Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
António Cícero (1945-2024) foi um poeta, compositor, pensador e escritor, com uma obra multifacetada que merece ser lido e pensado como representante da mais moderna capacidade criadora dos brasileiros e dos cultores da língua portuguesa.
O último número do ano de 2024, a “Revista Brasileira” da Academia Brasileira de Letras, dirigida por Rozisca Darcy de Oliveira, dedicou um importante conjunto de textos e de depoimentos à memória do académico recentemente falecido Antonio Cícero (1945-2024), compositor, poeta, filósofo e crítico literário, titular da cadeira 27. Como letrista celebrizou-se junto do grande público ao acompanhar com os seus poemas sua irmã Marina Lima bem como outros artistas como Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, João Bosco e Waly Salomão. Prestigiado investigador, coordenou na Universidade Federal Fluminense com Alex Varella Cursos de Estética e Teoria da Arte realizados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em colaboração com Waly Salomão, desenvolveu o Banco Nacional de Ideias, promovendo ciclos de conferências e discussões com artistas e intelectuais consagrados, como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, John Ashbery, Derek Walcott, Caetano Veloso, Richard Rorty, Tzventan Todorov, Hans Magnus Enzensberger, Peter Sloterdijk e Darcy Ribeiro.
Na antologia organizada por Italo Moriconi “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, o seu poema “Guardar” foi um dos escolhidos. E ao ouvirmo-lo, sentimos a força e a alma da sua palavra: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / Do que um pássaro sem voo. / Por isso se escreve, por isso, se diz, por isso se publica / por isso se declara e se declama um poema: / Para guardá-lo: / Para que ele, por sua vez, guarda o que guarda: / Guarde o que quer que guarda um poema: / Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar”. Merece referência especial a iniciativa em que participou com Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant da publicação de quatro CDs de homenagem a Carlos Drummond de Andrade (2002). Com José Saramago, Wim Wenders e Hermeto Pascoal participou no documentário “Janela da Alma” de João Jardim e Walter Carvalho. Em 2007 proferiu em Lisboa na Fundação Gulbenkian a conferência “Da atualidade do conceito de civilização”, no âmbito do encontro “O Estado do Mundo”, publicado em “A Urgência da Teoria”. Ainda em Lisboa, proferiu em 2008 a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa com o título “Fernando Pessoa – Poesia e Razão”, publicado em 2010. A Imprensa Nacional publicou “Guardar. A Cidade e os Livros. Porventura” (2020), uma reunião fundamental integrada na coleção Plural, com direção literária de Jorge Reis-Sá e o poeta teve participação relevante na Póvoa de Varzim nas Correntes de Escritas.
Pensador de uma fina inteligência aberta e livre, Antonio Cícero, ao tomar posse na Academia, afirmou:: “O cânone literário positivo, sendo produzido por uma sociedade aberta, é, ele próprio, aberto, expansivo, sempre sujeito a questionamentos, discussões e modificações. Convém ressaltar que o reconhecimento de um cânone não é absolutamente incompatível com a valorização da inovação na literatura. Assim, os movimentos de vanguarda não eram necessariamente contra o cânone. (…) Penso que a importância do cânone está, em primeiro lugar, no facto de que é através dele que sabemos o que é a literatura e o que é a boa literatura.. Não é através de nenhuma definição que sabemos o que é poesia, mas sim através da leitura de poemas e, em primeiro lugar, de poemas que têm sido considerados bons, modelares, clássicos, canónicos pela sociedade aberta de poetas, escritores, teóricos da literatura, críticos, professores, jornalistas, leitores etc.”. Ao longo das páginas dedicadas ao poeta homenageado, sentimos um percurso de rara coerência, bem demonstrada até ao seu último gesto. Simbolicamente, para além do dossiê de homenagem e dos diversos textos que o compõem, há uma página que estava destinada ao texto do poeta, que de algum modo, adivinhamos, relendo o que nos deixou. Como diz Rosiska Darcy de Oliveira: “Exercendo a sua última liberdade, ele escolheu colocar o ponto-final em sua história. Na sua ausência essa página em branco ilustra o vazio que ele deixou”.
