Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Com Adília, Sophia e um contemporâneo meu para Miguel-Manso
Quando escrevo apanho e desapanho o cabelo mas não se vê nada dos traçados de trigo o vento exprime-se de sensação conchiolina cruza-me hiperlírica de alheio sentido estou curta ribeirinha metida entre astros onde anoto este sonho de plano egoísta, passo à guia [cavalos persa de imaginação passo-os a animais livres para dentro como se o mundo fosse Platão – apagaram-nos a matéria comburente do paraíso a abstracção miúda como viris enterrando fundo e os muros que temos não são nada disso de hortênsias são silvas lagartos tijolos daqueles que não se pode subir esmurrando-os temos a força cega do indício, um país do outro lado sucedendo à nossa maneira entramos-lhe de inteiro enrolamo-lo [à escala dos pés para que nenhuma das imagens dezenas prestes a este silêncio suba mais que este argumento trazemos a magreza útil a luz e o gume bem medidos frutificamos para o veneno certo.
With Adília, Sophia and a contemporary of mine to Miguel Manso
While writing I tie and loosen my hair but nothing is visible on the rows of wheat the wind blows in conchiolin sensations goes through me in alien hyper-lyrical meanings a short little stream running among stars where I jot down this selfish plan of a dream, I give way to the guide [persian horses of imagination I turned them into free animals inside as if the whole world were plato – the paradise oxidizing matter has been obliterated the mingy abstractions are like deep burying virilities and the walls on offer aren’t made of hydrangeas they’re brambles lizards insurmountable bricks as we crack them we hold the blind force of the traces, a country on the other side happening in our manner we dive straight into it we role it in [at foot level so that no image from the dozens ready for this silence may rise above this argument we bring up the useful meagreness the well measured light and edge we fructify for the precise poison.
Os falsos deuses sentaram-se em redor Tal como nas mesas de pé-de-galo foi preciso chegar aos últimos extremos foi preciso que o ar ardesse de murmúrios para que o lápis começasse a mover-se Não há morte dizia de um lado e outro do papel Não há morte dizia de um lado e outro do papel são as mesmas vozes o trovão é o mesmo atroando os ouvidos pois de um lado e outro do papel dizia não há morte Morte há porém no papel onde o lápis soprado se moveu Só no papel só no papel mortalha.
in Analogia e Dedos, 2006
Annie Besant
The fake gods sat down in a circle As if around a three-legged table it was necessary to reach the last extremes it was necessary that the air burn in whispers for the pencil to start moving There is no death it said on one side and the other side of the paper There is no death it said on one side and the other side of the paper the voices are the same the thunder is the same roaring in our ears for on one side and the other of the paper it said there is no death There is death though in the paper where the muffled pencil moved Only in the paper only in the shrouding paper.
todas as cidades estão ancoradas num verso que alguém deixou aceso na boca de um morto há pedaços de sol que o deitam à distância de um coração instável sugando a cada passo a morte e as suas levíssimas esquinas constatações ruínas de estar vivo
fiz do livro um corpo bíblico de mim e do Deus vulgar por minha causa penetrei o corpo à esquina do calvário e jerusalém nem por isso ficou presa à minha língua
in biofagia, 2003
all cities are anchored…
all cities are anchored on a verse someone left ablaze in a dead man’s mouth there are bits of sun leaving it within reach of an unsteady heart that at every step sucks death and its most subtle edges the ruined realisations of being alive
i made the book a biblical body of myself and turned God ordinary for my sake i pierced my body next to the calvary and yet Jerusalem did not stick to my tongue
Não deves abrir as gavetas fechadas: por alguma razão as trancaram, e teres descoberto agora a chave é um acaso que podes ignorar. Dentro das gavetas sabes o que encontras: mentiras. Muitas mentiras de papel, fotografias, objectos. Dentro das gavetas está a imperfeição do mundo, a inalterável imperfeição, a mágoa com que repetidamente te desiludes. As gavetas foram sendo preenchidas por gente tão fraca como tu e foram fechadas por alguém mais sábio que tu. Há um mês ou um século, não importa.
in Menos por Menos – Poemas Escolhidos, 2011
Drawers
You should not open closed drawers: they were locked for a reason, having now found the key is a happenstance you can ignore. You know what you’ll find inside drawers: lies. Many paper lies, photographs, things. Drawers are home to the world’s imperfection, the unalterable imperfection, the sorrow that repeatedly feeds your disillusion. Drawers have always been packed by people as weak as you and locked by someone wiser than you. A month ago, never mind a century.
