
That’s all.

Like somersaults on the tarmac:
Jolly, although necessary.

Even more: that scratches the scratch itself.

A language
as that which is spoken by man
sometimes unknowingly
(My knowing and not knowing it
simultaneously)

Teach me how a language is spat
By those who countless times have
spat out beauty, because it was faintly implacable.
Just as those who’ve been taught
that the hours which thus
softly strike certainties
tie us to this soil
and that this is the only song.
All of them who whistle with pursed
lips have another obscure song.
Consonants tightened
by a knotted grief and by tenacious
vowels in their indistinct resounding.

An effortful voice
For it comes raw and indecisive
Through the cracks of what’s necessary
– We always come back to it
As we peer through the slits of anger.

I am told that language
belongs to murkiness and dampness.
Or the other way round.
That the poets own
Particularly twisted ones,
Slashed by shadows.

But that’s not it:
Fuck the poets’ tongues.
Its pleats don’t agree with midday.
These days disagree with me
But I insist in licking up their dust.

Teach me to lick up the dust
in another way.

I want the language of all
The afflicted, the clumsy spirals
Of the frantic blade which the world is.

Airy the language in the sun
Twist it under the light
Unhinge it so that it finds
its mismatching speech.
The contrived wriggling
sneaking off through the places
these times have imposed on us.

Teach me how to bend pain
To draw out the body and the embarrassment
Of almost possible gestures
In this language, this buzzed
foretelling of quasi futures.

Teach me, muse, unworkable music

II

I no longer search for the cause
The first – the cause without a cause
– in explosions or sobbing of matter.
I presume the stupid need
For the beginning and the necessary
Contingency for disorder.
I presume purpose with a grimace
I also recognise in others.
With them I assume the wavering means.

We go where the faint
Tremors that humble us
will lead.

That which we still call the future.

Teach me the gasping blow

that twists our tongue.

Sing to me that which holds

the sweetness of breathing.

That which we still call for
And some called the song.

Perhaps mistakenly
But let’s start with error
And let’s take its knots
to our fierce
and possible conclusions.

Let grenades burst
where the throat folds.

With tooth and nail, the breath
still alive of so much dust
and hoarseness. The evidence of the doubt.
All there is which is most splintered.
We, the latent rage that we are,
the daggers soiled with revolts of yore.

Up to the present.

Where to begin except
where its slight leanings
may take us?

My temples go on surviving
The consecutive and necessary massacres of my ego.

The present.
Its gentle tendencies.
Its certainties, its impurities,
its vague messianisms
Its clarities, its closures,
its heavy rhythms.

The obvious is the spot where things are nothing
but the ill disguised ramblings of our waiting.

We are alive, or something like it.

That’s right, we live of dusts.
Brute, abrupt.
Between the terrified tongue and the nebulous temple.
But, nevertheless, alive.

Someone mentioned the necessary impurities.

III

Is it song that
which awakens me to almost life
on the tips so tender that I don’t even know
whether they’re tips of fingers or of dense
fierce fixed
ideas I entertained
while I thus breathed myself in, breathed myself in
and breathedmyselfin
again and again.
That which thus moves me
and scratches me.

I breathed in because breathing out brings
the hooks where in haste
I hang the song.

As it is. What it is. The murmur’s beat.
That Which the song Which thus
made me an instrument with untouchable chords?

Get used to it. And extricate yourself at your peril.

Once I heard a voice being undone.
What has from the other side
thrown me into the shadow?

There are other sounds, winds, exercises
So that chords shudder in silence,
implicit in centres and ends.

I still feel the thread that leads us
from the suspended nails to the prayers.

Neither ecstasy nor furore
or devastation, or anything at all.
Compose, though,
as if they all existed.

Let the wind awake with precarious
tongs the obscure and imperfect
murmur. I spoke.

Let you
wake up. I spoke.
The fierce, oblique mornings,
the future

in chords
of turmoil, anger and clarity.

That is the tangle that interests me.
The mouth that forgot the song
But not the agony that hisses it.
The muse that has forsaken me
But hasn’t abandoned that which will
one day be my deferred lucidity.
The word that pushes the wall
of noise from the inside.

If there were an inside.
If there weren’t only the wind
And the mechanisms of uncertainty.
The song, after all.

Here’s another explanation for my shyness.

Like the wildest song
(for the tone has to be found)

Let them not be in vain,
the sounds and the subsequent verse
wherever they fall.

This is how I hear
what I scarcely perceive
How I fabricate what I scarcely
comprehend
This is how, bit by bit, the world.

Let confusion be
only the beginning
The eye be
the momentum beyond vagueness
The arm be
that which makes the soil
our own, the voice
be like light
and campus.