Ilustrando a importância da vitalidade da cultura, o académico António Carlos Secchin, a propósito da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstra como os caminhos da criação são insondáveis dando, afinal, razão a António Cícero sobre a importância da sociedade aberta e das suas diferenças. E fala-nos paradoxalmente de “Os Sapos” de Manuel Bandeira como possível símbolo dessa célebre Semana (de que não participou), quando o poema de Carlos Drummond “No meio do caminho” seria porventura mais coerentemente “hino” da Semana…Mas a mitologia desenvolveu-se de outro modo. “O Olimpo em Chamas”, eis as repercussões de uma sessão académica agitada pelas polémicas sobre a Semana modernista, com troca de argumentos corrosivos e a saída de Graça Aranha em ombros, em rutura anunciada com a Academia… Contudo, por momentos, a sessão modernista da ABL cairia no olvido. Mas ocorreu a seguir um volte-face. «Ainda assim, a despeito de tudo isso (diz A.C. Secchin), a Semana de Arte Moderna se consolidou miticamente como o maior acontecimento da história brasileira. Se Oswald de Andrade fosse vivo e eu lhe indagasse por quê, ele, irreverente, talvez respondesse: ‘Ora, você não conhece a profunda verdade de um verso paradoxal de Fernando Pessoa? O mito é o nada que é tudo’».
A “Revista Brasileira” está cheia de motivos de interesse como o importante ensaio de Lília Schwarcz sobre Amália Augusta de Lima Barreto, exemplo das estratégias conhecidas de certas famílias afro-brasileiras para ganharem a liberdade jurídica e conquistarem o reconhecimento social pelo acesso à educação. Por fim, a recensão da obra de Edgar Morin, “De Guerra em Guerra – de 1940 à Ucrânia”, permite-nos ouvir o centenário sócio correspondente da Academia dizer-nos: “A certeza de políticos e economistas de que o neoliberalismo seria produtor de um crescimento continuo era ilusória; a pandemia mundial, que provocou uma crise planetária gigantesca e multidimensional, foi mal compreendida pelo pensamento reinante, mecanicista e linear, que se mostra incapaz de conceber a complexidade dos fenómenos. Enquanto nos felicitamos por ter conseguido chegar à sociedade do conhecimento, estamos mergulhados numa cegueira que, quanto mais acredita possuir os meios adequados do saber, mais aumenta”…
Canções para voz e lâmina, ou Diálogos com Sophia I
O canto que corta a garganta
Musa ensina-me o canto Que me corta a garganta
I
Ensina-me a revirar a língua. Mas não tão subitamente.
Preciso destas poeiras e ventos (e não só para que me arranhem)
Ensina-me o vagar da língua que não estranha as estranhas ranhuras da saliva ou o assobiar do respirar nos contornos murmurados do cinzento, a inclemência dos objectos lisos nas escuras câmaras da minha lucidez. Sôfregas, mundanas. O incalculável, sobretudo. A ressaca de estar tão rente ao presente, de ter as têmporas tão enroscadas em mim.
Ou lá o que é isto.
Ensina-me o canto que verga incomodamente a excitação da língua. O que é certamente uma maneira de apressar a reticência do futuro.
Ensina-me esse mastigar só com a sua ondulação de músculo e porventura a refinar o cuspo azedo que fabrico.
São ensaios. Para ir treinando a urgência.
Guardarei os dentes para outras tarefas, Outros verbos, sentidos menos restritos.
Ensina-me uma língua Que arranhe. É só isso.
Como cambalhotas no asfalto: Felizes, ainda que necessárias.
Mais: que arranhe o próprio arranhar.
Uma língua como a falam os homens mesmo que nem sempre o saibam (Que eu o saiba e o não saiba Ao mesmo tempo)
Como a cospem Os que vezes sem conta cuspiram o belo, porque era levemente implacável. Como aqueles a quem foi ensinado que as horas que assim suaves batem as certezas nos agarram a este solo e que essa é a única canção. Todos eles têm outro obscuro Canto a assobiar entredentes. Consoantes cerradas de embaraçada dor e vogais tenazes no seu indistinto ressoar.
A voz em esforço Pois passa esfolada e indecisa Um pouco pelas frinchas do necessário – A ele voltamos sempre Ao espreitar pelas nesgas da raiva.
Dizem-me que a língua pertence ao obscuro e húmido. Ou vice-versa. Que os poetas portanto a têm Particularmente retorcida E golpejada pelas sombras.
Mas não é isso: Que se foda a língua dos poetas. As suas pregas dão-se mal com o meio-dia. Eu dou-me mal com estes dias Mas insisto em lhes lamber o pó.
Ensina-me a lamber o pó de outra maneira.
Quero a língua de todos Os aflitos, as espirais toscas Da lâmina desvairada que é o mundo.
Areja-a ao sol, Contorce-a sob a luz Desatina-a para que encontre a fala desencontrada. O torcer esforçado que se esgueira pelos lugares que nos deu este tempo.
