Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quem ama o tempo como eu nesta manhã de ruídos que se afastam de mim e me fazem sentir vazio no meio do mar? Quem devora este ar tão benfazejo à boca e ao replicar das ondas nos ouvidos como sinos de água?
Um tempo que se curva, com o início nos joelhos dobrados na infância, na mãe obsessiva, e vem, como de onda em onda, transportando as dores, até este rochedo que me suga os anos e morde, devagar, a memória da vida.
in De Amore, 2012
EMPTY AT SEA
Who loves time like I do this clamouring morning that moves away and makes me feel empty at sea? Who devours this breath of air so mouth soothing, so wave-like, water bells to my ears?
A bowing time, childhood bent knees, before the obsessive mother, unfolding, wave after wave, carrying sorrow up to this rock that sucks in my years and bites, slowly, the memory of life.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004
1 - Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.
2 - Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente.
Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.
3 -Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.
4 - Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".
"Dentro deste quarto um outro quarto Como um Carpaccio nas ruas de Veneza Segunda imagem sussurro de surpresa E um pouco assim são as ruas de Veneza Em fundo glauco de laguna ou vidro E um pouco assim em nossa vida o duplo Espelho sem perdão do não vivido Caminha destinado a ser perdido
5 - Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.
«O Concerto Interior – Evocações de Um Poeta», de António Osório (Assírio e Alvim, 2012) reafirma um grande artífice da palavra que continua bem presente na cultura portuguesa.
O AMOR VOTADO ÀS PALAVRAS «O amor que votavas às palavras, sabias introduzi-las, setas vibrantes num alvo. Usavas a toga com dignidade: escolhias sempre o melhor lado, o menos frágil dos litigantes. Ad vocatus, o que é chamado em auxílio, isso realmente foste. Incapaz de cobrar dinheiro por uma consulta. Meu pai enfurecia-se quando se tratava – altura embaraçosa – de apresentarem conta aos clientes: arranjavas sempre um pretexto para sair. Era a tua premeditação de respeitar os outros, na entrega complacente que merecem e, justamente, esperam de nós, que vestimos à semelhança dos padres e conhecemos, melhor que eles, os jogos lacerantes dos interesses e o curso desvendado das paixões». Nesta dedicatória ao tio Henrique, o poeta António Osório confessa a essência da sua escrita e do seu ofício. Um serviço, uma entrega, uma fidelidade – eis o que um mundo de palavras revela e ao mesmo tempo esconde. Quando lemos esse texto, percebemos que a oficina das palavras do autor de Ignorância da Morte começou por ser a do avô, escrivão da Boa Hora. “A clareza equilíbrio de um oleiro cingido às leis, boas e más do seu barro” constitui a matriz que articula os dois mundos que António Osório procura ligar e distinguir, mas que se completam necessariamente. Inventários, questionários, especificações, mapas de partilhas, mas “em poesia não há causa que se possa ganhar, nem transação a fazer consigo mesmo”.