Se estivesse entre nós, Corsino Fortes teria completado, no dia 14 de fevereiro, noventa anos. Graças à iniciativa de Filinto Elísio, poeta e editor, cultor da língua portuguesa, de Márcia Souto e Ana Paula Godinho (filha do poeta), familiares e amigos do autor de “Pão e Fonema” reunimo-nos no Grémio Literário, com a presença do Presidente da República José Maria Neves, em nome da morabeza, num convívio em que a memória de um saudoso amigo esteve sempre presente. E começámos, como não poderia deixar de ser, por ouvir a leitura dos poemas reunidos pela editora Rosa de Porcelana em “Sinos de Silêncio”. “Perfume d’nôs ilha / Perfume d’nôs vida / Sê pai é amor / Sê mãe é melodia / Morabeza é farol / De nossa Senhora da Luz / Que Deus plantá Kab Verd / Na alma de coraçon”. E o poeta ali regressou e, por momentos, fechando os olhos, pudemos reencontrá-lo na sua inconfundível veste branca, com a aura fraterna, que tanto admirámos. Conheci-o na cidade da Praia e nunca mais deixámos de nos falar, até aos seus últimos dias, ouvindo na sua voz pausada e quente numa militância cívica inesgotável. O homem de cultura não esqueceu o dever de memória. E a sua originalidade ia ao ponto de ligar a necessidade de viver a identidade cabo-verdiana dinâmica, aberta e corajosa. E falámos de S. Vicente e do Mindelo, de Baltasar Lopes e da “Claridade”, bem como da importância dos crioulos. Foi das pessoas mais lúcidas que conheci no tema da diversidade das culturas da língua portuguesa. O plural é o sentido da alma. O seu percurso de vida foi extraordinário, desde as provações de juventude à formação jurídica, à resistência, às funções de professor, de exemplar magistrado e de exímio diplomata e governante. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal. Mas nunca deixou a sua banca de poeta, escritor, ensaísta, tendo colaborado nas revistas “Claridade”, “Cabo Verde” e “Raízes e África”, tendo sido o primeiro presidente da Academia Cabo-Verdiana de Letras.
Protagonista da libertação e da independência, pôde assumir, com uma irrepreensível coerência, a defesa da cultura popular, a afirmação emancipadora da identidade da jovem nação, o culto da poesia oral das mornas e das coladeiras e a relação com o fado português, a modinha brasileira, o tango argentino e o lamento angolano. Quando lemos “Pão e Fonema” (1974), “Árvore & Tambor” (1986), “Pedras de Sol & Substância” (2001) ou a reunião poética de “A Cabeça Calva de Deus” (2001), sentimos a vivência de um património exultante, onde a liberdade e a vontade se juntam à tomada de consciência dos sinais da opressão. E Corsino pega no tema de “Pasárgada” de Manuel Bandeira, (“Vou-me embora pra Pasárgada”) como um sonho interno do paraíso e um suplemento de alma, da tradição “claridosa”, abrindo caminho alternativo à partida de “Chiquinho” de Baltasar Lopes, obra-prima e referência nacional. Como resistente, pensa no retorno e na independência. E em “Pão e Fonema” é a tónica do povo que encontramos, do chão e da fome, como grito e denúncia. E o fonema é símbolo da fala, inequívoca marca de uma vontade indómita contra a seca e a provação.
Corsino Fortes foi um poeta empenhado na cultura dos crioulos e na consciência dos castigos da seca, da fome e da pobreza. A nossa última conversa foi sobre a necessidade de uma cultura inclusiva do crioulo, num arquipélago de diferenças. Urge a celebração da identidade insular e a exaltação serena dos valores da pátria, com especial relevância para a memória coletiva. O pão simboliza a esperança do cabo-verdiano no saciar da fome. “A vogal adentra / O coração do ditongo / Faminta de amor”. E o significado da metáfora remete para a ideia de que o pão vai além do signo, pois simboliza fonema, mar, matrimónio, património e a própria palavra constitui-se em imagem revivida pelo leitor, porque, segundo Octávio Paz, “o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um leitor novo”.