Ensina-me a dobrar a dor A estirar o corpo e o embaraço Dos gestos quase possíveis Nesta língua, neste prenúncio zumbido de quase futuros.
Ensina-me, musa, a música impraticável
II
Já não procuro a causa Primeira – a causa sem causa – em explosões ou soluços da matéria. Presumo a estúpida necessidade Do início e a contingência Necessária da desordem. Presumo os fins com um arreganhar que reconheço também nos outros. Assumo com eles os vacilantes meios.
Vamos onde nos levarem As ligeiras tremuras que nos inclinam.
Aquilo a que vamos chamando o futuro.
Ensina-me a ofegante pancada
que nos enrosca a língua.
Canta-me o que nos corta
a doçura da respiração.
Aquilo por que vamos chamando E a que alguns chamaram o canto.
Talvez erradamente. Mas que se comece pelo erro E que se levem os seus nós até às nossas ferozes e possíveis conclusões.
Que se estilhaçem as granadas nas pregas da garganta.
Com dentes, unhas, o hálito ainda vivo de tanta poeira e rouquidão. Evidência da dúvida. Tudo o que houver de mais lascado. Nós, a cólera latente, os punhais Empoeirados de revoltas de outrora.
Até o presente.
Onde começar senão Onde nos levarem as suas ligeiras inclinações.
As minhas têmporas vão sobrevivendo A sucessivos necessários massacres do ego.
O presente. As suas leves declinações. As suas certezas, impurezas, os seus vagos messianismos As suas claridades, oclusões, os seus espessos ritmos.
O óbvio é o lugar onde as coisas já não são Senão o recitar mal disfarçado da espera.
Vivos, ou coisa assim.
Sim, vivemos de poeiras. Brutos, abruptos. Entre a língua apavorada e a têmpora nebulosa. Mas vivos, ainda assim.
Alguém falou das impurezas necessárias.
III
Será canto o que assim me acorda quase vivo nas pontas tão tenras que nem sei se de dedos ou densas ferozes fixas ideias que entretive enquanto assim me respirava me respirava e merrespirava uma e outra vez. O que assim me comove e me arranha.
Respirei porque o sopro traz os ganchos onde prendo à pressa o canto.
Assim. O que. As pancadas do rumor. O que o que O canto O que assim Me fez instrumento de intácteis cordas?
Habitua-te. E desenreda-te como podes.
Ouvi uma vez desfazer-se uma voz. O que do outro lado me lançou na sombra?
Há outros sons, ventos e exercícios Para que tremam as cordas do silêncio, do centro e dos extremos implícitos.
Sinto ainda o fio que dos ganchos Do ar nos conduz às preces.
Nem êxtase nem furor nem devastação, nem nada. Compõe ainda assim como se houvesse.
Que o vento acorde o obscuro e imperfeito rumor com pinças precárias. Disse.
Que acordes tu. Disse. As manhãs ferozes e oblíquas, o futuro
em acordes de tumulto e ira e limpidez.
Isso sim, o novelo que me interessa. A boca que esqueceu o canto Mas não a agonia que o sibila. A musa que se esqueceu de mim Mas não largou o que será um dia a minha outra vez adiada lucidez. O verbo que empurra por dentro as paredes do ruído. Se houvesse dentro. Se não houvesse apenas o vento E os mecanismos do incerto. Afinal o canto.
Eis outra explicação para a minha timidez.
Qual o canto mais agreste (pois há que achar o tom)
Que não sejam em vão os sons e os sucessivos versos onde caem.
É assim que ouço o que mal distingo E fabrico o que tão pouco entendo Assim que a pouco e pouco o mundo.
Que o confuso seja apenas princípio Que o olho seja embalo além do vago Que o braço seja o que faz nosso o solo, que a voz vá servindo de luz e de compasso.
Preces humildes, eu sei, e incertas: apenas o que aos sons me prende e o que no teu nome sussurrado me lança.
Ensina-me a espreitar o ranger da nuca.
Ensina-me tudo o que fôr mais que isto.
in Que se diga que vi como a faca corta, 2010
Songs for voice and blade, or Dialogues with Sophia I
The song that cuts the throat
Muse teach me the song that cuts my throat
I
Teach me to twist the tongue. But not so suddenly.
I need this dust and wind (and not only to be scratched)
Teach me the leisure of the tongue which is no stranger to the strange saliva slits or the breath whistle in the whispered curves of greyness, to the severity of flat objects in the dark chambers of my lucidity. Eager, mundane. The incalculable, mostly. The hangover after being so close to the present, after having my temples so inward looking.