IGNORÂNCIA DA MORTE Como afirma Eduardo Lourenço, “a temática central da poesia de António Osório, a da ignorância da morte, graça ou prémio duramente concedido aos que vencem ‘a guerra do tempo’, não ignorando-a, mas fazendo-se semelhantes à criança anterior à morte que todos fomos”. E assim, o ensaísta salienta “o poeta do amor incarnado, sensualizado até à alma”. O amor, a morte e a vida entrelaçam-se. Sem ceder à tentação do rio do esquecimento, torna presentes, “sob a morte e a ruína, (…) a vida e a casa que nela se desfazem”. E Vasco Graça Moura salientou, e bem, como “primeira singularidade da poesia de António Osório”, a vivência de uma “poesia em que a questionação do real decorre da sua própria e plena afirmação”. Uma ilustração? Indubitavelmente “Aldeia de Irmãos”, onde se encontram todos os ingredientes que estão na sua oficina de oleiro: “Ao pé dos eucaliptos, / do lavadouro, as casas. / Capela fechada, oficiantes ratos, / e cães, patos, galos / na rua e a dormir dentro, individuais sub-reptícios. // E doentes, cavadores, crianças / sonhando com ninhos destruídos. / Longe, na paróquia o cemitério. // Em torno vinhas, olivais / irmãos uns dos outros / como tijolos dentro da parede. / E no inverno o canto / da lenha exorbitando na lareira, / a queimar, a queimar a cinza por debaixo”. A realidade e uma ponta de humor, a dura existência humana contraditória, a natureza e o fraterno calor de um encontro. “A teu lado estou / sorrindo a chamar-te, / espero que regresses a casa, / ansiosamente corro para a porta”. Eis, num “in memoriam”, a chave do sentido poético. A memória supera limites e permite compreender como a realidade é bem mais rica do que o presente palpável. «O ofício de advogado levou-me a ser discreto como poeta. As pessoas preferem, naturalmente, bons profissionais do foro a excelentes poetas» - confessou-se assim a Ana Marques Gastão em entrevista ao DN (24.3.2001). A pequena frase diz-nos tudo sobre o que foi. Exímio cultor do seu ofício, viveu a poesia como respirava o ar que nos faz existir. E a sua exemplar poesia foi o modo de exprimir a riqueza do espírito. Com orgulho lembro-o como meu Bastonário, exemplo numa profissão tão vulnerável e exigente. E não me cansarei de dizer que, como advogado, foi dos melhores e que a sua memória tem de ser muito lembrada – pelo saber, pelo espírito de justiça, pela compreensão do Direito e da lei como sinais de humanidade e da dignidade do ser.
LONGAS CONVERSAS… Em longas conversas inesquecíveis, recordava a sua infância, com mãe italiana e pai português: “todos os dias, minha mãe lia-me os seus livros cuidadosamente arrumados”. “Ilíada” e “Odisseia”, sempre em italiano. A seguir passou para Dante. “Explicava-me aquelas estâncias, contava-me as histórias florentinas, as perseguições que sofrera esse poeta que não era herói inferior a Ulisses…”. Do pai, ouvia os Contos e as Histórias Maravilhosas da tradição popular, recolhidas pela tia Ana de Castro Osório. E a belíssima toada florentina era completada pela melhor língua portuguesa – Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha. E devo a essas charlas, ditadas pela amizade a invocação circunstanciada, com emoção especial, das raízes familiares. Ele, ainda menino, chorando inconsolável a derrota de Heitor perante Aquiles; a presença do tio Henrique; Maria Valupi e a “Felicidade da Pintura” com Miguel Ângelo Lupi; o exemplo de Ana de Castro Osório, cidadã corajosa e pioneira, que permitiu a revelação de Camilo Pessanha e da “Clepsydra” (que, sem ela, teriam ficado no esquecimento); as afinidades eletivas da Arrábida e de Setúbal dos nossos avós, que me recordou logo que nos conhecemos. “Aqui, junto a estas árvores / cresceste como a sua melhor sombra, / a mais alta, solícita” (como disse de Sebastião da Gama. Um dia fui em peregrinação ao túmulo de seu avô, aos pés de San Miniato al Monte, na mágica Florença, cidade natal de sua mãe. Nunca esquecerei tão intensas lembranças de quem “gostaria de ser visto como alguém que encontrou as suas raízes primordiais na Grécia, emigrou para a Sicília quando da Magna Grécia, sente por Roma uma funda admiração, e pertence a uma geração de uma tradição cultural mediterrânica e atlântica, universalista, que abarca o italiano, o francês, o espanhol e o português”. E o universalismo era uma marca muito séria. E encontramos ecos de Bashô e da espiritualidade oriental. “Não sigo o caminho dos antigos, busco o que eles buscaram”. Era emocionante um encontro com o poeta, que preferia o puro culto da amizade e da memória, como na lembrança de seu pai (e de sua mãe): “Assim te amo agora sem lágrimas, / Que deste modo teus netos / um dia se recordem de mim, / na tua, minha e deles pura ignorância da morte”. De facto, nunca ignorou que a poesia é sempre um mistério e uma aproximação ao sagrado, como aliás a música. Daí a relação com a morte, como luta contra a obscuridade. E os mortos, na sua memória querida, ajudam na procura de outra serenidade, como modo de purificação. Assim, João Gaspar Simões leu o poeta “com uma efusão de alívio, o alívio que se sente quando, num quarto muito abafado, alguém abre de súbito uma janela”. E Eugénio Lisboa, leitor atento e premonitório de A. Osório, salienta a surpresa da absoluta claridade, da frescura primordial e da objetividade de Cesário. E assim se entende que “Com os anos / a pouco e pouco / a raiz afetuosa / penetrou / no fundo da terra / até chegar / ao mais pequeno / e mais antigo / veio de lágrimas”.