A luz atravessa o quarto entre as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora de um lado seja o poente - onde está o sol, agora - e do outro o nascente - onde o sol já esteve. No quarto juntam-se poente e nascente, e é esta luz que confunde o olhar, que não sabe em que hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha que percorre o espaço entre as duas janelas, como se não tivesse princípio nem fim; e o que faço é puxar essa linha para dentro do quarto, e enrolá-la, como se me pudesse servir dela para atar as duas extremidades do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique parado entre duas janelas, a poente e a nascente, até que o fio se volte a desenrolar, e tudo recomece.
in A Matéria do Poema, 2008
Lisbon light
The light crossing the room between the two windows is always the same, although on one side it’s west - where the sun is now - and on the other it’s east - where the sun has already been. In the room west and east meet, and it is this light that makes my gaze uncertain for not knowing which hour held the first light. Then I look at the thread of light stretched between both windows, as if it had no beginning and no end; and I start pulling it inwards into the room, winding it up, as if I could use it to tie up both ends of the day into midday, and let the time be stopped between two windows, west and east, until the thread unwinds, and everything begins all over again.
António Manuel Couto Viana (1923-2010) comemoraria cem anos e invocamos a pedagogia da cultura popular e a preocupação especial que teve com os mais jovens e com a importância do teatro no ensino.
PEDAGOGO DA CULTURA POPULAR
Celebra-se o centenário de um poeta e homem de teatro, que influenciou decisivamente muitas gerações de jovens nos anos cinquenta e sessenta. António Manuel Couto Viana foi, antes de tudo, um pedagogo da cultura popular portuguesa. Pode dizer-se que foi esse seu papel de ativo educador através da leitura e do teatro que deixou uma marca indelével. Filho de um português e de mãe aragonesa, cultivou sempre as suas raízes galaico portuguesas e minhotas. Poeta, dramaturgo, ensaísta, memorialista e tradutor, fez os seus estudos no seu Minho e em Lisboa. Desde sempre foi um entusiasta do teatro, como a arte que melhor permite ligar a criatividade popular e a necessidade da cultura, tendo recebido de seu avô, com suas irmãs, em herança o Teatro Sá de Miranda de Braga. Cedo começou a colaborar no Teatro Estúdio do Salitre, como ator, cenógrafo e encenador (1948-1950), sendo ainda um dos animadores do Teatro de Ensaio do Monumental (1952), bem como diretor do Teatro do Gerifalto (1956-1960) – onde também estiveram Cecília Guimarães, Henriqueta Maya, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro. Participou na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade (1961-1965). Como ator, encenador e mestre da arte de dizer e de representar, encenou na televisão portuguesa (RTP) espetáculos de teatro e animou conversas e programas, com grande repercussão entre o público de todas as idades, mas especialmente entre os jovens, atraindo uma nova geração de atores e artistas para a arte de Talma. Lecionou no Liceu D. Leonor e foi membro do Conselho de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Estreou-se na escrita em 1948 com o livro de poemas O Avestruz Lírico, muito bem recebido pela crítica. Foi autor de mais de uma centena de obras escritas.
ATIVIDADE INTENSA DE PROMOÇÃO DA CULTURA
De 1950 a 1954, dirigiu com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo as folhas de poesia Távola Redonda, e em 1956-1957 a revista de cultura Graal, participando na revista Tempo Presente em 1959-1961. A sua obra poética procurou reabilitar as tradições líricas populares e um certo culto do passado e da paisagem. Além da poesia e do teatro, dedicou-se à literatura infantil, a partir dos principais autores europeus e dos romanceiros portugueses antigos, estudando-a em ensaios, escrevendo e traduzindo livros destinados aos mais jovens. Dirigiu o Camarada (1949-1951). Uma boa parte da sua atividade teatral como ator, encenador e autor dirigiu-se também aos jovens e às crianças, o que se relaciona com a sua obra poética onde perpassam marcas dos temas dos contos tradicionais. A referência ao Gerifalto, que marcou o mais importante grupo que animou, tem a ver com a simbologia de uma ave semelhante ao falcão, que representava a altivez e a valentia. Couto Viana está representado nas principais antologias de poesia portuguesa, e os seus poemas foram traduzidos para castelhano por Angel Crespo e para inglês por Joan R. Longland. Foi em 1960 premiado com o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, além de um conjunto dos principais galardões relativos à poesia e ao conto.