Or whatever this might be.
Teach me the song that uncomfortably bends the tongue’s excitement. A sure way to hasten the reticence of what is to come.
Teach me this chewing this muscle-waving and eventually refine the bitter spit I generate.
Rehearsals. For training the urgency.
I’ll save my teeth for other tasks, Other verbs, less narrow meanings.
Teach me a language That scratches. That’s all.
Like somersaults on the tarmac: Jolly, although necessary.
Even more: that scratches the scratch itself.
A language as that which is spoken by man sometimes unknowingly (My knowing and not knowing it simultaneously)
Teach me how a language is spat By those who countless times have spat out beauty, because it was faintly implacable. Just as those who’ve been taught that the hours which thus softly strike certainties tie us to this soil and that this is the only song. All of them who whistle with pursed lips have another obscure song. Consonants tightened by a knotted grief and by tenacious vowels in their indistinct resounding.
An effortful voice For it comes raw and indecisive Through the cracks of what’s necessary – We always come back to it As we peer through the slits of anger.
I am told that language belongs to murkiness and dampness. Or the other way round. That the poets own Particularly twisted ones, Slashed by shadows.
But that’s not it: Fuck the poets’ tongues. Its pleats don’t agree with midday. These days disagree with me But I insist in licking up their dust.
Teach me to lick up the dust in another way.
I want the language of all The afflicted, the clumsy spirals Of the frantic blade which the world is.
Airy the language in the sun Twist it under the light Unhinge it so that it finds its mismatching speech. The contrived wriggling sneaking off through the places these times have imposed on us.
Teach me how to bend pain To draw out the body and the embarrassment Of almost possible gestures In this language, this buzzed foretelling of quasi futures.
Teach me, muse, unworkable music
II
I no longer search for the cause The first – the cause without a cause – in explosions or sobbing of matter. I presume the stupid need For the beginning and the necessary Contingency for disorder. I presume purpose with a grimace I also recognise in others. With them I assume the wavering means.
We go where the faint Tremors that humble us will lead.
That which we still call the future.
Teach me the gasping blow
that twists our tongue.
Sing to me that which holds
the sweetness of breathing.
That which we still call for And some called the song.
Perhaps mistakenly But let’s start with error And let’s take its knots to our fierce and possible conclusions.
Let grenades burst where the throat folds.
With tooth and nail, the breath still alive of so much dust and hoarseness. The evidence of the doubt. All there is which is most splintered. We, the latent rage that we are, the daggers soiled with revolts of yore.
Up to the present.
Where to begin except where its slight leanings may take us?
My temples go on surviving The consecutive and necessary massacres of my ego.
The present. Its gentle tendencies. Its certainties, its impurities, its vague messianisms Its clarities, its closures, its heavy rhythms.
The obvious is the spot where things are nothing but the ill disguised ramblings of our waiting.
We are alive, or something like it.
That’s right, we live of dusts. Brute, abrupt. Between the terrified tongue and the nebulous temple. But, nevertheless, alive.
Someone mentioned the necessary impurities.
III
Is it song that which awakens me to almost life on the tips so tender that I don’t even know whether they’re tips of fingers or of dense fierce fixed ideas I entertained while I thus breathed myself in, breathed myself in and breathedmyselfin again and again. That which thus moves me and scratches me.
I breathed in because breathing out brings the hooks where in haste I hang the song.
As it is. What it is. The murmur’s beat. That Which the song Which thus made me an instrument with untouchable chords?
Get used to it. And extricate yourself at your peril.
Once I heard a voice being undone. What has from the other side thrown me into the shadow?
There are other sounds, winds, exercises So that chords shudder in silence, implicit in centres and ends.
I still feel the thread that leads us from the suspended nails to the prayers.
Neither ecstasy nor furore or devastation, or anything at all. Compose, though, as if they all existed.
Let the wind awake with precarious tongs the obscure and imperfect murmur. I spoke.
Let you wake up. I spoke. The fierce, oblique mornings, the future
in chords of turmoil, anger and clarity.
That is the tangle that interests me. The mouth that forgot the song But not the agony that hisses it. The muse that has forsaken me But hasn’t abandoned that which will one day be my deferred lucidity. The word that pushes the wall of noise from the inside.
If there were an inside. If there weren’t only the wind And the mechanisms of uncertainty. The song, after all.
Here’s another explanation for my shyness.
Like the wildest song (for the tone has to be found)
Let them not be in vain, the sounds and the subsequent verse wherever they fall.
This is how I hear what I scarcely perceive How I fabricate what I scarcely comprehend This is how, bit by bit, the world.