Vi Roma a arder, e neros vários bronzeados à luz da califórnia guardar em naftalina nos armários timidamente, a lira babilónia; as capitais da terra, uma a uma, desfeitas em nuvem e negra espuma, atingidas de noite no seu centro; mas nunca vi paris contigo dentro. E falta-me esta imagem para ter inteiro o álbum que me coube em sorte como um cinema onde passava «a morte»; solene imperador, abrindo o manto onde ocultei a cólera e o pranto, falta-me ver paris contigo dentro.
I saw Rome burning
I saw Rome burning, and several neros tanned by the californian light timidly stashing away in closets mothballs and babylonian lyres; the world's capitals, one by one, darkened into froth and cloud, crushed in their core at night; but i never saw paris with you inside. And this is the missing image in my fate-allotted photo album like a cinema showing certain ‘death’; solemn emperor, opening the shroud in which I hid my anger and my plight, I’ve yet to see paris with you inside.
A palavra eu acredito nela Na sua pedra rugosa na sua superfície De astro inominável como o fogo A palavra eu acredito na sua sombra Na sua medida singular Na sua circunferência exacta quando arde Na vida com seus animais urbanos Evolando-se os animais no verbo escuro Acreditar no infinitivo lodo do seu jogo E não permanecer na sua cegueira incerta A poesia quando se rende ao real literal Ausente da vida que a perfura A palavra eu acredito nela e na sua luz secreta Entre o seu fazer e o ser dita na leitura
in A Sombra no Limite, 2004
I believe in the word...
I believe in the word Its rugged stone its surface Star as unnamable as fire I believe in its shadow Its singular measure Its exact circumference as it burns In life with its urban animals Animals vanishing in the verb’s darkness To believe in the infinite swamp of its sport And not dwell in uncertain blindness Poetry surrendering to literal reality Absent from the piercing life I believe the word, its secret light Between its making and its telling as it is read
Enquanto a faca corta o alimento, a boca atrasa o corte, o paladar, a sorte, a criança devora o que tens e a vontade pede-te: «sê lenha». Anda, suporta teu corpo de ferida cicatriz ou nome, és esqueleto bravio carne e voragem, sino que ressoa, te ensurdece e desmorona.
Do mar, a terra, da terra a água, do fogo, o ar, só é exterior o interior que se evapora em solução iodada e te abafa no fumo metálico e molda uma sombra, o ombro, a mão. Mas olha, vê, escuta o som impaciente da lenha afundada no sal, conta a história, repete a única história que te faz viver.
in Adornos, 2011
«Be firewood»
While the knife cuts the food the mouth delays the cut, the taste, the chance, the child devours what you’ve got and your will demands: ‘be firewood’. Go on, carry your body with wound scar or name, you are wild bone flesh and hunger, a tolling bell that deafens and flattens you.
