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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 12 a 18 de julho de 2021

 

O conjunto de cinco plaquetes publicado em Faro sob uma capa comum como o título de “Poesia 61” (maio de 1961) representa, de algum modo, um retorno à tradição vanguardista que em termos emblemáticos “Orpheu” tinha representado. Celebramos gostosamente os 60 anos desse momento.

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UM ENCONTRO SINGULAR

“Poesia 61” reúne cinco autores diferentes, que seguiram caminhos próprios, embora, segundo Gastão Cruz, “a muitos parecesse que aquilo era o mesmo”. Contudo, o que há é um impulso comum, que merece atenção. E Eduardo Prado Coelho entendeu que esse encontro (e não movimento) “procurou defender uma conceção estrutural do poema. Em que cada elemento depende de todos os outros e apenas se define no espaço total e ilimitado do poema através de uma rede muito densa de relações” (in “A Jovem Poesia”, “Diário de Lisboa”, 4.7.1968). Casimiro de Brito (1938) com “Canto Adolescente”, Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007) com “Morfismos”, Gastão Cruz (1941) com “A Morte Percutiva”, Luíza Neto Jorge (1939-1989) com “Quarta Dimensão” e Maria Teresa Horta (1937) com “Tatuagem” protagonizaram essa iniciativa, publicando cinco textos, sob uma capa comum da autoria de Manuel Baptista. Óscar Lopes e António José Saraiva identificaram o grupo como predominantemente universitário e referiram a importância de  uma “evolução conjunta da poesia experimental em sentido tangente ao realismo social”. Segundo a análise de Gastão Cruz (algarvio, como Casimiro de Brito) houve uma preocupação comum, que correspondeu a uma demarcação relativamente à linguagem poética em vigor nos últimos anos 40 e princípios de 50. E as folhas de poesia “Árvore”, com quatro números publicados de 1951 a 1953, dirigidas por António Ramos Rosa, José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho e António Luís Moita, com vasta colaboração (Sophia, Eugénio de Andrade, Egito Gonçalves, Jorge de Sena, Cristóvam Pavia, David Mourão-Ferreira e tantos outros), constituíram o melhor repositório de uma interessante confluência entre as lições de Pessoa e de Casais Monteiro e as propostas neo-realistas e surrealistas. Como dirá Luíza Neto Jorge, o surrealismo tinha razão de ser como modo de pôr em causa cânones bafientos e como reação a um ambiente social fechado e rígido. Só a partir de um tal inconformismo seria possível constituir formas e ideias novas. Natália Correia incluirá, aliás, em “O Surrealismo na Poesia Portuguesa” (Europa-América, 1973) duas autoras da “Poesia 61” – Luíza Neto Jorge e Maria Teresa Horta.

 

UMA INFLUÊNCIA TRANSVERSAL

Mas é a influência indireta de António Ramos Rosa que está bem presente transversalmente em “Poesia 61”, quer na consideração da poesia “como diálogo com o universo”, quer na lógica de uma poesia social fraterna que não escondia a procura exigente de um estatuto de linguagem. Não esqueçamos a experiência dos “Cadernos do Meio Dia” (1958-1960), com A. Ramos Rosa, Casimiro de Brito, Fernando Moreira Ferreira e Hernâni de Lencastre, também impressa em Faro, na mesma tipografia Cacima, que antecipa os cadernos de 1961. Gastão Cruz  chamou, porém, sempre a atenção para a necessidade de evitar o “comodismo dos rótulos”, devendo  considerar-se  as “obras e os percursos individuais”, designadamente a sua própria fase de aprendizagem. Deste modo, há uma preocupação persistente na ligação entre o “poeta do real”, para quem a imagem é importante, e a grande relevância da palavra, “elemento nuclear do discurso poético”. Como dirá Fernando J. B. Martinho, importa ter presente em Gastão Cruz o movimento pendular entre “uma consciência agónica que diferentes temas de inegável ressonancia pessimista balizam e uma teimosa crença na vida e em valores correlativos…”. E esta preocupação de rigor, de sentido e de atenção à realidade e às raízes encontramo-la em Fiama Hasse Pais Brandão, e na distância relativamente a “vanguardas loucamente velozes e devoradoras”, preferindo a “metafísica humilde, sempre a dizer o mesmo, o mesmo, talvez por outras palavras e modos”. E Eduardo Prado Coelho dirá que o denominador comum para a geração de “Poesia-61” é a recusa de uma interpretação socio-lógica ou psico-lógica dos textos. Não se trata “de encontrar a tradução esteticamente adequada de uma vivência muito sincera do sujeito psicológico, nem de ir descobrir a mensagem social ou o programa ideológico que tal sujeito em poesia nos propõe. Trata-se de formular uma conceção topológica do texto, como lugar onde o sentido se produz” (in “A Palavra sobre a Palavra”, 1972). Deste modo, se cuidarmos de uma análise criteriosa e atenta dos percursos de todos os protagonistas de “Poesia 61”, encontramos preocupações comuns que definem uma identidade inconformista e reconstituinte, sem esquecer a necessidade de trilhar caminhos múltiplos e de articular a liberdade e a renovação com a escolha da palavra, numa atenção simultânea ao real e às metamorfoses que ligam permanentemente o passado e o futuro.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 2 a 8 de setembro de 2019