Humbles prayers, I know,
and uncertain: just that
which ties me to the sounds and that
which your whispered name
throws at me.

Teach to peer into the creaking of my nape.

Teach me all that is more than this.


© Translated by Ana Hudson, 2012
in Poems from the Portuguese

 

POESIA

Chiu

  


Vai correr tudo bem

Lá fora tantas asas e luzes e vozes que são parte de um todo que se não vê, e chiu, chiu e chiu, um calmo chiu

pois que agora que nos dói braços, estomago, coração e que nos falta o ar

então, como dizia a minha mãe, abre os olhos e olha para eles

abre os olhos e olha para eles

chamo-te Lia, é um nome bonito, sim, acaba de ocupar o lugar de hoje na vida, dizes

Lia é um nome de quem está de esperanças, mas muito pertinho de dar à luz mesmo quando ainda falta uma boa distância, está perto, pertinho, sempre perto

Tu dizes sim com a cabeça e chiu, chiu e chiu, um calmo chiu

Que a Lia assegura que bem sabe do seu cansaço, mas não conseguirá adormecer nunca e eu simplesmente ali, como se não tivesse ouvido nada do chiu que vi nos meus olhos quando para eles olhei, nem do chiu que grita tudo, nem do que me sorri e afaga com dedos muito longos como só a Lia tem e está na hora

Tenho a certeza disso

não há que duvidar da luz, a luz é sempre jovem e se o tempo estiver especialmente mau ela é manhã todo o dia e toda a noite, foi sempre assim desde que me lembro

Ainda temos teto e filhos e sonhos e verdades, penso

Pois penso, penso e cuido, e agora é altura de ir como fomos ao longo dos tempos

Olho pela fresta da janela e tu enches a cafeteira e logo a pousas no fogão, na verdade não podemos contar do chiu, chiu e chiu, um calmo chiu

a ninguém?

É que para ser sincera até me sinto mais segura em mim, do que nunca alguma vez, é como se me recitassem todas as orações do que foi e é o meu não poder ser diferente,

e julgo que uma pessoa também deve de cantar, nem bem nem mal

Cantar

Chiu e chiu, um calmo chiu que todos ouvem


Teresa Bracinha Vieira

POESIA

FELICIDADE 

  


Mais digo, sim

que as lágrimas eram e porque foram e são uma alegria a assomar-nos aos olhos nessa forma líquida e deles se soltaram e soltam para uma malga que fizemos da matéria do coração para nos darmos a beber quando na cama limpa os corpos nus

Isso foi certo, era certo e é certo o nome dessa realidade

E foi assim ontem e em todos os dias anteriores e hoje

o pulso do poema continua à janela e nós reconhecemo-nos

muito azuis naquela estrela-do-mar que veio ao mundo abrindo imensamente

as mãos até ao ponto mais longínquo,

depois, entrando em casa sim, entrando em casa ávida

como nós

Sim, foi isso mesmo e a partir daí e até quando

começámos a ler os livros abertos sobre o mar redondo

quando juntos nesta multidão minúscula

o puro tempo se calou


Teresa Bracinha Vieira

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA TERESA HORTA 

  


Ponto de honra


Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço

Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino

Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço

Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho

Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto

Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato

Escrevo
e cuspo na fogueira


in Inquietude, 2006


Point of honour


I unsettle all passion
open space in my arms
insubordinate love
disobey and untie

I wrong-foot my boundaries
I light fires all the time
I set forth the feminine
I take I tear I cross lines

I contradict my fate
speak what I do not hear

I avoid what I was taught
I invent I change I dispose
I refuse my inside-out
killing all that I may dream

I jump over the impossible
I fly wherever I please

I’m a witch
I’m a sorcerer
I’m an unravelling poet

I write
and spit on the flames


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA  

  


Lê, são estes…


Lê, são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:

livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,

uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por

todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,

eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros.


in Poesia Reunida, 2012


Read this…


Read this, these are the names of the things you
left – me, books, your smell filling
the room; half the dreams and twice
the pain, kisses all over my body
like deep cuts which will
never heal; and more books, loss,
the key of a house that was never
ours, a blue flannel dressing gown
I’m wearing as I write this list:

books, laughter I can’t put away,
and rage – a pot of orchids you loved
so much without my knowing why and I
haven’t watered since; and
books, the bed unmade for so long,

a letter on your pillow and so much
sorrow, so much loneliness; and in a drawer
two tickets for a romantic film you
didn’t watch with me, and more books, and also
a discoloured old shirt I wear for sleeping
to be close to you; and every-

where, books, so many books, so many
words you never said before the letter
you wrote that morning, and me,

me still believing you’ll be back, you will
be back, if even only for your books.


© Translated by Ana Hudson with Gabriel Gbadamosi, 2012
in Poems from the Portuguese