From the sea, the earth, from the earth the water, from the fire, the air, only the internal is external dissolving into an iodine solution, stifling you in the metallic smoke and shaping a shadow, the shoulder, the hand. But look, see, listen to the impatient sound of the firewood sunk into salt, tell the story, tell again the only story that makes you live.
Na varanda, em perfume comum de outros aromas: hibisco, uma roseira, um pé de lúcia-lima
Mas estes são prodígios para outra manhã: é que esta flor gerou folhas de verde assombramento, minúsculas e leves
Não a ameaçam bombas nem românticos ventos, nem mísseis, ou tornados, nem ela sabe, embora esteja perto, do sal em desavesso que o mar traz
E o céu azul de Outono a fingir Verão é, para ela, bênção, como a pequena água que lhe dou
Deve ser isto uma espécie de paz:
um segredo botânico da luz
in Entre Dois Rios e Outras Noites, 2007
Botanics of peace: visitation
I have a flower whose name I don’t know
On the balcony, its scent blends with other smells: hibiscus, rose, a sprig of verbena
But they will be prodigies of another morning: for this flower has bred leaves of astonishing green, minute and subtle
Bombs do not threaten it nor do romantic winds, missiles or tornados, neither does it know, although so near, of the jeopardy the salt sea air will bring
And the blue autumn sky disguised as summer gives it such blessing, as does the little water that I pour
Não, meu caro Blake Esta não é, como a tua Uma guerra mental Para as cósmicas acrobacias Que atravessam o fogo Das tuas fantasias
A acção heróica Que outrora seduzia Agora é um puro teste E o campo de batalha Visto de longe de cima de muito alto É pura geometria No rectângulo do scanner
As novas armas que cruzam nossos céus Caem sobre a terra Distraidamente Errando o alvo Enquanto os corpos desencarnam À sombra das destruídas pontes da lembrança
Que queres de nós, Doctor Clash? Que nos dizes lá do alto?
Um cruel pai nos entrega a este conúbio Atirando a bola Para o campo do adversário Onde o árbitro já foi despedido E vestido de preto É uma mosquinha No imenso campo Verde Porque a teimosa relva Continua a crescer para ser pisada para ser esmagada Porque esse é o seu cruel programa
Do céu Donde sempre nos veio O fogo e a água Continua a vir O sustento da morte
in Itinerários, 2003
MARRIAGE OF HEAVEN AND WAR
No, my dear Blake This is not, as yours was, A mental war leading To the cosmic acrobatics Crossing the fire Of your imagination
The heroic deed So seductive of yore Has become a pure test And the battle field Seen from afar from above from way up Is pure geometry In the screen of the scanner
The new weapons that cross our skies Fall upon us Absent-mindedly Missing the target While the bodies disembody Under the shadowy bridges of remembrance
What do you want from us, Doctor Clash? What say you to us from up there?
A cruel father delivers us to this wedding Kicking the ball To the field of the enemy Where the referee having been fired Dressed in black Looks like a tiny fly In the huge field Green Because the stubborn grass Continues to grow to be trampled on to be squashed Because that is its cruel program
From the sky Whence fire and water Were always bestowed upon us Keeps coming The sustenance of death
tornei a sonhar com o homem que se debruça sobre ti mete as mãos na tua vagina tacteia empurra segue sobe chega ao teu coração arranca-o com as unhas trá-lo para fora com um fio de pesca embrulha-o num pano afasta-se com ele o sangue não pára tu ficas a ponto de morrer com muito estertor mas não morres
tens razão eu não conseguiria satisfazer-te tão intensamente como o homem dos teus sonhos
again i dreamt of the man
again i dreamt of the man who bends over you his hands in your vagina he touches pushes presses on upwards reaches your heart with his nails rips it out pulls it with a fishing line wraps it in a cloth takes it away the blood doesn’t stop you are nearly dead gasping but you don’t die
you are right i wouldn’t be able to satisfy you as intensely as the man of your dreams