 

“Poesia 61” (Faro, 1961) não foi um cânone ou uma orientação, mas um encontro, em que houve uma procura de radicalidade por diversos caminhos.

 

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FARO, 1952
Há um poema de Gastão Cruz a que gosto sempre de regressar, uma vez que me recorda o Algarve que sempre conheci, de minha mãe e de meus avós, e de tantos amigos, muitos que já partiram. O título, “Faro, 1952”, tem a marca do ano em que nasci, mas lembra-me recordações de que ouvi falar ou que presenciei, ao longo dos tempos. Há um ano, quando homenageámos em Querença Gastão Cruz no FLIQ, essas palavras soaram com especial intensidade e brilho: “O café, do outro lado a livraria / essa a meta / da tarde / quando esfria a pele / sem que / frio fique o dia, / as linguagens regressam às cúpulas / de folhas / e os treze noturnos ainda nos esperam…”. Quantas lembranças? Quando percorro aquelas ruas de Faro, não só recordo a “Gente Singular” de Manuel Teixeira Gomes, mas também, há muitos, muitos anos, o meu avô a lembrar que ali encontrava, nos dias finais da sua vida, o poeta Cândido Guerreiro. E por isso este poema ainda ganha para mim maior sentido, já que é essa mesma memória que aqui se recorda. “… Percorremos a rua / até onde entra nela a aragem da ria / e o café dum lado, do / outro a livraria, / à porta o chapéu largo e a barba / branca / dum poeta do passado”… Assim se ilustra bem a afirmação de Gastão Cruz sobre ser “poeta do real”, singularíssimo, na boa companhia de outros poetas como Sophia, Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Luiza Neto Jorge… De facto, cada um imprime na realidade que nos cerca uma marca especial de crítica e de confronto. E assim podemos entender a importância de Luiza Neto Jorge disse ao “Diário de Lisboa”, em maio de 1961: “Parece-me que entre nós o surrealismo ainda terá razão de ser – como total destruição de cânones bafientos, como reação a um ambiente social rígido”. Sim, há rutura com um certo “discursivismo”, como afirmou Gastão. E se há prenúncios relativamente a essa atitude, temos de referir os casos de António Ramos Rosa, espécie de padrinho do grupo de 1961, em Faro, com “O tempo concreto” e “O boi da paciência” (em “O Grito Claro”) e do “Poema podendo servir de posfácio” de Mário Cesariny, que encerra “O discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”…

 