Um dos seus poemas mais célebres, publicado em “Versos de Caracacá”, intitula-se “A Maçã”, que recordamos: «Na relva cheia de pó, / cai uma maçã pequena / que ao ver-se tão suja e só/começa a chorar de pena. / O galo do catavento, / temendo alguma desgraça, / pára logo o movimento / e pergunta: - O que se passa? / - Quero ver o Mundo! – diz / a maçã, a soluçar. / - O escaravelho é feliz, / pois tem patas para andar! / / De um alto ramo pendente / via o Sol, o Céu, a estrela / com gatos e cães e gente. / Mas, no chão, não vejo nada! / Eu tenho uma rica ideia! / - diz o galo (e bate as asas). / - Dou-te esta noite boleia / para veres gentes e casas. / E assim fez. Voa da igreja, / põe às costas a maçã / que vê tudo o que deseja / até ao romper da manhã. / - Olha outro galo tão lindo, / a voar! – Maçã pateta! – / responde-lhe o galo, rindo. / - Aquilo é uma borboleta! // Olha uma casa amarela! / Desço até ela. Já está! / Espreita pela janela / e diz-me o que vês por lá. / - Vejo uvas numa taça – / diz a maçã. - Por favor, / chega-te mais à vidraça, / para eu espreitar melhor. / E a maçã pôde, assim, ver, / sobre a toalha engomada, / o garfo, a faca, a colher. / Viu tudo e ficou cansada. // O galo regressou à sua / torre da igreja aldeã / para, aí, contar à Lua / a viagem da maçã. //E a maçã muito contente, / diz, na relva, para consigo: / - Vi o Mundo, finalmente! / E o galo é meu amigo!»
O CULTO DAS TRADIÇÕES
Como afirmou um dia sobre o Alto Minho: «A família toda foi uma apaixonada pela sua terra, que é encantadora: meu pai, um etnólogo, um homem que fez o ressurgimento do trajo à lavradeira (aquilo a que se chama «trajo à minhota», mas que é apenas do concelho de Viana do Castelo) e escreveu sobre Viana; minha irmã mais velha também tinha uma grande paixão por Viana e escreveu muito sobre ela e o mesmo com a minha outra irmã... O Luís d’Oliveira Guimarães dizia que o meu pai amava tanto a própria terra que até a usava no nome (Couto Viana). Eu identifico-me com a cidade e tenho recebido dela um carinho e uma admiração muito grandes – recentemente foi edificada a Biblioteca Municipal de Viana, que tem quatro salas: a sala Camões, a sala Fernando Pessoa, a sala José Saramago e a sala Couto Viana; sou cidadão de mérito da cidade; a Câmara Municipal tem publicado muitos livros meus de poesia e ensaio. A cidade tem correspondido ao meu amor”. Esta referência significa que a obra de António Manuel Couto Viana procura ligar, a partir da poesia, a literatura, a língua e a procura da compreensão da cultura como ponto de encontro entre as gerações – numa verdadeira noção de património cultural como realidade viva. Assim, a leitura da sua obra constitui um ensinamento permanente sobre o cadinho complexo e heterogéneo que vai construindo a língua portuguesa – de Camões a Eça de Queiroz, passando por Vieira e Garrett, por Sá de Miranda e Antero, sem esquecer os antigos trovadores, de que o poeta se considerava seguidor. Um pedagogo da cultura popular não poderia ser outra coisa do que um ouvinte fiel das tradições e leitor atento da melhor língua erudita.
As pessoas segregam Futuro – Queremos aquilo que as pessoas segregam A Vigília das montanhas, o vento mais quente do sul, a manhã húmida e a certeza da expansão Os raios de sol e o riso como ponte a parte mais quente da sede antes de haver água
As pessoas segregam futuro O Sol produz açúcar As abelhas produzem sol
Queremos aquilo que as pessoas segregam
BEES PRODUCE SUN
People secrete Future – We want that which people secrete The mountains’ Vigil, the Southern warmest wind, the humid morning and the certainty of expansion Sun rays and laughter as a bridge thirst’s warmest feel before there is water
People secrete Future The sun produces sugar Bees produce sun