Let confusion be only the beginning The eye be the momentum beyond vagueness The arm be that which makes the soil our own, the voice be like light and campus.
Humbles prayers, I know, and uncertain: just that which ties me to the sounds and that which your whispered name throws at me.
Lá fora tantas asas e luzes e vozes que são parte de um todo que se não vê, e chiu, chiu e chiu, um calmo chiu
pois que agora que nos dói braços, estomago, coração e que nos falta o ar
então, como dizia a minha mãe, abre os olhos e olha para eles
abre os olhos e olha para eles
chamo-te Lia, é um nome bonito, sim, acaba de ocupar o lugar de hoje na vida, dizes
Lia é um nome de quem está de esperanças, mas muito pertinho de dar à luz mesmo quando ainda falta uma boa distância, está perto, pertinho, sempre perto
Tu dizes sim com a cabeça e chiu, chiu e chiu, um calmo chiu
Que a Lia assegura que bem sabe do seu cansaço, mas não conseguirá adormecer nunca e eu simplesmente ali, como se não tivesse ouvido nada do chiu que vi nos meus olhos quando para eles olhei, nem do chiu que grita tudo, nem do que me sorri e afaga com dedos muito longos como só a Lia tem e está na hora
Tenho a certeza disso
não há que duvidar da luz, a luz é sempre jovem e se o tempo estiver especialmente mau ela é manhã todo o dia e toda a noite, foi sempre assim desde que me lembro
Ainda temos teto e filhos e sonhos e verdades, penso
Pois penso, penso e cuido, e agora é altura de ir como fomos ao longo dos tempos
Olho pela fresta da janela e tu enches a cafeteira e logo a pousas no fogão, na verdade não podemos contar do chiu, chiu e chiu, um calmo chiu
a ninguém?
É que para ser sincera até me sinto mais segura em mim, do que nunca alguma vez, é como se me recitassem todas as orações do que foi e é o meu não poder ser diferente,
e julgo que uma pessoa também deve de cantar, nem bem nem mal
que as lágrimas eram e porque foram e são uma alegria a assomar-nos aos olhos nessa forma líquida e deles se soltaram e soltam para uma malga que fizemos da matéria do coração para nos darmos a beber quando na cama limpa os corpos nus
Isso foi certo, era certo e é certo o nome dessa realidade
E foi assim ontem e em todos os dias anteriores e hoje
o pulso do poema continua à janela e nós reconhecemo-nos
muito azuis naquela estrela-do-mar que veio ao mundo abrindo imensamente
as mãos até ao ponto mais longínquo,
depois, entrando em casa sim, entrando em casa ávida
como nós
Sim, foi isso mesmo e a partir daí e até quando
começámos a ler os livros abertos sobre o mar redondo
Lê, são estes os nomes das coisas que deixaste – eu, livros, o teu perfume espalhado pelo quarto; sonhos pela metade e dor em dobro, beijos por todo o corpo como cortes profundos que nunca vão sarar; e livros, saudade, a chave de uma casa que nunca foi a nossa, um roupão de flanela azul que tenho vestido enquanto faço esta lista:
livros, risos que não consigo arrumar, e raiva – um vaso de orquídeas que amavas tanto sem eu saber porquê e que talvez por isso não voltei a regar; e livros, a cama desfeita por tantos dias,
uma carta sobre a tua almofada e tanto desgosto, tanta solidão; e numa gaveta dois bilhetes para um filme de amor que não viste comigo, e mais livros, e também uma camisa desbotada com que durmo de noite para estar mais perto de ti; e, por
todo o lado, livros, tantos livros, tantas palavras que nunca me disseste antes da carta que escreveste nessa manhã, e eu,
eu que ainda acredito que vais voltar, que voltas, mesmo que seja só pelos teus livros.
in Poesia Reunida, 2012
Read this…
Read this, these are the names of the things you left – me, books, your smell filling the room; half the dreams and twice the pain, kisses all over my body like deep cuts which will never heal; and more books, loss, the key of a house that was never ours, a blue flannel dressing gown I’m wearing as I write this list:
books, laughter I can’t put away, and rage – a pot of orchids you loved so much without my knowing why and I haven’t watered since; and books, the bed unmade for so long,
a letter on your pillow and so much sorrow, so much loneliness; and in a drawer two tickets for a romantic film you didn’t watch with me, and more books, and also a discoloured old shirt I wear for sleeping to be close to you; and every-
where, books, so many books, so many words you never said before the letter you wrote that morning, and me,
me still believing you’ll be back, you will be back, if even only for your books.