UM ANO ESPECIAL
1961 é um ano especial. Os acontecimentos nacionais sofrem uma aceleração em virtude da guerra de África. Nada será como dantes. É verdade que 1958 anunciou esse movimento uniformemente acelerado no sentido da criação da democracia – a candidatura de Humberto Delgado, sob o impulso de António Sérgio, a tomada de posição do Bispo do Porto, e o seu afastamento do país, mas também a publicação de “Mar Novo” de Sophia, como grito de alerta, perante a injusta e absurda desclassificação do projeto de João Andresen, Júlio Resende e Barata Feyo vencedor do concurso para homenagear o Infante D. Henrique em Sagres. E muitos ainda esquecem esse episódio fundamental. Lembro-me de ter sugerido a alguém que relesse o livro de Sophia de 1958, à luz desse impulso de uma genuína revolta. E tive a confirmação de que foi com surpresa que o meu interlocutor se apercebeu disso mesmo… Reuniram-se então os fatores que tornavam inexorável a liberdade. E era Sagres, e era o Algarve, e era a consciência da democracia que estava em causa. E era essa paisagem algarvia, sobretudo dominada pelo mar, que revelava a personalidade fantástica que domina o filme de João César Monteiro “Sophia de Mello Breyner Andresen” (1969). Frederico Lourenço tem razão quando afirma que é no Algarve que se inicia a Grécia de Sophia. Quando lemos “A Morte Percutiva” de Gastão Cruz, ou quando encontramos Fiama, Luísa Neto Jorge, Mara Teresa Horta e Casimiro de Brito, nos textos de 1961, compreendemos um movimento comum, marcado pela energia resultante “do embate entre o corpo que aspira à sua plenitude e um país cercado, onde todos os movimentos são vigiados ou proibidos”. Percebe-se bem uma visão pessimista, a consciência de uma doença de repressão e de guerra, ligada a uma circunstância pessoal de luto. Contudo, subjacente a esse embate, a esperança tornava-se uma coisa física, como “força dos corpos e do desejo”. E Gastão Cruz em “A Doença” precisa: “A este sítio há de o amor / ainda amor chegar / agora vamos ambos / pelos campos à espera duma dor de que viver”... Eis por que razão o curso do tempo foi revelando nessa atitude não uma escolástica, mas o reconhecimento da coexistência de caminhos múltiplos. “Uma revolta de palavras, apelando a um novo discurso” (na expressão de Luísa Neto Jorge).

 

A LUZ AMADURECE AS PEDRAS E OS FIGOS
Por estes dias, deambulei com o estio, a música das cigarras e as palavras de Gastão (“Os Poemas”, Assírio e Alvim, 2009): “A luz amadurece as / pedras e os figos nos lados dos caminhos / adoça as alfarrobas fende a casca / cinzenta das / amêndoas e desprende-as / varejamos / as que ficam presas de leve / aos ramos; / no armazém da casa amontoadas / descascar as / amêndoas o verão”. Mas também lembro o ritmo antigo, junto de quem conheci e amei: “Na horta atrás da casa laranjeiras / figueiras e uma / romãzeira junto à nora / Às vezes vagarosa a mula com antolhos / rodava toda a tarde / fazendo os alcatruzes despejar / incessantemente água”. É quase perturbador como tudo se assemelha. Estou a ver tudo como se fosse agora. Este Mediterrâneo banhado pelo Atlântico leva-nos muito longe, aos fenícios e cartagineses, aos gregos e romanos, aos misteriosos povos da língua do Sudoeste. E vêm à lembrança Manuel Viegas Guerreiro, com a sua especial atenção, às tradições e costumes, à memória imaterial, mas também Miguel Torga, sentado em Albufeira, num círculo de amigos, com o doutor Serra, a comentar a política, a gozar o fim da tarde e o luminoso pôr-do-Sol. Ainda há dias o recordei com sua filha Clara, e reluziram-lhe os olhos com essas recordações. E lembro Sophia e Ruy Belo no poema  de Gastão em “Repercussão” (2004) na Esplanada do Campo Pequeno (“Não achas que a esplanada é uma pequena pátria a que fomos fiéis?”): “o autor entrara e a presença / dele tinha tornado mais longa a hesitação / entre o sentido e o som ou suprimira-a? / É pouco fotográfica a memória / sonora e uma noite em casa de Sophia / (Que fica dos teus passos dados e perdidos?) / mais do que cada frase, cada pausa / do voo do tempo fizera a suspensão / seria primavera novamente / era talvez em tempo de tormenta / janeiro de 70 mês de febre / um dia só que na memória sobra / (o resto vem do Ruy Belo / Ruy Belo é o poeta vivo que me interessa mais / e é talvez hoje o tempo de tormenta”… Quantas memórias são suscitadas por este regresso às ruas de Faro e ao rincão algarvio, povoados por velhos amigos? Como disse ainda Gastão Cruz; “Palavras não existem / fora da nossa voz as / palavras não assistem / palavras somos nós”(A Doença, 1963).

 

Guilherme d'Oliveira Martins